13.12.07

Natal com Jeanne Duval




11 de dezembro

vou passar o natal em pedro juan caballero com jeanne duval, mas acho que é pseudônimo. "eu sou retardada e gosto de você", ela disse-me assim. não pude resistir. não é paraguaia. nem brasileira. não é poeta, ou sacoleira, o que pra mim dá no mesmo. duval insistiu no mistério e está me esperando num hotel duas estrelas. me poupando das vaquejadas, vai me apresentar na academia pontaporanense de letras e cantar baixinho no meu ouvido Boate Azul. mandou-me um mapa para minha orientação, eu já estava fazendo as malas. e cadê o caballero aqui? tive de perguntar a minha tia, ex-guerrilheira do Cerro Corá, que fez outra rota mais segura pra mim e me deu um kit sobrevivência, pois não perde os velhos hábitos. não sei o que me espera em jeanne duval. o avião sai em duas horas do aeroporto de mossoró para o meu éden latino. eu não deveria me iludir tanto, leio na lâmina da faca dentro do kit. pero así ha sido, es y será.

12 de dezembro

corta a jaca logo!, gritou do ladinho do meu ouvido um camelô dentre as centenas que dividem a fronteira do brasil com o paraguai. saio fotografando ainda arrotando o pesado café da manhã do hotel. as fotos não saem boas. duval me espera no sítio Esperança de Laranjinha. não sei onde fica esse trem. pelo celular ela tem voz melodiosa de índia canoeira. vou ter de arrumar um táxi pra cortar o estradão. guria dos óio pretado de avelã, criada na guanabara, fico falando com sotaque de beraba. tenho problemas com culturas diferentes. descobri aqui que uma editora do sudeste roubou seu nome de uma modinha sertaneja. bato co pé, bato ca mão, talvez duval me leve a um bailinho em asunción.



13 de dezembro


dei treis parma na portera e esperei. dei mais treis. nada. chamei, duval! val? ô val? não vi ninguém no Esperança de Laranjinha. fiquei amuada e chutei um formigueiro. lembrei que dá gosto de você, que me ensinou a tirar prazeres ocultos de se levar um bolo. parece que não aprendi. pulei a cerca e espere aí!, eu disse pro taxista. na porta empenada da casa grande um bilhete pendurado: "eu disse que era retardada, não que gostava de esperar. tive de ir a caballero". merda. ela quer fazer jogo duro. transformar o meu éden numa guerra del chaco. "me espere no hotel em porã. te quiero", li no final do bilhete. amor de ferradura. sozinho no seu quarto, cocteau diria: la poesie c'est autre chose.


15 de dezembro

desde que cheguei tenho sonhado com canoas singrando pântanos de uísque falso. eu sou muito boçal. não deveria beber tanto antes de dormir. e deveria ter me encantado com alguém que cheirasse a masp. tudo fica pertinho em são paulo. mirós, légers, chiricos. bixiga, menottis e títulos. são paulo sai todo dia no jornal. como é diferente o amor em ponta porã. principalmente quando se acha o amor em ponta porã. o que não me acontece há quatro dias. estou começando a achar que duval é um hoax. alguém quis me afastar da guaná-pará e inventou essa história pra me tirar de lá. mas quem? talvez duval seja o papai noel enfim, e só vou vê-la no dia 25. agora só recebo mensagens no celular. nem a voz dela ouço mais, me mandando pra ir aqui e ali. minhas ligações caem na caixa postal. o paraguai ao lado e cada vez mais distante. a conta do hotel está ficando alta e meu cacau vai acabar. vou nem que seja a pé para pedro juan caballero. alô, serviço de quarto?



25 de dezembro

a milhas do mar. passei o natal na estrada. acabo de chegar em nuestra señora de asunción direto de pedro juan caballero, onde não dormi uma noite e fui devorada por mosquitos de acapulco. temo a dengue. empoeirada, numa pensión familiar conheço Talita, uma pulga amestrada. tomo um banho e ligo para B.: "O que você está fazendo no cu da América Latina? foi comprar maconha? TV ÓLED, é? nuestra señora del mercosur!" B. espera os resultados de uns exames e está nervosa, não adiantaria eu explicar que cuando voy, estoy en mí. explicar jeanne duval, que afinal de contas não existe. para B., só quem conhece o mundo inteiro pode estar no paraguai. porque ficou por último. meus pensamentos formam paredes e ela me conta novidades. que V. alugou um jipão e foi viajar com surfistas catarinenses, cansou de me esperar. ela espera na linha que eu diga alguma coisa. que me arrependa. que admita que sou sozinha porque quero. mas fico muda e abro uma lata de cerveja. se eu fugir correndo não passo do brasil. a la mierda. B. se cansa do meu silêncio turístico. como confiar num país que não tem saída para o mar? ano que vem será um ano lírico, volte depressa. nos despedimos. conheço cada cidade pelo vento, que arrasta o seu lixo até meus pés. com asunción não será diferente. virgencita de la copacabana, diz o letreiro onde entro para almoçar. que diós vos bendiga, paraguay.







16.11.07

Quando ela pede com educação






De todos os narizes o dela era o mais protuberante. 
Preciso virar o rosto para beijá-la. 
Olhos incomparáveis. 
Lábios saborosos. Gordos. 
Seus pés parecem não tocar 
o chão quando caminham. 
Indo ou voltando. 

Ao lado dela me esqueço da doença e dos médicos. 
Minhas pernas se abrem quando ela pede com educação.





19.10.07

eu ainda lembro do seu colchão de molas



eu ainda lembro do seu colchão de molas

molas

molas

molas



Adega Pérola



vou me matar amanhã pra me vingar do horóscopo
me enforcar nos seus cabelos
aonde você for
vendo novas madrugadas
minha mente e meu corpo
neste sábado morto
beber na adega pérola em copa
com a mãe de maysa
lembrando de erasmo
angela calada
um filé cortado em cubinhos
sábado morto
alguém cantando vinicius
vou me matar amanhã
formiga de mim
fazendo o et cetera
o garçom de ironia complexa
uma mesa sem leitor
cheia de copos
alguém começando a cantar
posso me matar agora
e nada disso acontecer
mas prefiro esperar
amanhã terá de ser
com a boca na frente
rostos suando
copacabana
e iná
não sabem que fui surfista
de um peso que não cabe
mais na prancha
alguém continua cantando
sábado morto
ali onde as lágrimas
fazem marola
sem precisar de poemas
três metros de palavras
olha que o barquinho vai
vem e passa
olha que sozinho
o sono acaba com tiros
iná
olha que vinicius
não entende de horóscopo
vinicius está morto
e todo amanhã é um sábado
lembrando de erasmo
que é vasco
e eu sou fluminense
vou me matar amanhã
pra me vingar dos seus cabelos
iná
sozinho
angela calada
na adega pérola
cantando tudo que tenho
eu, tomate de feira
sem outro possível,
peça mais um vinho,
sábado morto




16.10.07

A felicidade tem cara de bola de tênis suja






Há pessoas diante das quais você não pode mostrar que está feliz, elas vão achar sempre que você está bêbada. O que no meu caso, invariavelmente, é verdade, porque ser feliz na presença delas exige de mim manutenção alcoólica constante. Chamemos de Hilda uma dessas pessoas. 

Não éramos amigas, nem parentes, mas uma circunstância trágica da vida permitiu que nos aproximássemos. Diferente de mim, Hilda não sabia tirar mínimos prazeres de uma palestra sobre o icosaedro. Nem a convido mais. Decepcionada com o mundo corporativo, um dia Hilda largou o emprego e foi viver de jogar tarô para pessoas que necessitam dos arcanos para saber se devem pegar a rua do Lavradio ou a Almirante Cochrane. Eu não acredito em tarô, acredito em tarólogos convincentes. Hilda baixou para mim suas cartinhas ilustradas umas duas vezes. Na primeira, disse que um projeto meu, do qual nem lembro, se me lembro bem, seria um sucesso. Não foi. Alguém teria batido na minha porta. Na segunda vez, afirmou categoricamente, após vários telefonemas mentais e intercâmbio de Cabalas, que eu estava encolhendo. Mentalmente?, ora, isso não é novidade. Não. Encolhendo fi-si-ca-men-te. Encolhendo no sentido leste-oeste?, eu perguntei dessa vez animada. Não, você está encolhendo no norte-sul. Está perdendo altura, ficando mais baixa. Mais baixa? Bom, com a idade perdemos alguns centímetros, a coluna verga, é isso? Ela fingiu-se de surda e ficou brincando de pêndulo com o meu gato incrédulo. Não sei se isso era uma resposta. Já se passaram alguns anos, estou do mesmo tamanho e até cresci uns três centímetros, reparo agora na sessão de alongamento. O que foi feito de Hilda. Bom, Hilda sumiu dos radares, talvez porque lhe desejei Feliz Natal no dia da Paixão. Suponho que deve ter se voltado para as cartas mamelucas. Acho que Hilda é daquelas pessoas para quem a felicidade não pode ter uma cara. Nyuk-nyuk-nyuk! Nem todo mundo entende que a felicidade tem cara de bola de tênis suja.











3.10.07

Meu caro doutor




Adorei a sua ideia de dar continuidade ao meu tratamento por e-mail. Não faz sentido mesmo interrompermos as sessões só porque me mudei para Manaus. Confesso que a princípio cheguei a procurar alguns terapeutas locais que me foram indicados. Tive entrevistas com quatro. Dois não aceitaram meu caso, por motivos que não explicaram bem, ou eu não entendi direito, e alegando agenda cheia. O terceiro não teve pudores de me dizer que não trabalhava com "estados limites" e o quarto, bem, o quarto tinha mau hálito e seu consultório, além de todo decorado segundo os cânones do feng-shui, exalava um odor nauseabundo de incenso de jasmim. O senhor bem sabe como abomino essas coisas, esses "territórios marcados". Então, como vê, foram tentativas vãs. E também, cá entre nós, só de pensar em um recomeço, ter de contar toda a lenga-lenga da minha infância de novo, é um atropelo. (Um chip com o meu dox psicológico nos pouparia muito tempo enfadonho.) Depois de cinco anos me tratando com o senhor, quem mais teria um know-how tão perfeito das combinações de meus pensamentos? Falando em pensar, estou aqui teclando e imaginando o que o senhor deve estar achando das coisas que digo, imagino o seu rosto, os olhos apertados, o cavanhaque bem-aparado onde o senhor apoia o polegar e o indicador enquanto me escuta/lê. Imagino que um dia possa vir a se arrepender de fazer essa análise eletrônica. Que dessa forma eu posso ludibriá-lo mais do que já o fiz de corpo presente. Que posso fazer literatura barata dos meus fenômenos psíquicos e no fim das contas nada lhe servirá como material empírico. Que minha degeneração intelectual, moral e afetiva corre o risco de se revelar mais obscura ainda, nos distanciando do processo de "cura". Que, por fim, minha "tendência à distração" seja contagiosa e o senhor próprio acabe caindo na superficialidade dos laços que a virtualidade desse suporte infalivelmente impõe, num processo de contratransferência veramente curioso. Penso essas coisas enquanto lhe escrevo e ao mesmo tempo tento convencer-me de que não devemos temer a incursão em domínios estranhos, eu mesma uma prova viva da estranheza. Tenho custado a dormir, doutor, fico rolando na cama e fazendo associações, justaposições e incorporações de palavras, ideias e personagens num fluxo compulsivo até o amanhecer, quando enfim desmaio por apatia ou cansaço. Não dá mais para convencer ninguém de que meu desencadeamento de conteúdos é uma forma de estilo ou que tenha qualidade literária. Mas não consigo evitar. Parece que, como eu, tudo o que escrevo tem de seguir o caminho do isolamento associativo. Não é novidade para o senhor, que me conhece sem eu precisar falar, pois tudo está registrado nos compêndios de psicanálise. O senhor só precisa achar a página certa. Como combinamos, envio-lhe em anexo o meu material para o estudo de caso. Bom, essa e-therapy (minhas amigas morrem de inveja) de hoje já está se alongando e devo me despedir pois não quero tomar muito o seu tempo. (Uma dúvida: devo passar a chamar agora o meu id de “isso” e o superego de “supereu”? Se é para deslatinizar geral, a forma correta não seria “sobre-eu”?) Antes de concluir, no entanto, permita-me um último comentário: enquanto lhe escrevia este e-mail, me peguei várias vezes olhando fixamente para o cinzeiro em minha mesa. Suponho que o cinzeiro seja meu, mas não me lembro de como veio parar aqui, se ganhei de presente, se comprei num belchior, não importa. É um cinzeiro assinado, pertenceu a Afranio de Mello Franco, pois este nome está gravado na porcelana logo abaixo de uma citação de Kant e é ali que eu deposito minhas cinzas. Sim, apago o cigarro nas letras de Kant, que, à medida que fumo, vão sumindo na porcelana. Depois de apagar um único cigarro no cinzeiro limpo, por exemplo, posso ler assim:

"Duas coisas preenchem o ânimo co adm ção e respeito sempr novos e crescente quanto ais frequente e duradour or o tempo que pens ento dispensa com elas. O céu estrela sobre e a lei moral d tro de m."

O senhor conhece esta citação? Eu conheço, pois sou eu que limpo o cinzeiro. Podemos discutir o significado dessa passagem do cinzeiro mais detalhadamente num próximo e-mail. Sem cinzas.

Um grande abraço,
Dora





25.9.07

A carta de Helsinque



Ele colocou os livros na mesa e abriu a carta de Helsinque. Agora vêm as notícias. O que penso que lerá nessa carta? Anna não virá nunca mais. A cena se repetia todas as manhãs: quando o telefone tocou ele ainda não havia chegado. Ouvira falar dos livros e comprou-os. Tudo muito por hábito, pensava idéias que todo mundo fala sem notar a diferença das suas. Idéias comuns sempre chegam mais cedo do que se espera. Começou a ler sem interromper a continuidade do silêncio. O papel fino tremendo nas mãos. O papel dos livros é duro. Não verga. A carta era breve, 265 palavras e a assinatura final. Vamos terminar por aqui. Ele já tinha notado a diferença. Anna não virá nunca mais. Poesia toda numa só. Ano passado ela disse que voltava já. Ele ficou esperando e comprou livros. Das 265 palavras, 42 foram usadas uma só vez. Distribuídas em um único parágrafo de frases com sujeito obrigatório e algumas agramaticalidades. O sujeito oculto estava em algum lugar. Vamos terminar por aqui veio seguido de uma pausa: cinco linhas em branco. Ficção da indiferença. Ele pensou em preencher o espaço com desaforos e devolvê-lo ao remetente. O acaso é um processo, eu pensei em dizer, sem coragem de chamá-lo pelo nome: eram letras borradas no destinatário do envelope. Sei que ele gosta de ler livros, já o irmão é alto. Todos sabem. Anna conheceu o irmão em Helsinque. Ninguém sabe. Ele colocou a carta dentro do livro. O papel da carta é mole, o papel do livro é duro. Mal os sentia agora.

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23.7.07

Amar é sofrer, eu vou te dizer




Amar é sofrer, eu vou te dizer. "Não se esqueça de trazer uma lagosta pra mim", disse ela bem assim na beira do cais antes de eu partir para um mergulho de onde não sabia se voltaria. Agora aqui, a 45 metros de profundidade, e descendo cada vez mais, fico me perguntando por que não a mandei à merda, sem endereço. Desde criança que tenho dois sonhos: resgatar do fundo do mar a cruz do bispo Sardinha e me apaixonar por uma samurai que pisasse minha garganta até que me faltasse o oxigênio pra eu gozar. Se isso é pecado, me puna. A cruz do bispo eu ainda não achei, mas continuo mergulhando, e fundo, muito fundo. Tão fundo que acabei descobrindo Isabel dentro de uma ostra, escondidinha. Hoje vivemos juntas, só eu pago o aluguel enquanto ela arde na Fogueira Santa de Israel. Amar é sofrer, não preciso dizer mais do que as canções banais: é só uma gota de sangue verbal, apaixonei-me por uma obreira pentecostal.







3.7.07

a parede cega


Gosto da caixinha de cotonetes exatamente onde está. Ao meu lado. Na estante a um metro da minha cama. Posso pegá-la só esticando o braço para a noite. Gosto das paredes que me cercam, dos vidros limitados por janelas começando onde as paredes acabam. Gosto das janelas por onde vejo o mundo lá fora sem precisar respirar o seu ar, ouvir os seus sons. Gosto do meu banheiro. Só no banheiro. Em que me banho com vapores de eucalipto sempre que o telefone toca. Gosto dos móveis, que me distraem das paredes, portas e janelas, sem me pedir nada por isso. Preciso destes móveis, deste chão, deste teto sobre mim e dos corredores que me carregam pela casa sempre que ela me chama. Gosto da geladeira exatamente ali, onde posso achá-la no escuro. Tão bela, tão imponente, tão pálida. E condescendente. A boca enorme de silêncio se abrindo só para mim. Gosto da cozinha toda na verdade. Pias, cubas e torneiras. E de sua generosidade. Não consigo passar 24 horas longe delas. Longe da minha casa. Tenho dependência química da minha casa, coloquemos assim. Do inconsciente das paredes, com seus buracos de pregos, manchas de umidade, rastros de insetos. Do chão de tábua corrida que morrerá comigo porque assassinarei a casa antes dos restauradores e seus bisturis. Da bananeira em que me apóio para descer a escada. Dos livros que apodrecem enquanto durmo. Do pátio interno que se finge de mar e sol. Rio de Janeiro. Da parede cega em que penduro poemas medíocres. Da porta da rua que guarda você para nunca mais voltar. Da varanda que te espera sozinha porque vivo nos fundos. Dos quartos, ah dos quartos. Não consigo passar 24 horas longe da minha tesourinha de unhas, da minha estátua de Diana e das bolas de tênis murchas. Dos gatos de meio-fio. Gosto de mim exatamente aqui. E por tudo isso você há de me perdoar, mas não posso ir ao seu lançamento hoje.



26.6.07

penteando o cabelo molhado para um aniversário


como é possível

que essas pulgas contentes

tenham passado

tanto tempo dormentes?






27.5.07

Eu não poderia lavar alface nessa pia



Eu não poderia lavar alface nessa pia. Moro num 3x2, pia e privada incluídas. E uma janela-basculante sobre a Guanabara. Quando se mora há muito tempo num 3x2, não dá para lavar alface na única pia do lugar. E eu moro há mais de vinte anos ao lado dessa pia de frente pro mar. Ela é o meu mundo. Toda a água de que preciso nesta vida eu sei que sairá por ali. A pia é o meu atlântico, minha lagoa, minha piscina. Aqui lavo o rosto, as mãos, os dentes, o cabelo, o corpo por inteiro. Por isso botei minha cama ao lado da pia. A pia é o meu relógio. Quando quero saber o tempo que passa, basta abrir um pouco a torneira e contar os pingos. Aprendi que o justo controle da pressão da água me daria também tudo de que eu precisava para ser feliz. Pingos diferentes são música. Pulsos lentos, pulsos rápidos, meus tímpanos vibrando na frequência dos pingos, formando compassos. Eu divido o fluxo da água para obter o som que bem quero, mas às vezes a torneira me surpreende com uma batida diferente. São momentos mágicos, posso dizer assim. Como as horas em que dou toda pressão e uma cachoeira entra no meu quarto. Tudo é questão de fechar o ralo certo. Na medida certa. Para pessoas comuns um ralo é um ralo. Bocal de canalização de esgotos, como nos dicionários. Pessoas comuns e dicionários têm ideias menos imaginativas a respeito dos ralos. Para mim são a porta de saída da minha vida. Como a torneira é a porta de entrada. O que eu preciso é controlar ralo e torneira. Mantê-los em sincronia. Onde um cede o outro resiste. Os dois não podem ceder e resistir ao mesmo tempo. E assim vou aprendendo com a minha pia o que é o mundo das possibilidades. A pia é o único professor que eu tenho à mão. E eu nunca sei qual será a próxima aula.



(2006)







2.4.07

Há um lugar para nós


















há um lugar para nós enquanto tomo nota. não gosto do que escrevo. não escrevo para que me leiam, ela disse para o gravador ao meu lado. se acharem que isso é mentira, não vou mudar minha vida para contar o que eu acho que seja verdade. escrevo para mim. segundo minhas necessidades. para que uma voz me acompanhe até o final dos meus dias. não vou escrever melhor. escrever o que não posso. escrever pouco como se estivesse à beira de muito. ser mais uma falsa discípula de prepúcios russos, uma utilidade pedagógica. o corpo de evita está na lua e de qualquer forma o leitor se aproxima dos livros bonitos pela frente, dos feios, por trás. meu editor, com sudorese de porsche, diz que sempre há público para relatos enojosos de pequenas emoções domésticas. o meu caso. que um livro errado pode dar certo. e o certo dar errado. eu confio no meu editor, ele tem 1 giga de memória e administra bem minha inibição de competitividade. há um lugar para nós enquanto tomo nota. até o final do ano serás traduzida em seis idiomas. amanhã me mudo da sacadura cabral.






13.3.07

Éramos quatro





Não sei qual dos dois eu vi primeiro. Qual dos dois eu me lembro de ter visto primeiro. Só sei que tinha uma outra pessoa entre nós três. Uma pessoa um pouco maior do que eu e menor do que as duas primeiras. Esta estava sempre ali ao lado de mim e só ela falava com as duas maiores do que nós duas. Éramos quatro. A outra, a maior de nós três, também vivia perto de nós mas era diferente. Tinha cabelo no corpo e voz grossa. E nem sempre ficava perto de nós três. Ficava longe quando estava claro e só aparecia quando escurecia. E quando aparecia, a outra do tamanho dela lhe trazia uma comida e a chamava de ele para nós duas menores. Eu via que eu sempre ficava ali com os três num lugar pequeno que tinha outros lugares menores dentro dele. Um para comer, um onde eu fazia cocô e a água caía em cima de mim, um onde eu deitava perto da maiorzinha, um onde os dois maiores ficavam sozinhos e outro onde todos nós quatro ficávamos sentados olhando para um quadrado brilhante que piscava, cantava e falava, pois tinha uma gente pequeninha lá dentro colorida como nós aqui do lado de fora. Uma dos dois maiores ficava no lugar onde se comia fazendo o que nós quatro íamos comer numa mesa com quatro cadeiras. Uma para cada um. A mesma todas as vezes. Quando ficava escuro, os dois maiores diziam umas coisas para nós duas menores e tínhamos de sair dali para fazer xixi, jogar água dentro da boca e cuspir antes de irmos deitar juntas. Um dos dois maiores apertavam umas coisas na parede e ficava mais escuro ainda. Nós duas menores íamos para o nosso lugar de deitar, uma em cada canto, e eu subia ali e fechava os olhos bem apertado e todos eles sumiam de repente, pois ficava escuro por dentro e eu não podia me mexer. Jogavam um pano em cima de mim e eu ficava quentinha, o que parecia me ajudar a ficar quietinha. Daí eu não via mais nada nem ninguém colorido. Só umas sombras que se mexiam e falavam comigo embora eu estivesse de olhos fechados. Eu lembro que neste lugar de sombras eu me mexia sem sair do lugar, via uns bichos correndo atrás de mim que me davam medo do escuro e aquilo parecia não acabar. Mas acabava. Acabava quando eu abria os olhos de novo e estava tudo claro outra vez. Eu levantava, ia fazer xixi e ficava andando até um dos maiores me chamar pra me dar uma água branca pra eu engolir. Ela, a maior de nós três, dizia baixinho coisas que devíamos fazer e comer para ficarmos fortes e crescer. O maior de nós quatro já não estava em nenhum dos lugares ali dentro que eu pudesse ver. Depois a maior do que eu que dormia comigo sumia também carregando umas coisas e com uma roupa que ela vestia todo dia a mesma. Daí a maior que sobrava ali naquele lugar me tirava dali e íamos para outro lugar lá fora, cheio de gente do tamanho dela e do meu tamanho. Era claro lá fora, quente. Mas eu não conhecia ninguém. Todos passavam sem falar conosco. E coisas correndo. Barulho. Depois de tantas vezes que essas coisas aconteceram eu aprendi que o maior de todos nós quatro se chamava pai, a maior de nós três se chamava mãe, a maior de nós duas era a irmã, e eu, a menor dos quatro, era a filha. Os dois maiores chamavam as duas menores de filhas, eu não podia chamar a maior de nós duas de filha. Era a irmã. Descobri também que o que fazia tudo ficar claro lá fora e entrando pela nossa janela se chamava sol. E o escuro se chamava noite. Que quando meus olhos se fechavam por muito tempo e eu começava a ver sombras era por que estava dormindo. As sombras eram sonhos. Que eu era a menor de nós quatro porque era criança. Que lá fora as coisas correndo eram a rua. E aqui dentro aqueles lugares pequenos que nos separavam eram a casa. Que toda vez que eu dormia nascia um dia novo. Que os dias eram muitos e juntos eram chamados de tempo. A água que caía dentro de casa em cima de nós era banho. A que caía do lado de fora, chuva. A que caía dos meus olhos, lágrima. Aos poucos eu ia aprendendo todas essas coisas e depois de muitos dias já era fácil chamá-las pelo nome. Não sei de quantos dias precisei para aprender que quando o pai e a mãe falavam alto um com o outro se chamava briga. E que a mãe quando chovia por dentro se chamava triste. Um dia, quando eles falavam alto um com o outro, eu falei mais alto do que os dois e eles pararam de falar alto um com o outro para falar mais alto ainda comigo. A lágrima saiu dos meus olhos e eu corri para o meu lugar. A mãe correu atrás de mim e me chamou de meu amor. Ela disse que me amava. Eu não sabia o que era amava. O que ela me amava. Se eu era pequena e ela precisava me dar comida e dizer ainda tantas coisas que eu precisava aprender. Ela fazia isso tudo todo dia e deitava primeiro que todo mundo porque me ensinou que estava cansada. Eu aprendia rápido. Cansada é quando a gente faz muita coisa sem saber se gosta de fazer. O pai não tinha dias que dizia que me amava. Ele não me ensinou que também estava cansado. E como nunca fez isso em dia nenhum e nunca deitava primeiro eu me cansei dele porque ele fazia isso todo dia. Então os dias se passaram, eu fiquei forte e grande e o pai e a mãe continuaram naquele mesmo lugar comigo. A irmã já tinha ido embora, pela rua. Ela se casou, como o pai e a mãe fizeram um dia. A irmã foi embora para fazer os seus próprios quatro de nós num outro lugar. Eu não quis ir embora para fazer o que a irmã fez. Eu não queria um novo quatro de nós. Eu ainda tinha três de nós em casa comigo. Os dois maiores que ficaram comigo não eram agora maiores do que eu. Eu era a maior de todos. A mãe não me chamava mais de meu amor porque não via mais uma lágrima nos meus olhos. Estavam secos. Eles ainda falavam alto um com o outro, não comigo. Que falava mais alto do que os dois. Eu preparava a comida deles, dava banho, trocava a roupa, levava para passear no sol e botava na frente da televisão para ver gente colorida. Eles não tinham nada para ficar cansados, mas não sei por que eu sentia que estavam cansados de mim. Eu devia estar cansada deles porque batia na cama e tudo escurecia mais depressa do que antes. Às vezes a irmã nos visitava e eu via uma lágrima nos olhos dos dois menores do que eu. Eu chovia lá fora. De raiva, porque eu fazia tudo por eles e a irmã só aparecia e ia embora correndo para os quatro de nós dela que ela havia criado. Antes de partir ela os chamava de meu amor. Mas o que ela sabia de meu amor se nunca a mãe a vira chorando? Se ela nem percebia que o pai e mãe estavam desaprendendo tudo o que haviam ensinado para nós? Se esqueciam das coisas e eu tinha de ensinar tudo de novo? E eu ensinava do mesmo jeitinho que aprendi com eles. Tem dias que eu acho que a irmã está certa. Eu devia arranjar uns quatro de nós mais novos porque os meus estão ficando velhos e daqui a pouco eu não vou ter mais ninguém a quem ensinar, alguém que me deixe cansada até o fim para o sono vir mais rápido e os dias passarem depressa.





3.3.07

Akhmatova, Nagasaki, Omaha & Nobodaddy


AKHMATOVA AKHMATOVA

HÁ UMA MINA ABANDONADA EM POTOSÍ

AKHMATOVA AKHMATOVA

AY CARAJO!

DIGA QUE SÍ




+



Conheci um poeta beat em Nagasaki pouco depois de Emilinha gravar a última cena de "Cala a boca, Etelvina". A cidade estava em reconstrução, voltando a amontoar casas, e qualquer corrente de ar era um risco. Eu evitava tossir. Bob me perguntava do Cassino da Urca. Queria ler seus poemas no Rio. Emilinha já havia trocado a Urca pelo Cassino Atlântico. Bob desconhecia muitas coisas, pude reparar com gosto depois de dois apliques de metadona. Era fã de Emilinha. Decepcionado com Carmen Miranda, sua ambição poética era ser anônimo. Esquecido. Me convidou para conhecer sua família em New Orleans, onde recitava em cafeterias baratas. Jazz poet por essência, dispensara o be-bop depois de ver Carmen no cinema. Chegou a escrever "Cocoa Morning" para o Bando da Lua, que não se interessou. Bob sofria. Parece que não gostava de ser americano. Odiava Ginsberg, que lhe roubara dois namorados com promessas de transformá-los em poetas. Sua última esperança era Emilinha. Eu os apresentei e dois anos depois, com problemas nas cordas vocais, a Favorita da Marinha gravou uma marchinha de carnaval com letra de Bob vertida para o português. Não me ofendi quando a assessora de Emilinha dispensou os meus serviços de tradução depois que Bob aprendeu a nossa língua. Bob comporia muitas canções para Emilinha. Sempre anônimo. Esquecido. Soube disso ontem, enquanto acompanhava o velório de Bob no São João Batista. Com um calor de 42 graus, só o rosto de Bob não suava. Blake saiu sem ser notado. Suas flores já haviam murchado.

+


Eu não sabia que aquele gringo branquelo sentado no Castelinho com o cérebro molhado de caipirinha tinha sido o maior poeta da Segunda Guerra Mundial. Limpava toda areia de Omaha nas ondas pouco cívicas de Ipanema. O deslocamento do ar enchia meu chope de lembranças da guerra. O Castelinho acabou e eu não fui convocado. Havia uma grande distância entre meus ideais e o Corcovado.

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Arquibaldo era motorista de ambulância e não perdia um filme de Hitchcock. Acabou se formando em direito. Depois de perder duas causas, leu uma edição condensada de T. S. Eliot e resolveu ser poeta. Apaixonou-se pela filha do diretor da Biblioteca Nacional e conheceu pessoalmente muitos escritores que nunca havia lido. O casamento durou pouco, mas então ele já era poeta famoso. Para não estrangular a mulher, pediu divórcio. Não faria versos com sabor de Disque M para Matar. Dividimos ontem um waffle na Confeitaria Colombo porque ele não queria engordar. Para mim foi uma economia. Mostrou-me seu último poema intitulado "Nobodaddy". Acho que ele nunca gostou do sogro. Arquibaldo agora faz poemas em inglês e quer aprender urdu porque não tolera tradutores. Baudelaire levou 14 anos traduzindo Poe para o francês e morreu na merda. Não dá pra confiar. Arquibaldo quer seus poemas traduzidos em muitas línguas. Como vive de encomenda, não sei onde arranjará tempo para tanta filologia.

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22.2.07

O Poeta X



Semana passada falei com A. pelo telefone. A. é poeta famoso em seu meio, o lá dele. Um dos melhores de sua geração, como gostam de dizer os jornais que não querem arranjar confusão com poetas bem melhores de outra geração. Diziam isso em 1992, em 2001 e ontem mesmo. A. acha pouco Schopenhauer essa conversa de que poetas são a antena da raça. Desconheço a cerveja, mas tive de concordar com ele, a ligação era interurbana. A. parece estar descendo a ladeira, só poetas do tempo em que lampião dava choque lembram do antena da raça. Mas A. é compadre de C., que por sua vez é discípulo de D. Já B., pós-cordelista por controle remoto, é execrado por F., o poeta maior. E., o incorriolável, não deixa por menos: é execrado por todos. Meu problema é que F. está velho e eu achei que um dia posso me sentar na cadeira dele se A. me ensinasse a compor uns versos mais e menos modernos que agradem a todos. Digo mais e menos modernos porque acredito na conciliação dos opostos quando não se tem um estilo muito próprio -- o meu caso. A. não é nenhum professor doutor de letras nem nada, é workshopper. Dá umas aulinhas de caraoquê criativo a quem pode pagar para ser escritor -- a minha sorte.  Ele tem umas olheiras fundas e a pele branquinha, quase rosa, feito galinha depenada. E engordou muito desde 92, vejo aqui nesta foto de 2001 repetida ontem no jornal. Está macilento. Os poetas românticos do passado eram descarnados de tuberculose. Hoje qualquer mestre-do-cu-sujo tem a mesma cara de doente, mas é gordo. Menos F., duro de boca e magro de ruindeza. Lasca humana. Que eu diga. F. está decrépito e alguém vai ter de tomar conta da loja quando ele não puder mais cantar pra subir. A disputa vai ser uma rinha, já vi tudo. Tenho cá minhas chances. A. aceitou me dar aulas particulares de poética on-line porque moro onde não tem um zé. Ele nem desconfia do meu plano mirabolante de assumir o trono de F. e quem sabe alguma vaga na coleção de carecas de porcelana da Academia. Imagino até a cara dele quando eu quis me fazer de espirituoso: "Não nasci em Itabira,  não lavei meus cueiros líricos no Tietê, principalmente não brinquei de roda no Café Vermelhinho. Tenho alguma chance de ser um poeta maiusculoso?” Ele só deu um risinho caviloso. Está precisando do meu dinheiro, não é burro de me contrariar. Vou pagar muito bem pelo curso, tive de vender dois zebus gordos da minha criação. Ideias e inspiração não me faltam, não sabe?, eu disse assim. Quero aprender é o manejo. Saber conduzir bem sujeito-predicado-complemento tudo encaixadinho numa cancela de versos sonoros em cascata, com alinhamento e cadência, feito música. Não precisam rimar, disso eu sei que é antigo. Mas precisam ser enxutos -- um boi sem gordura. Tristes. Lacônicos. E difíceis. Acho que a boa poesia é aquela que as pessoas demoram muito a compreender que não vale nada. Como a vida de um grande poeta só começa depois da morte, fico tranquilo, que de morto ninguém tira a fama. Ademais sei perceber quando todos escrevem o mesmo renrém, só mudando o cardápio de substantivos. O leitor shopping-center cai no gás-com-água porque de vernáculo não entende ponto e vírgula. Engole aqueles versos ensaboados de homeopatia achando que é refinamento filológico. Tudo que sei de poesia foi com dona Adelina que aprendi. Palavras com frente e verso. Poeta bom é aquele que não vê a vida só da sua privada, ela bafejou na minha orelha, mastigando um queijinho-do-céu. Eu poderia ter continuado meus estudos com ela, mas dona Adelina é poeta afeita a coisas de religião, e religião não tem serventia para quem, como eu, concorre à vaga de maior poeta do país. Tem que ser coisa de ateu. De matuto chique. De quem não acredita que o mar um dia vai ter sabor de limonada. A. não entende por que alguém rico e ocupado assim feito eu quer ser poeta, logo agora que a poesia não vale uma boa estrumeira. Ele se faz de besta que eu sei. Vaidade não é patrimônio exclusivo de A, B ou C. Por que seria eu a incógnita deste abecedário?