30.6.13

O jogo



Marfim ou ébano, distribua as peças sobre a mesa. Depois é só ficar de olho nos pontos brancos ou negros das faces retangulares. Ir formando a ideia com caracteres móveis na cabeça. Acender um cigarro, tomar um café. Evocar.  Olhar a paisagem lá fora. Os homens que fazem fila desde cedo na frente de uma parede sem porta.  A marquise de sobrecéu. Você não sabe por que eles estão ali todos os dias se nada acontece. Ninguém fala com eles. Nenhum carro para. Eles só ficam ali na fila da parede sem porta, como unifaces pré-cerâmicos. Alguns sentam, alguns deitam, a maioria fica de pé, olhando para o chão a passos curtos. Você vê e não entende, nem pergunta. Para perguntar, teria de sair e ficar na frente da mesma parede. Mover outra peça que pode levá-lo a perder o jogo. Perder a paisagem. A evocação. O que estou fazendo aqui? Os homens não estão mortos e não querem falar com você. Estivessem, por que não querem falar comigo? Então você fica em casa e move a peça que está na fila para ser movida. Em qualquer ponto da fila, onde quer que você esteja, você perguntará, O que estou fazendo aqui? Você não chora, porque lágrimas descobrem os poros, desembestam o cavalo e o jogo é outro. De caligrafia lenta. Precisa ficar controlando as peças, quase em transe.  Friccionar as codas com um velho arco de crinas. A mente pode ficar no envelope, não seus olhos.  Um envelope repatriado a alguém que só se beija no vidro. Aquela do interior da casa. Da estupa. A pedra 6x6. Tudo passa rápido e você quase não tem mais peças. As regras indicam que este é o caminho para a vitória. Da fome você não passa. Ao seu adversário resta mais. A boca fechada. O poder do não expresso. E ele vence. É só um jogo. O adversário, um aliado. Você aprende, embaralha as peças e ergue outra vez a cabeça. Os homens ainda estão lá. Porque a porta é sua.





26.6.13

O lado B de "Gracias a la Vida"



Linda se ve la Patria, señor turista, pero no le han mostrado, las callampitas…

Mientras gastan millones en un momento, de hambre se muere gente que es un portento.

Mucho dinero en parques municipales, y la miseria es grande en los hospitales.

Al medio de Alameda de las Delicias Chile limita al centro de la injusticia.









No final de sua vida, dominada pela depressão e cansaço, Violeta
Parra compõe esta obra-prima, "Maldigo del Alto Cielo", canção
de versos belíssimos, como que dando uma rasteira em
"Gracias a la Vida". Violeta se mata em 5 de fevereiro
de 1967 com um tiro na boca.

Maldigo del alto cielo
la estrella con su reflejo,
maldigo los azulejos
destellos del arroyuelo,
maldigo del bajo suelo
la piedra con su contorno,
maldigo el fuego del horno
porque mi alma está de luto,
maldigo los estatutos del tiempo
con sus bochornos,
cuánto será mi dolor.

Maldigo la cordillera

de los Andes y de La Costa,
maldigo, señor, la angosta
y larga faja de tierra,
también la paz y la guerra,
lo franco y lo veleidoso,
maldigo lo perfumoso
porque mi anhelo está muerto,
maldigo todo lo cierto
y lo falso con lo dudoso,
cuánto será mi dolor.

Maldigo la primavera

con sus jardines en flor
y del otoño el color
yo lo maldigo de veras;
y a la nube pasajera
la maldigo tanto y tanto
porque padezco un quebranto.
Maldigo el invierno entero
con el verano sincero,
maldigo profano y santo,
grande será mi dolor.

Maldigo a la solitaria

figura de la bandera,
maldigo cualquier emblema,
la Venus y la Araucaria,
el trino de la canaria,
el cosmos con sus planetas,
la tierra y todas sus grietas
porque me aqueja un pesar,
maldigo del ancho mar
sus puertos y sus caletas,
grande será mi dolor.

Maldigo luna y paisaje,

los pueblos y los desiertos,
maldigo muerto por muerto
y el vivo de rey a paje,
las aves con sus plumajes
las maldigo a sangre fría,
las aulas, las sacristías
porque me aflige un dolor,
maldigo el vocablo "amor"
con toda su brujería,
cuánto será mi dolor.

Maldigo por fin lo blanco,

lo negro con lo amarillo,
obispos y monaguillos,
ministros y predicandos
yo los maldigo cantando;
lo libre y lo prisionero,
lo dulce y lo pendenciero
yo pongo mi maldición
en griego y en español
por culpa de un traicionero,
cuánto será mi dolor.


[ A letra tem 2 versões, com algumas alterações de palavras, o amor pode ser uma "brujería" ou uma

"porquería", por exemplo. Esta publicada aqui é a versão do vídeo.]


24.6.13

Esvazia, e permanecerás repleto







No prato em branco



falanges de arroz seguem 




em formação cerrada 




como peregrinos no Kailash




o tigre sai do ninho 




para ver as pedras que rezam




meu garfo perfura a rocha pelo flanco




e me sacio com seus corpos




não há coisa melhor






22.6.13

As cuecas do Jardel




Anoiteceu e as cuecas do Jardel continuam secando na corda. Para quem quiser ver. Começa a chover. Não tenho pena. Eu não vou levá-las para dentro. Não tenho tempo. São cuecas bonitas, posso ver daqui. Cuecas de outono. Um vento democrático as balança junto com as folhas de bananeira. Jardel gosta mais de suas cuecas do que dos meus poemas. Não sei se devo. Levo mais de duas horas para achar um anacoluto e mesmo assim cuecas são mais populares do que poesia. Na vida a gente tem de saber escolher: ou acabo a merda deste poema agora ou recolho as cuecas. Talvez eu fale um pouco de Jardel enquanto espero inspiração. Jardel é padeiro -- ou boulanger, como dizem as pessoas que comem chique -- e padeiros escrevem com farinha. Letras não têm fermento, ele diz, não se pode vê-las crescendo e crescendo, transbordando do papel, ficam achatadas lá a vida inteira, esperando que alguém as leia. Uma leitura a frio. Nenhum verso de Camões se compara a uma boa broa de Avintes. Tivesse a boca cheia de croissants, Baudelaire não seria tão amargo, não teria contraído tantas doenças venéreas. Eu não concordo com estas idéias de Jardel, mas elas me fizeram rir quando eu o conheci na cozinha de Madame Niveaux enquanto pegava travessas de salgadinhos. Todos os fins de semana Madame organizava saraus literários em sua casa na Ilha do Governador e para essas ocasiões me contratava para servir a seus convidados ilustres. Foram nesses saraus que aprendi a gostar de poesia entre um canapé e outro que Jardel preparava com rapidez e proficiência. Já nessa época ele queria especializar-se em pães. Enquanto os poetas recitavam na sala, Jardel se pavoneava no fogão dizendo que o pão era mais antigo do que a poesia, você sabia? Que existia desde o tempo de Cristo. Bem, Jardel tinha problemas com datas e para ele a Antiguidade era farelo -- a história da humanidade começava depois de Cristo e pronto. Sentia orgulho de ser bisneto da inventora do bolinho de taioba. Não gostava de escritores e de me ver escrevendo como eles. São todos uns vigaristas manipuladores que querem nos convencer com mentiras que refletem não o que é, mas o que o leitor deseja que seja ou pensa que deveria ser. Todo escritor é um charlatão, comerciante de significados ilusórios. Ele dizia isso mais ou menos com estas palavras. Não me convencia e talvez por isso eu me apaixonei por ele. Madame Niveaux morreu e com ela os saraus. Compramos a casa da Ilha do Governador, que Jardel transformou numa padaria bem diversificada onde vende pães temáticos. Eu. Eu não faço nada. Hoje não cuido mais de nossa casa, não lavo, não passo nem entro na cozinha. Fico sentada escrevendo poemas que Jardel não lê. E por que o faria? Poetas não têm a cabeça bem sovada.







16.6.13

Sinônimo é a palavra



que se escreve no lugar da que não se sabe escrever. Não é o caso aqui, mas esse foi o começo. Chamemos de mademoiselle, senhorita, senhorinha e iaiá. Éramos quatro moças bem moças muito mais minhas amigas do que eu delas. Cheias de melindres à simples queda de um talher, enfiavam a carapuça com qualquer papagaio verde que eu lhes contasse, acenando com o meu cansaço que logo viria delas. Contentes como se tivessem joia em lugar de vida, seus cabelos eram limpos, porque dormiam limpas e acordavam limpas. Quatro moças. E mais. Oito braços. Oito pernas. Oito mãos que não me descascavam um inhame. Se eu tivesse fome, não saberia o que fazer com elas. Que gente não se come. É carne ruim por dentro. E nem osso por osso colado me serviria de abrigo, que vaidade é uma parte só fingindo ser todo. Embora de tudo que me deem como e faço muito bom uso. Cozido, frito ou assado. Então esta noite não tive notícia delas. Um palmo de solidão sob a terra talvez seja assim, pensa o meu travesseiro por um buraco que eu escuto. Quando saírem, andam na praça, falando de si aos bancos de pedra e com quem passa pelas árvores abrindo portas para o meio-fio. Segundo as aparências. Depois vão dançar. Com os lábios desenhando a boca. O mundo é vasto para mademoiselle, senhorita, senhorinha e iaiá. Nem nada se pode saber. Amanhã elas alisam o pente e trazem a cascavel na língua até minha campainha. Que pena que você não foi. Desse jeito. Açucaradas como um rebuçado. Fazendo beicinho, me abraçando com aquelas mãos de angu de fubá mimoso. Como se pedissem que eu lhes desse algo em troca por isso. Eu costurava uma bainha, sem por que levantar a cabeça. Uma linha é uma linha, não o horizonte. De tal maneira que um bom pedaço do que disse foi. Vocês sabem que não gosto de bailes. Mademoiselle deu um gole no café que senhorita empurrou deixando que senhorinha falasse e iaiá as olhasse de baixo. Minha agulha subindo e descendo. Sob os panos, tinham pena de mim. Eu sabia. Dois metros de piedade de largura por três de comprimento, calculados sem fita métrica. De se tocar. Macia. Fria. De seda. Ainda não cansadas de dançar a noite inteira, dançaram de novo a véspera para mim. Quem estava com quem. Quem vestia o quê. A tesoura. Quem chegou com quem. Quem saiu com quem. Quem emagreceu. Quem engordou. Quem vai estudar na capital. Muito riam. Eu as acompanhava por partes. Para merecê-las. Por assim parecer melhor a todas. Três carretéis rolaram até a janela. A praça assando no fogão do meio-dia. Compraram uma queijadinha que passou num cesto de bicicleta. E comeram. Mergulhei até onde dava pé. Pronto. O último vestido está pronto. Folhas de alface não se corta com faca. Meu presente para vocês. Elas repartiram a surpresa com os dedos. Você fez um vestido para nós? Um vestido preto? E mais riram. Para a Semana Santa? Funeral de quem? Mas são de seda. Você sabe que nesta cidadezinha atrasada nenhuma jeune-fille usa preto. É mau agouro, sua burra. E ainda sem rendas e babadinhos. Que coisa. E mais não riram. Ora. Também não abriram caminho com lágrimas. O vestido ficou no mesmo lugar por onde saíram. Baixei os olhos para a máquina de costura: não me pergunte quem eu sou. O que for suará. No sétimo dia aquelas três almas estarão remando tua barca.





11.6.13

a carne flutua na água


a carne flutua na água
pela janela da Ernemann
a carne é a água
a espuma, a gordura
que a contém

a carne balança na maré

o furo na pele o botão
por onde encho
uma bola de borracha
e corro para brincar
entre vozes de asas




8.6.13

Um trem para Berlim



Olha o meu pai lá
Vindo do Inferno
Não mudou muita coisa
A alma, seu mesmo velho terno
Ele passa o chapéu e não me vê
Uma vista espetacular da cidade
Mil dias sem -- e um com você
O meu amante argentino
Com cara de menino:
Olha o teu pai aqui
Ele veio do Inferno
E quero te apresentar
O velho no maldito bandolim
Da Hlavni Nádrazí a Berlim
Desconfio desse Inferno
Da aba de pai do meu terno
Do meu menino que sorriu
Das puta que o pariu




6.6.13

Alguma coisa que não sei



Meu chefe me deu 1 canivete 15 em 1. Presente não sei por quê.
Meu aniversário. Uma aposta de futebol. Não.
Eu nem gosto de futebol.  Aniversário está longe.
Se estamos no mês que julgo estar. 
Veja só, 1 canivete 15  em 1. Por quem ele me toma?
Um abridor de latas.
Fiquei envergonhado, me entregou na sala dele.
Tinha dois caras lá. Ficaram me olhando abrir
a chave Phillips com cara de imbecil.
Estou com sono agora.  Ouço Händel  ou um nome
parecido no rádio. Uma mariposa sobe a parede
tremelicando pela luz do abajur. Não. Uma traça.
Venta muito a essa hora. Minha sogra chega amanhã.
Eu gosto da minha sogra, mas tem alguma coisa que não sei.
Chegar nela é o mesmo que afastar-me.  Sempre fui assim.
Um saca-rolhas.
O besouro desce pela luz. Ele também precisa dormir.
Amanhã as duas vão ficar falando francês. O jur do i.
Um francês de cozinha, mas mesmo assim não entendo.
Minha mãe acha que estou bem encaminhado na vida.
Minha mãe está morta.
Identifiquei seu corpo pela curvatura perfeita 
do crânio sob a mortalha. Um lençol de hospital
100 por cento poliéster que ela odiava.
Minha pequena múmia.
Estou casado há 18 anos. Uma lixa de unhas.
Ela vem me engordando de amor para o abate.
No dia em que disse que eu tinha um sorriso acariciado,
eu a pedi em casamento. O filósofo é um chinelo velho.
Ela diz coisas que eu não entendo. Mas gosto disso só com ela.
Numa palavra pegávamos o transatlântico. A mosca treme.
Ponteira perfurante. Apesar de tudo viver.
Sobretudo às vezes.
Sou um ambientalista de ambientes fechados.
A faca para peixe não veio afiada.
Deve ser para cortá-lo cozido. Não a cabeça crua.
Um canivete suíço completo tem 80 funções.
O chinês tem apenas 15, de aço escovado. Bonito.
Meu chefe deve ter imaginado que eu me confundiria
com 80 funções. Abrir todas ao mesmo tempo e quem
sabe não usar nem a metade.  Me cortar.
Mas tem uma agulha. Não entendi por que é tão grossa.
Haydn.
Esses locutores têm uma voz tão empapada que
nunca sei de quem é a música que estou ouvindo.
É um mosquito. E já está imóvel há dez minutos.
Me esperando na luz acesa.
Faca-pequena-duas.
Verbos para quê?




1.6.13

In vitro



Tivemos uma conversa one-way esta manhã. Os dados que ela me passou sugerem que ainda temos características em comum, sem muitos desvios padrão da média. A certa altura tive um bloqueio em diminutas concentrações e meu coração dispara, ativando fatores nucleares. Ela nem reparou, preocupada que estava apenas  com sua expressão gênica. Eu não quis incentivar uma permeabilidade e agreguei um tom de low-density. Aquela interação não íntegra me provocou estímulos mecânicos e comecei com minhas  habituais mordeduras teciduais, deixando que ela continuasse me narrando suas reciclagens metabólicas. Parece que emagreceu e que vai viajar. G. sempre teve uma baixa autocomplacência, e se emagrecer mais vai parecer que tem dez anos. A continuar assim, só poderei reconhecê-la por fotomicrografias. No ouvido esquerdo, eu escutava canções flamencas e perdi parte do assunto quando a soprano intercalou duas duplas ligações com uma ligação simples, aumentando a tensão. Las churumbelas que en la cuna mamaron por bulerías pasan papelas de las que te mataron cuando vivías, cuando vivías. A cadência andaluza me faz esquecer do ouvido direito, por onde ainda entravam as prostaglandinas ciclopentenônicas de G. Lembrei-me dos bons tempos em que passeávamos de mãos dadas, proteína com proteína, pelos corredores escuros da bioquímica. Quando nossas conversas eram antiproliferativas e só nos importavam a produção e secreção de outras moléculas, a desorganização de filamentos, a ultracentrifugação sequencial de nossas amostras até o momento  glorioso da aquiescência sobrenadante pós-eletroforese. Mas isso tudo você não entendeu. Permanece na geladeira a 4o graus e ao abrigo da luz. Ela se despede e me deixa com a soprano. Sozinha outra vez neste ponto da curva.