26.10.13

Cárus




Vi a mão

passa por meus olhos

e um fórceps de luz fria de lanterna

aponta para a mata escura

imóvel entre árvores e guaxinins

meu sono não se mexe

só a coruja em seu ombro vela por mim

entre sons incompreensíveis




Karos


Vi la mano

pasa a través de mis ojos

y un fórceps de la linterna de luz fría

apunta a la oscuridad del bosque

propiedad de árboles y  mapaches

mi sueño no se moverá

sólo el búho en su hombro vela por mí

entre sonidos incomprensibles







24.10.13

O que passa por trás de olhos sorridentes




Nunca se sabe o que passa por trás de olhos sorridentes 
por trás daqueles anjos pintados no teto da cúpula 
a mãe se acalma beijando o pano branco de crucifixos 
ele cobre a nudez com tarja preta
é uma sombra das imagens de santos 
mora num apartamento pequeno
um cômodo só 
cabem só pensamentos 
pensamentos que o trazem para longe dali  
não há nada a fazer dentro de um ovo 
onde não se pode romper a casca
ou viver sem mistura 
naquele espaço miúdo, imitava a si mesmo 
poderia ser sapateiro ou artífice de qualquer espécie 
mas era homem de pensar 
pensamentos num quadrado 
tomam a forma do quadrado 
por isso ele precisava pensar gordo  
como o prisioneiro se espreme entre barras 
ele encolhia a barriga do pensamento para poder sair 
mudar-se para o novo apartamento 
precisou livrar os livros 
dispensou novos  
abraçou velhos 
alguns raros 
fiapos de papel de mais de 70 anos 
desmancham nos seus dedos 
cordões umbilicais que não poderia jogar no lixo
esconder-se sob bancos de igreja
de um deus carunchado
que se punha a caminho da morte
um cômodo que vinha de muito fundo
para o corinho de natal no shopping
com suas vestes de garoto soprano
nunca se sabe quem passa por trás de infâncias sorridentes




22.10.13

Portfólio de caras



Posto e clico no cadeado. 
Posto para mim mesma. 
Dou like e comento. 
Troco opiniões comigo. 
Não vejo diferença. 
Sei me contradizer. 
Contra-argumento e me convenço. 
Às vezes não. Brigamos. 
Me bloqueio. 
Passo uns dias fora. Depois volto. 
Com as mais belas fotos e vídeos. 
Daí me apaixono por mim novamente. 
Dou like. Me cutuco. Mando mensagem.
Distribuo emoticons.
A paixão dura uma semana.
Começo a me trollar de novo.
Falo o que quero. Me machuco.
Mando um coração e não me acredito.
Troco a foto do perfil mil vezes.
Quero fazer as pazes.
Acho que não temos volta.
Decepciono.
Ponho óculos escuros.
Posto. Abro o cadeado. 
Recebo oito likes e nenhum sou eu.
Narciso é minha escopeta de cano curto.



19.10.13

Os sete livros



Resolvi ler os livros de Duílio sem uma ordem cronológica. Peguei o de 2007,  mais pelo título, porque o dedica à mãe e a primeira frase é curta e bombástica. Duílio escreveu sete livros em 51 anos de vida. Não é muito se considerarmos que seus contemporâneos chegam a escrever dois por ano. Mas Duílio não é desse tipo. É meticuloso. Espera as vivências, deixa tudo marinando para depois rearranjar sentimentos e conclusões no  papel. Não tinha pressa de contar. Esses intervalos podem durar anos até ele fechar um acordo consigo mesmo de que tem algo a dizer e está preparado para isso. Conheço Duílio desde o colegial. Eu tirava as notas mais altas enquanto ele pensava. Nunca precisei pensar para ser o melhor aluno. O que ele pensava não dividia comigo. Escrevia num caderno que não mostrava a ninguém. Quando conversávamos, falava frases soltas, sem um fio  lógico. Eu precisava acompanhá-las e montar o quebra-cabeça. Mais tarde, em casa, eu remontava e entendia outra coisa. Ou chegava a outro resultado. Não sei bem se Duílio me ensinou a pensar, era um processo mecânico de montar, desmontar e remontar as peças. Não via sentimento nisso.  Nem ideias que me fossem de proveito. Era um jogo. Eu gostava porque não tinha um final. Para ele devia ser diferente.  Era como se falasse sozinho e ia escrevendo na cabeça, sem pensar ou pensando demais,  o que em certa medida dá no mesmo. Ou assim eu pensava. As poucas frases que me dizia não deviam ser o livro todo. Mas dava para juntar os pontos para eu chegar no meu mapa. No lugar em que eu queria chegar. Que não era o dele. Ou assim eu pensava. Ou queria pensar. Acabei fazendo engenharia e nunca mais vi Duílio. Casei cedo, tenho três filhos e acho que tudo me cabe por direito, e esforço. Nunca precisei pensar para casar, ter filhos e vencer na vida pelo trabalho. Foi acontecendo naturalmente. Sem pontas soltas. A mente de um homem é como um bloco num condomínio de muitos blocos. Há o porteiro, o faxineiro,  o segurança, o síndico, e todos os apartamentos estão ocupados, exceto um. Era ali que ele guardava os sete livros que escreveu. As sete dedicatórias. Os 51 anos que viveu dentro das sete pastas que sua mãe me entregou no dia em que a revi. As sete pastas com os manuscritos dos livros que nunca publicou. Duílio deu o último banho no seu cachorro,  escreveu bilhetes confessando que foi de caso pensado, alugou um flat em outro bairro e se jogou do último andar. Deixar os manuscritos comigo foi seu último desejo. Eu sou engenheiro e  não sei o que fazer com isso. Não posso fazer nada, apenas ler. Não sei se Duílio concordaria com o meu desdém pela cronologia. Por embaralhar novamente suas frases e vivências. O seu tempo. Isso ele não falava. Estou num hotel após o funeral e amanhã volto para São Paulo. Tomo um banho e arrumo a mala. À meia-noite sento na cama e começo a ler 2007. Após alguns minutos, pego no sono. Eu não sentia falta de nada.





17.10.13

Não assoe o nariz na orelha do meu livro




zoio meu 
zoio meu
vai buscar 
quem mora longe
zoio meu

no metrô de paris

ela tapa uma narina
e sopra pela outra
cai tudo pelo chão
messiê l'Abbé est tombé

quando você se requebrar

caia por cima de mim
caia por cima de mim

henrique IV tinha cinco lenços

e mais decoro que você
que não tem nenhum

cobro 100 euros
por uma aula de culture et civilité
estranho seria se não me apaixonasse por você
toda banana apodrece antes de amadurecer

na chambre du roi ela boceja com minha pedagogia

mas hoje deita na cama como manda a cortesia
uma senhora que aprende rápido as regras mais depravadas
nunca pega a comida com mãos que não foram lavadas

zoio meu

zoio meu
vai buscar 
quem mora longe
zoio meu 




14.10.13

Como é bom morrer olhando para uma mulher



Se toda mulher gosta de apanhar,  eu não sei disso não senhor. Eu gosto. Mas com muita ternura.

Como é bom morrer olhando para uma mulher. O cheiro de biscoitos assados vindo da cozinha. Eu vejo a cena. Não preciso de cinema. Não preciso de diário. A bicicleta e um vestido de algodão com mariposas de seda. Por um minuto somente. Atentando minha enferma inocência, ela faz revelações mais perto de mim do que imagina. Pode ser uma bobagem o que diz, mas gasto tudo o que tenho para ouvi-la. Dos móveis velhos que nos cercam ao oceano Pacífico. O sal do seu corpo. O doce do cabelo lavado. Junto uma coisa à outra e vejo o mar como se caísse do meu bolso. 

Não se lê sonhos no jornal. Achei que o senhor ia gostar de saber.

Ela olha para a cabeceira da cama. Pensa fugir dos meus olhos, mas o que faz é oferecer outro ângulo do seu rosto. O que bem conheço. Tudo está escrito nele se alguém souber ler coisas caídas do céu. Não é arte ocidental. É areia que vem no vento. Você só não pode abrir a boca. Ela gruda na pele e vocês são um só.

O tempo está empedrado demais. Olha como a tamarineira vai acabar morrendo.

Não chove há meses e faz frio toda noite. Só hoje ela me lembra. Morrer é um pouco virar estátua. Amar é um pouco virar estátua. Só o que é amado se movimenta. Você parado do outro lado da rua. Parado numa cama de doente sem sono. Freios por entre os dedos. A namorada de infância corre para a água. Nada mostra quando mergulha. Farinha. Porque a morte não espera muita coisa. A mulher ali sabe que você não prefere ficar sozinho. Vai à janela e procura mais conversa para colher. Foi o que fez. Sabe que você esconde a dor que ela pensa ser dela só. Mas é sua o dobro. Como a espingarda na parede. Como os bichos magros que abateu em sua própria terra empedrada. Como o que acontece em todas as outras casas. Do que lembram as gentes o tudo que se pode. Os biscoitos ainda quentes chegam num cesto que a mulher coloca no tampo da minha barriga. Prova um. Demonia-se com um sorriso, e você come também. O biscoito gruda no céu da boca e vocês são um só. 







5.10.13

Perdidos no Estácio




Você entra na minha sala
e diz que meus móveis
parecem restolho de brechó
Nada combina com nada
Finge pena de mim
por eu ganhar tão pouco
com tantas qualificações
Eu digo Tenho piscina
Você  não tem
Me chama de criança
Que minha poesia não desliza
É aceleração e travagem
Um desconforto
Só pega no tranco
Nunca lhe pedi para empurrar
Me apresenta o seu novo marido mal-educado
Um professor piagetiano de infantes surdo-mudos
Seguidor da pedagogia crítica que me olha vigia e humilha
esfregando na minha cara seu pós-doutorado em Cuba
Você é toda orgulho e engorda disso a cada dia
Mostro a ele meus adesivos de maconha que ele não tem
Colo um no braço
Procuro nas gavetas o que você me pediu
e  não acho
Estamos os três perdidos no Estácio




3.10.13

Eu queria ser comida em 1926


                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

Aqui é vazio.



Passo o dia querendo viajar.



Quero sempre viajar.



Acordo querendo.



Durmo querendo.




Até quando me deito.



Viajar para outro lugar.



O lugar-vazio.




A que será



que se destinam 



as lesbianas 



que passavam 



por minha avó 



nas oficinas da 



Bauhaus?








2.10.13

Uma longa fila de cruzes



Flávio não joga boliche.
Fichas no caixa.
Flávio serve mesas. Pede vales.
Briga com fregueses.
Mora na Pensão Estrêla.
Com acompanhamento e arranjos de Beth.
Tira fotos 3x4  no Almeida.
Põe a mão no rosto que dói.
No final do expediente recebe o bilhete azul.
Um trem vai e outro vem na estação.
Flávio entra em silêncio.
Fecha a porta.
Um café e um pedaço de pão olham pro lado.
Flávio olha pra baixo.
Come.
Escova os dentes no tanque.
Na cozinha vê O Pai Come e se Lambuza.
É de graxa.
A mãe quentinha.
Os trens vão e vêm.
Ele preenche o formulário.
Primeiro grau incompleto.
A mão suada na esferográfica.
Ele busca nas paredes.
Paredes não têm respostas.
Flávio desenha as letras.
Olha pro lado. Ninguém está colando.
Flávio não tem dinheiro para ver
Uma Longa Fila de Cruzes.
Mastiga um sanduíche de salame no Passeio Público.
Dorme no banco.
Flávio não conhece aquela gente
dentro das enciclopédias.
Caminha até  o aeroporto. Pega sol.
Olha o mar de paletó.
Flávio sempre olha o mar de paletó.
E a cidade do alto de Santa Teresa.
Os bondes nos trilhos certos.
Ele queima um bagulho.
Toma Praianinha no gargalo.
Não vai voltar pra Madureira.
Não vai passear em Niterói.
Vai passar a noite na Lapa.
Tomar batida de coco.
Quanto mais perto do Cristo, maior ele fica.
Flávio pega carona nas lágrimas.
Fica no banco traseiro.
Quebra o prato do pai.
Uma Longa Fila de Cruzes não conta
a história de sua vida.
Ele se abaixa e junta os cacos.
Era um filme sem importância.