30.7.12

Eliot, bife & caroço




Minha avó nunca se entendeu com medidores de glicose.

Perdia a lancetadora entre os vãos do sofá.

A dentadura, na vodca on the rocks.

Põe aí um filme do Chato é o Resto. 

Aquele que faz Moisés no planeta dos macacos.

Minha avó. À distância de um ouvido

Lia a manhã nos jornais velhos do pai que lhe morreu 

jovem de peito arrebentado na calçada -- um poeta. 

Cleptomaníaca verbal, rasgou Eliot na biblioteca 

dizendo que fez o poema só pra mim. 

Ensinou-me a contar até dez em alemão. 

A usar antolhos de circunstância, o uniforme da memória.

Minha avó e seu bife à milanesa com caroço de laranja. 

Minha avó e a foto do seu primeiro bebê morto na carteira.

Minha avó.

Sempre igual a si mesma.

Como a lua boiando no mar.










26.7.12

O banho
























Vi uma notícia pequenina

na boca da minha tia Tabu:

-- A água vai acabar.

Não falou devagarinho,

em vinte e quatro capítulos

puxados por tração animal.

Foi como um brinquedo óptico,

24 vezes por segundo, para

dar tempo de eu tirar a espuma

do corpo e averiguar seu grau

de pureza entre a carne e o osso.




20.7.12

Réquiem




O bar fechou.
O chope acabou.
A luz apagou.

Ao sair feche a tampa.
Favor não balançar as alças.







O ovo de Li Po




meu ovo de Li Po estragou
vou ter de te comer com sopa de missô
em finas rodelas numa esteira de bambu
o olho esquerdo, o sol
o olho direito, a lua

alga jovem, suada e delicada,
fritastes sentimentos preparados no vapor, 
minhas folhas do Manyoshu
e as mil garças que dobrei,
isto não se faz, filha de um junco

agora, empanzinada do teu futuro,
tomo um chá de mussambé


da cobra comendo cobra
sempre nasce uma mulher.








Ela blindou o carro e todo o mar Egeu








Ela blindou o carro e todo o mar Egeu. 
Roubou-me os hexâmetros, casou com meu irmão e engoliu-o. 
Vomitou-o por dez anos. 
Depois cortejou-me à força como se eu fosse 
um homem ou animal que lhe agradasse. 
Sem sucesso. Leoas não acasalam com leoas. 
Ao fim de cada noite implorava com mais raiva do que antes. 
Implorou até ficar velha e construiu uma cidade. 
Nunca fui visitá-la. 
Já dormimos sobre a mesma cama, 
mas isto foi antes de ela chamar a atenção de meu pai. 
Pariu-me dentro de uma biga durante os Jogos Olímpicos. 
Eu pedi aos deuses que me livrassem do meu desejo. 
Disparei uma flecha certeira, atravessando o coração de duas pombas. 
Ela cozinhou as pombas e me serviu dizendo que era sopa de tartaruga. 
Quando por fim os dias derreteram a cera de nossas velas, 
ela colocou minha cabeça na bigorna, beijou-a 
e abriu-a em três pedaços com o machado. 
Meus olhos saltaram no chão e criaram raízes. 
Guardou um pedaço para uma vida de gozos, 
o outro para uma vida de fadigas e glória. 
O resto atirou aos abutres. 
Para livrar-se do cheiro, acelerou o Tempo 
até romper-se o eixo e não sobrar ninguém para contar a história. 
Quando outra vez sentou-se na minha frente 
para chocar um novo Universo, eu acordei. 
Assim já era demais.



(Maira Parula em Não feche seus olhos esta noite, ed. Rocco, 2006)








19.7.12

Dormir e bum!


                                                                        a Jack Kerouac


dormir dormir... dormir para sempre. 
dormir de depressão, dormir de desilusão, 
dormir depois de três quartos de garrafão. 
dormir certa tarde. dormir nesse meio tempo. 
dormir repentinamente. dormir e bum! 
dormir branco. dormir negro. 
dormir señorita. dormir de bigode. 
dormir sozinha. dormir seja com quem for. 
dormir na privada. dormir até Ohio. 
dormir uma parede de cada lado. 
dormir de tiro no peito. 
dormir na varanda. dormir de mármore. 
dormir por outra razão. 
dormir na taipa de pilão.
dormir na correnteza. dormir sem saco de dormir.
dormir na quebra do teu riso,
ou em penugem flutuante.
dormir numa almofada de alfinetes.
dormir antes de partir. dormir tudo aquilo. 
dormir o mapa-múndi. dormir como sempre faziam. 
dormir um quilômetro por hora. 
dormir as ideias. dormir aqui comigo. 
dormir cada palavra. 
dormir dormir... dormir para sempre. 
até que enchovas se transformem em pó.


Teasers





Carne humana queimada cheira a mel,
piche e batata assada.
A morte tem cheiro de abacaxi.
Um caminhão de abacaxi.

Use Polo Explorer, da Ralph Lauren --
Vaporisateur.
























A vida é uma parede.
A morte são quatro.
Je ne sais jamais l'heure.
Use Requinte Superlavável, de Sherwin-Williams.
Sem Cheiro.





Urge vender



  Vestido de novia a estrenar.
Sencillopero elegante vestido
color perla (perla significa
que tu siempre vivirás un
remolino de sentimientos),
en dos piezas, falda lisa,
corpiño en forma de corazón
y adornado con cristalitos,
incluye chal. Disponible en
tallas 40x42 con etiquetas
a estrenar. Viene con 2 años
de garantía y en su caja!
Solo 1000 piezas en todo el
mundo. Impecable, ven a verlo,
te vas a enamorar. 




18.7.12

Página ligeira



Da leiteria de mármore

Alma e eu descemos 

à aldeia espaçada pelo vento.

No mercado de legumes

alugamos una guida alla

poesia dialettale ottocentesca,

discutindo se  touros malhados 

são metade ou terceira parte 


de brancos e  negros.


Na parede da baia,  


a luz do sol é um pêndulo 


que desloca nossas sombras,

face entrechoque da solidão.

Sem chegarmos a um resultado,

escolhemos a persiana de lavanda --

o que deve ser a vida por você.



17.7.12

13.7.12

O morto de vidro





Na natureza nada se faz em vão.
O morto.
O vidro.
O morto de vidro.
Eu não estou no tanque de peixes
mas o vejo ao meu lado.
Ele vai apodrecer
em pouco tempo,
como no dia em
que nos casamos.
Escrevo baixinho
porque não deves ler ou acordar.

Quanto maior o amor,
maior a espessura do vidro.



8.7.12

No pico mais alto do que não está ali




No pico mais alto do que não está ali há uma escada.
Capacete kevlar c/dispositivo visão noturna, Colt M1911,
Beretta 925-1, fuzil M16 c/lançador granadas, morteiros.

A menina sobe em espiral e esquece
3 magazines 30 cartuchos p/M16, 2 p/carabina M-4,
4 pentes p/pistola, baioneta, kit limpeza, kit coldre.

o troco em cima do balcão.
Colete kevlar, poncho Flecktarn, camelbak, cantil.

Vê a filha mais velha desfazendo o nó do presente:
Chem light, lanterna de cotovelo, faca MK2, anestésico injetável.

uma praia cheia de conchas feita totalmente de aço.
Botas de combate Belleville, meias náilon, macacão fleece.

Os olhos descem para o mar até sua pele branca.
Luvas Nomex, máscara antigás, kit primeiros socorros.

Só precisam de um pouco d’água para se distinguirem
Óculos balísticos Uvex XC, Firestarter, spray de camuflagem.

das janelas de vidro e navegar o mundo inteiro.
Ração operacional, marmita, talher articulado, rede de selva.

Como é tranquilo aqui em cima.











4.7.12

Estação Tirana


Um amigo me envia o poema "Estação Tirana" e a foto encontrados entre os pertences de uma provável ex-paciente do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena. Não foi difícil descobrir que ela escreveu em albanês capenga. Na pressa da curiosidade, busquei um serviço de tradução eletrônica. Posteriormente, consultei um falante da língua e chegamos ao produto final. A mulher assina-se Impatienta Doloris. Nunca mais foi encontrada. Os trens de passageiros não passavam mais por Barbacena.




1. Texto original: 

Unë nuk mund të shkruaj në gjuhën time, sepse ata do të kuptojnë mua.
Dhe në qoftë se ju e kuptoni mua, të më kapë.
Përdorni një fjalor.
Një përkthyes elektronike.
Unë shpresoj se trenin e 9:20.
Nuk kam asgjë për të thënë, por ata gjithmonë mendojnë se kanë.
Prandaj përzierje gjuhë.
Ka shumë klasik, por ata janë të bukur.
Kam lënë çelësin në të majtë valixhe.
Një rregull i sjelljes së qytetëruar është të hahet bukë.
Si një sanduiç të shpejtë para se të nisej.
Askush nuk i pazakontë në qoftë se unë si një copë si unë shkruaj.
Nuk e di nëse ju mbani lexuar këtë.
Mos shkoni pranë dritares së saj, unë premtoj.
Edhe pse unë shkruaj orë dhe nuk thonë asgjë,
ju presin për të prerë fjalën në thertore.
Dhe ju falenderoj për këtë.
Familja ime mban një fushë shahu
brenda disa pjesëve plastike nuk të mbledhin pluhur.
Familja ime është një njeri i çuditshëm.
Një njeri i shtrirë me gruan e tij.
Entrée gratuite.
Në platformë, një hapësirë ​​e hapur për dashuri.
Kjo nuk është hera e parë që kam drejtuar.
I mbetur pa përfunduar prerë bamje.
Rroba kanate. Tëharrje oborr.
Zogjtë çukis at mbetjet e mia në rrugën e duhur.
Jeta e martuar është shumë më mirë.


Impatienta Doloris,
22 de outubro,
CHPB, Barbacena

2. Tradução eletrônica:


Eu não posso escrever na minha língua, porque eles vão me entender.
E se você me entende, me abraça.
Use um dicionário.
Um tradutor eletrônico.
Espero que o trem de 9:20.
Não tenho nada a dizer, mas sempre acho que eles têm.
Portanto misturar línguas.
Há muito clássico, mas eles são lindos.
Deixei a chave na bagagem esquerda.
Uma regra de comportamento civilizado está comendo pão.
Como um sanduíche rápido antes de sair.
Não estranho se eu gosto de uma peça como eu escrevo.
Não sei se você continuar lendo isto.
Não chegue perto de sua janela, eu prometo.
Mesmo que eu escrever horas e não dizer nada,
você aguardar a palavra final em frangalhos.
E obrigado por isso.
Minha família mantém um tabuleiro de xadrez
dentro de algumas partes plásticas não acumular poeira.
Minha família é uma pessoa estranha.
Um homem estava com sua esposa.
Entree Gratuite.
Na plataforma, um espaço aberto para o amor.
Esta não é a primeira vez que eu corro.
Saí sem acabamento de corte quiabo.
Dobrar as roupas. Capinar o quintal.
Aves bico meus restos mortais encontrados na pista.
A vida de casado é muito melhor.

Impatienta Doloris,
22 de outubro,
CHPB, Barbacena


3. Tradução revisada:


Não posso escrever na minha língua porque eles vão me entender. 
E se me entendem, me prendem.
Use um dicionário.
Um tradutor eletrônico.
Espero o trem das 9:20.
Posso não ter nada a dizer, mas eles sempre acham que tenho.
Por isso embaralho línguas.
Não são clássicas mas são bonitas.
Deixei a chave no guarda-malas.
Uma regra da conduta civilizada é comer pães.
Como rápido um sanduíche antes de partir.
Ninguém estranha se eu como um pão enquanto escrevo.
Não sei se você vai continuar lendo isto.
Não me aproximarei da sua janela, prometo.
Mesmo que eu escreva horas e não diga nada,
você espera o corte da palavra no matadouro.
E agradeço por isso.
A minha família guarda um tabuleiro de xadrez
dentro de um plástico para não empoeirar as peças.
Minha família é um homem estranho.
Um homem deitado com sua mulher.
Entrée gratuite.
Na plataforma, abro um espaço para o amor.
Não é a primeira vez que fujo.
Fui embora sem acabar de cortar o quiabo.
Dobrar as roupas. Capinar o pátio.
Passarinhos bicam meus restos nos trilhos.
A vida de casada é muito melhor.

Impatienta Doloris
22 de outubro
CHPB, Barbacena