28.4.11

Dream fitness





São dez horas da manhã de uma noite maldormida quando decido testar os novos pneus Protek Max da bicicleta. Eu vou precisar deles para cumprir a missão que me foi destinada. Chove e a rua de terra batida está escorregadia, o que não me impede de rodar maciamente até a pista de asfalto e dali descer a Estrada do Sumidouro na direção da Varick Street, onde ouvi dizer que há inúmeras tipografias antigas ainda em funcionamento. Sinto nas curvas o cheiro de chumbo das Mergenthalers, seu ruído ensurdecedor, e meus pelos arrepiam de prazer como na primeira vez. Mas não freio e logo à frente viro à esquerda, costurando entre carros apressados até o início da Pont du Gard tão ensolarada que depois de tudo não vou querer pensar em sol por um mês, colocando tudo no papel. Os pneus novos resistem bem às trilhas de lama antes de cruzarem a Smolenskaia os músculos de minhas pernas começam a pedir arrego. Na Bab Agnaou diminuo a velocidade, seco o rosto e desligo o iPod. Faltam ainda quarenta minutos para eu chegar ao meu limite, o alvo preciso. Ouvir Impromptus não ajuda muito. Não retornarei pela Diego de Ordás pois minha cabeça já está formigando e em algum lugar deve haver um atalho da Calle Lima à Tamarineira. Quanto mais pedalo menor é a vontade de me mudar para cá. Por onde passo todas as pessoas parecem querer ir para algum lugar, dar em alguma coisa. E somem no vapor. Aponto para Quakers Hill e estou subindo novamente enquanto a paisagem. Tomo meu primeiro gole de gatorade na Via Amalfi, de frente para o mar de limoncello. Penso em parar no Duomo di Lucca para visitar o retrato do meu avô materno na carteira, mas a mãe do meu pai, com ciúme prussiano, lembra que a sua Pommern foi engolfada pelo Báltico da segunda guerra e eu não conseguiria mais passar por ali, nem que fosse um Spitz sem plumas. Até agora não consegui fugir da civilização para usá-la como estante de livros. Só os nomes vão mudando. Um Toyota FJ Cruiser passa raspando por mim e sou obrigada a avançar por um matagal, trombando numa árvore. A joelheira direita se foi. Estou perdendo a concentração. O oxigênio. Mão direita ou mão esquerda enrijecem no guidom. Estou perto agora de Matamoros. Consulto o monitor cardíaco. Buracos e pedras. Ele é tão simpático comigo. Mas a verdade é que me sinto febril quando saio da Avenida Amazonas, entro na BR-040 e me restam cinco minutos para o fim. É muito difícil ser uma pessoa com quem não consigo falar. Evitar correntes secas quando uma gota por elo basta. Obrigar-me fisicamente a lançar mão da chave multiusos para o desânimo num trecho comprido de águas rasas. Na porta de casa vejo que os pneus se regeneraram sozinhos. Perco toda a noção de tempo e distância quando finalmente tiro a venda dos olhos e guardo a ergométrica na garagem antes que me chamem para o almoço.


25.4.11

Shaken, not stirred



A senhorita Bishop detesta poemas confessionais. Confessou isso numa folha fedorenta de jornal. Palavra por palavra por palavra. Clavicórdia, ela poderia ter ficado quieta mais esta vez. Eu poderia não ficar sabendo como não sabia que ela vivia ali na Antônio Vieira a poucos metros de mim na Gustavo Sampaio. Lia versos de Yeats sob a barraca de sol enquanto eu brincava com meu baldinho na areia molhada da Academy of American Poets. Mas é direito dela não gostar de poemas confessionais, sentir saudade da primavera no hemisfério norte e comprar pneus para o MG com o dinheiro dos prêmios literários. Para ser um bom poeta, a pessoa tem que marcar pelo telefone com antecedência. Como pode ter só 53 quilos e parecer tão gorda?, minha mãe comenta com meu pai, olhando a foto no jornal. Cara de prato com dois fundos teatros castanhos sempre piscando demais. Ela quase nunca vai à praia. Meu pai revira os olhos sempre que agraciado com a maledicência feminina. Ela come figos maduros com presunto no almoço e frequenta leilão de potros com poetas jovens ainda na gaveta. Depois que ganhou o Pulitzer, passou a escrever dentro da gaveta, porque se alguém chegasse de repente, ela poderia fechá-la depressa para não ter que mostrar nada ao curioso inútil. Com a mesma idade de Bishop ao chegar ao cansativo Brasil, eu cheguei na Samambaia. Fernhill. Também sem saber que ela havia morado ali na mesma rua quarenta anos antes de mim, cartografando o limo. Rua Djanira. A antiga fazenda, esquartejada e loteada, virou bairro. Ali também Djanira pintou o fundo de sua piscina novecentos metros acima do mar. Onde nuvens alcobacinhas continuam entrando pelas janelas das casas mofando portas, roupas, nervos, a obra completa. Nuvens carregadas de umidade a quem na verdade chamam neblina -- fog, em elizabetano. Ou ruço, como dizem os locais. Não há mais pés de caju, nem nunca vi samambaias. É o fundo do poço de Yaddo. Nunca morei em Ouro Preto. Ainda bem, senão eu poderia pensar que a senhorita me persegue e a senhorita pensaria que eu a persigo. Eu gosto de poemas confessionais. Não me afetam. I must lie down where all the ladders start.



20.4.11

A indiferença era o seu beijo





não sou poeta, não sou escritora.

sou hebefrênica.
me definindo assim
aborreço bem menos a toda a gente



Entrou na capelinha gótica e três arcanjos

disformes lhe sorriram caninos de esguelha.

Uma velha, uma menininha

e um papagaio em estado de felicidade.

Estavam ali como quem sai na rua

para se divertir com quem passa,

mas temiam o ator principal.

Cruzou dois castiçais com arame,

acendendo as velas vermelhas,

e uma boneca de fio dos dois

mundos de sua juventude pulou de seu cérebro

como moscas espanholas na direção do sol.  

A indiferença era o seu beijo.

O jaleco do cirurgião.

Sabia que sua insensibilidade corria perigo.

Alguém precisava tentar o impossível até o último centavo.  








14.4.11

na lua não tem lâmpada






minha mãe mora lá e vai pra rua ler os pensamentos que penso pra ela. dentro da sua casa  é escuro quando ela também pensa pra mim. o que está fazendo, menina? estou escrevendo o silêncio mas eu queria mesmo é estar comendo, comendo até explodir a fome que esta comida não mata. bife sangrando de arroz, dois tomates cortados de azeite, batata frita?, não, mas não tem outra coisa, come isso aí. está bem, mãe. minha mãe tem uma cama macia com lençol limpinho que toma banho todo dia o lençol, lá na lua lençol não demora pra secar que a água é amiga da lua e dos luantes, seca e evapora rapidinho num cisco do olho, ninguém vê ela subindo subindo em água virando em nuvem que desliza de noitinha e chega na terra pela manhã como óculos do sol protetor dos terrantes. minha mãe toma café com leite quentinho e um pãozinho fresco de manteiga igual fazia na terra como eu faço, só que eu engordo com pãozinho, ela não. daí eu como torrada que faz crunch e entra na gengiva, ela dói. eu não grito porque lá na lua grito é silêncio, minha mãe não vai ouvir pra tirar a torrada da minha gengiva com o pensamento de parar de doer. quando eu era pequena a gengiva não doía, era quieta. isso é novidade pra minha mãe, conto a ela. vejo um dedinho de preocupação no rosto que ela mostra só de aparência. ela não lembra mais o que é gengiva, eu explico. dor ela sabe. eu mudo de ideia pra ela não sentir dor de gengiva que nem tem mais boca de jacaré. hoje eu também vou dormir num lençol limpinho.









4.4.11

Dias abafados





Encontro na morte um velho amigo.

Vivo, ansiava morrer.

Morto, hesitava.

Abracei-o e apoiei a cabeça em seu peito.

Magro, veias saltando, seus braços falharam.

Ouvi uma tristeza que não pôde evitar.

Tão diferente nossa pele uma da outra.

Naqueles dias abafados foram a minha salvação.