19.10.07

eu ainda lembro do seu colchão de molas



eu ainda lembro do seu colchão de molas

molas

molas

molas



Adega Pérola



vou me matar amanhã pra me vingar do horóscopo
me enforcar nos seus cabelos
aonde você for
vendo novas madrugadas
minha mente e meu corpo
neste sábado morto
beber na adega pérola em copa
com a mãe de maysa
lembrando de erasmo
angela calada
um filé cortado em cubinhos
sábado morto
alguém cantando vinicius
vou me matar amanhã
formiga de mim
fazendo o et cetera
o garçom de ironia complexa
uma mesa sem leitor
cheia de copos
alguém começando a cantar
posso me matar agora
e nada disso acontecer
mas prefiro esperar
amanhã terá de ser
com a boca na frente
rostos suando
copacabana
e iná
não sabem que fui surfista
de um peso que não cabe
mais na prancha
alguém continua cantando
sábado morto
ali onde as lágrimas
fazem marola
sem precisar de poemas
três metros de palavras
olha que o barquinho vai
vem e passa
olha que sozinho
o sono acaba com tiros
iná
olha que vinicius
não entende de horóscopo
vinicius está morto
e todo amanhã é um sábado
lembrando de erasmo
que é vasco
e eu sou fluminense
vou me matar amanhã
pra me vingar dos seus cabelos
iná
sozinho
angela calada
na adega pérola
cantando tudo que tenho
eu, tomate de feira
sem outro possível,
peça mais um vinho,
sábado morto




16.10.07

A felicidade tem cara de bola de tênis suja






Há pessoas diante das quais você não pode mostrar que está feliz, elas vão achar sempre que você está bêbada. O que no meu caso, invariavelmente, é verdade, porque ser feliz na presença delas exige de mim manutenção alcoólica constante. Chamemos de Hilda uma dessas pessoas. 

Não éramos amigas, nem parentes, mas uma circunstância trágica da vida permitiu que nos aproximássemos. Diferente de mim, Hilda não sabia tirar mínimos prazeres de uma palestra sobre o icosaedro. Nem a convido mais. Decepcionada com o mundo corporativo, um dia Hilda largou o emprego e foi viver de jogar tarô para pessoas que necessitam dos arcanos para saber se devem pegar a rua do Lavradio ou a Almirante Cochrane. Eu não acredito em tarô, acredito em tarólogos convincentes. Hilda baixou para mim suas cartinhas ilustradas umas duas vezes. Na primeira, disse que um projeto meu, do qual nem lembro, se me lembro bem, seria um sucesso. Não foi. Alguém teria batido na minha porta. Na segunda vez, afirmou categoricamente, após vários telefonemas mentais e intercâmbio de Cabalas, que eu estava encolhendo. Mentalmente?, ora, isso não é novidade. Não. Encolhendo fi-si-ca-men-te. Encolhendo no sentido leste-oeste?, eu perguntei dessa vez animada. Não, você está encolhendo no norte-sul. Está perdendo altura, ficando mais baixa. Mais baixa? Bom, com a idade perdemos alguns centímetros, a coluna verga, é isso? Ela fingiu-se de surda e ficou brincando de pêndulo com o meu gato incrédulo. Não sei se isso era uma resposta. Já se passaram alguns anos, estou do mesmo tamanho e até cresci uns três centímetros, reparo agora na sessão de alongamento. O que foi feito de Hilda. Bom, Hilda sumiu dos radares, talvez porque lhe desejei Feliz Natal no dia da Paixão. Suponho que deve ter se voltado para as cartas mamelucas. Acho que Hilda é daquelas pessoas para quem a felicidade não pode ter uma cara. Nyuk-nyuk-nyuk! Nem todo mundo entende que a felicidade tem cara de bola de tênis suja.











3.10.07

Meu caro doutor




Adorei a sua ideia de dar continuidade ao meu tratamento por e-mail. Não faz sentido mesmo interrompermos as sessões só porque me mudei para Manaus. Confesso que a princípio cheguei a procurar alguns terapeutas locais que me foram indicados. Tive entrevistas com quatro. Dois não aceitaram meu caso, por motivos que não explicaram bem, ou eu não entendi direito, e alegando agenda cheia. O terceiro não teve pudores de me dizer que não trabalhava com "estados limites" e o quarto, bem, o quarto tinha mau hálito e seu consultório, além de todo decorado segundo os cânones do feng-shui, exalava um odor nauseabundo de incenso de jasmim. O senhor bem sabe como abomino essas coisas, esses "territórios marcados". Então, como vê, foram tentativas vãs. E também, cá entre nós, só de pensar em um recomeço, ter de contar toda a lenga-lenga da minha infância de novo, é um atropelo. (Um chip com o meu dox psicológico nos pouparia muito tempo enfadonho.) Depois de cinco anos me tratando com o senhor, quem mais teria um know-how tão perfeito das combinações de meus pensamentos? Falando em pensar, estou aqui teclando e imaginando o que o senhor deve estar achando das coisas que digo, imagino o seu rosto, os olhos apertados, o cavanhaque bem-aparado onde o senhor apoia o polegar e o indicador enquanto me escuta/lê. Imagino que um dia possa vir a se arrepender de fazer essa análise eletrônica. Que dessa forma eu posso ludibriá-lo mais do que já o fiz de corpo presente. Que posso fazer literatura barata dos meus fenômenos psíquicos e no fim das contas nada lhe servirá como material empírico. Que minha degeneração intelectual, moral e afetiva corre o risco de se revelar mais obscura ainda, nos distanciando do processo de "cura". Que, por fim, minha "tendência à distração" seja contagiosa e o senhor próprio acabe caindo na superficialidade dos laços que a virtualidade desse suporte infalivelmente impõe, num processo de contratransferência veramente curioso. Penso essas coisas enquanto lhe escrevo e ao mesmo tempo tento convencer-me de que não devemos temer a incursão em domínios estranhos, eu mesma uma prova viva da estranheza. Tenho custado a dormir, doutor, fico rolando na cama e fazendo associações, justaposições e incorporações de palavras, ideias e personagens num fluxo compulsivo até o amanhecer, quando enfim desmaio por apatia ou cansaço. Não dá mais para convencer ninguém de que meu desencadeamento de conteúdos é uma forma de estilo ou que tenha qualidade literária. Mas não consigo evitar. Parece que, como eu, tudo o que escrevo tem de seguir o caminho do isolamento associativo. Não é novidade para o senhor, que me conhece sem eu precisar falar, pois tudo está registrado nos compêndios de psicanálise. O senhor só precisa achar a página certa. Como combinamos, envio-lhe em anexo o meu material para o estudo de caso. Bom, essa e-therapy (minhas amigas morrem de inveja) de hoje já está se alongando e devo me despedir pois não quero tomar muito o seu tempo. (Uma dúvida: devo passar a chamar agora o meu id de “isso” e o superego de “supereu”? Se é para deslatinizar geral, a forma correta não seria “sobre-eu”?) Antes de concluir, no entanto, permita-me um último comentário: enquanto lhe escrevia este e-mail, me peguei várias vezes olhando fixamente para o cinzeiro em minha mesa. Suponho que o cinzeiro seja meu, mas não me lembro de como veio parar aqui, se ganhei de presente, se comprei num belchior, não importa. É um cinzeiro assinado, pertenceu a Afranio de Mello Franco, pois este nome está gravado na porcelana logo abaixo de uma citação de Kant e é ali que eu deposito minhas cinzas. Sim, apago o cigarro nas letras de Kant, que, à medida que fumo, vão sumindo na porcelana. Depois de apagar um único cigarro no cinzeiro limpo, por exemplo, posso ler assim:

"Duas coisas preenchem o ânimo co adm ção e respeito sempr novos e crescente quanto ais frequente e duradour or o tempo que pens ento dispensa com elas. O céu estrela sobre e a lei moral d tro de m."

O senhor conhece esta citação? Eu conheço, pois sou eu que limpo o cinzeiro. Podemos discutir o significado dessa passagem do cinzeiro mais detalhadamente num próximo e-mail. Sem cinzas.

Um grande abraço,
Dora