30.12.14

O primeiro amor





Anotei seu nome e telefone 

no verso de uma bula de Broncocilin.






20.12.14

Hora da camisa de força




Sonhei que vomitava faeces

Nunca me esquecerei desse acontecimento


Na vida de minhas papilas tão foliadas





Saudades de casa





Fools, they do not even know how much more is the half than the whole.
-- Hesíodo

São 4 da manhã ou 5, não sei bem. A lamparina de led está acesa no meu quarto do laboratório de pesquisa aplicada Aquiles, na Antártida. Meu grupo de trabalho estuda algas, mas a esta hora do dia e depois de todo o cansaço de mais uma jornada de trabalho, não é bem para algas que volto minha atenção. Este cérebro está aberto na minha tela e o estudo enquanto os minutos passam. Duas fatias de um estranho pão de hambúrguer de barro, eu diria. Ou corpos humanos malformados, nus e aconchegados uns nos outros sem propriamente uma cabeça que os lidere. A cabeça foi retirada como uma casca de noz. É o fora. O que não se vê. O espaço sideral contido na gaveta de um deus. Corpos humanos, ou apenas corpos, embolados numa vala comum de conexões há muito desativadas e banhadas em formol. Um belo vaso fenício. É o que trazemos dentro de nós. O que me faz pensar e ver minha mesa iluminada com meus cacarecos de serviço. Anotações e cálculos. O que eu poderia colocar entre uma fatia e outra que poderia levar este cérebro a operar novamente? Não algas, por certo. Os seres deitados, essa massa modelada, formam um labirinto. Procuro a saída por suas vielas tortas. As vielas dão umas nas outras num circuito fechado, restrito. Entre um hemisfério e outro, há uma beira de abismo, você pode pular. Não vejo perigo aí. Distância curta. Como quem salta de uma poltrona a outra de uma sala de estar convencional. Por mais que eu olhe a imagem, só vejo corpos jogados, estirados em sua imperfeição. Fetos inconclusos. Imagino também que alguém tirou esta foto da cabine de um avião sobrevoando uma pequena extensão de floresta verde. Cinza, no caso. Qualquer um poderá ver muitas coisas nesta peça e até esquecer que se trata de um cérebro humano. De uma identidade desaparecida. De um ser vivo que carregou dentro de si dezenas de corpos de outros seres não nascidos. Que dormem. Dormem e quem sabe pensam ainda depois do seu alfa morto. O centro de comando. Pensam no seu alfa morto e imóvel no formol. Nesta foto. Na minha tela. Pensam nos motivos que levaram o alfa a deixá-los à míngua, em risco, quando estavam ainda em processo de desenvolvimento para saírem da caixa, da casa, da cápsula, dos hemisférios. Teria o alfa morrido para não deixar que eles nascessem? Estaria programado nas células do centro de comando este autoabortar ou mais uma vez o acaso se impôs? O deus, como chamam. Esses filamentos, essas partes de um eu, desejavam ter suas próprias conexões independentes para desligarem-se do mestre num futuro próximo? Mas eles formavam o mestre! Cada partícula do centro de comando. Posso concluir pelo cansaço que há um suicídio biológico programado aí. Que bobagem. Filme B. O todo eliminando as partes para que não se tranformem em outros todos. Minhas especulações bobas andam em círculos e me sinto numa roda de criança. Eu não deveria estar perdendo um precioso tempo de sono para ficar olhando lobos cerebrais. Não é minha área de especialização. Depois de tantos anos analisando algas, não esperava que um cérebro humano pudesse me chamar de tão longe. Talvez eu queira apenas passear por estas vielas. Aqui, em minha cápsula, neste hemisfério, sinto saudades de casa.







18.12.14

"Fale aí uma frase de Nietzsche" - título provisório - roteiro inacabado


The individual has always had to struggle to keep from being overwhelmed by the tribe. 
If you try it, you will be lonely often, and sometimes frightened. But no price is too high to pay for the privilege of owning yourself. 
- Nietzsche



Uma caveira é uma cacofonia de ossos e pensamentos civilizatórios. A caveira que desce o Pelourinho conversa comigo com voz de película:

-- Estou com uma vontade horrível de fazer xixi.
-- Moi aussi.
-- Estou com uma vontade horrível de fazer filme de terror.
-- Moi cocô.

Grave o áudio separado, bote uns galos cantando, uma perereca gugudadaísta recitando o vocabulário técnico e crítico da filosofia. Tem uma Copacabana na Bahia, porra. Gá-gá-gá. Abaixo a lei do inquilinato e a mão única na Voluntários da Pátria. Sons de friture, de telefone, de passarinho piando, de cachorro suspirando. Nós vamos conhecer outro mambo na velocidade da fuga. Cinema de terror experimental marginal. 

Meu nome é Óbvio. À noite eu nunca penso o que vou escrever. Só puxo a caneta e digo, oi. Eu queria ter um filho chamado Felicidade. O Felicidade é um pico de adrenalina malhada na veia do cordão umbilical. É, é isso mesmo. 

Eu queria fazer um filme com Continental sem filtro. 

-- Tem um bebê chorando no cinema brasileiro.
-- Liga a televisão.

Assim não dá pra dormir. Meu anjo da guarda é o seu babador. Um príncipe voador inglês de babador. Eu espero um emprego. Eu espero uma sobremesa no deserto. Tudo certo. 

Fale aí uma frase de Nietzsche segurando um Continental sem filtro debaixo de um pé de buceteiro carregadinho de flor. Mostre o ticket pra Ajuda. Entre na Kombi com um maço de versos e uma camisa azul. Cabelo repartido no meio. Chutando metáforas de pedras portuguesas. Dê um trago profundo agora. Olhe pra câmera. Finja que ela é um embrulho. Olhe pro chão agora e vai subindo devagar, quebrando em pedacinhos. Assim, tá legal. Agora vire e corra pra rua. Na direção do lixão. Depressa. Eu vou indo atrás. Isso, vai vai. Vocês aí, desocupem esse banheiro, porra. Que os bêbados calem a boca. Me tragam as rimas de amor. Quem escreveu essa merda? Eu pedi poemas de cama, não poemas de quem está de cama. Foda-se. Vai sair assim mesmo. Essa elefantíase poética. Corra, minha filha. Estou gravando. Velho, tire esse bigodão de Zapata. Isso aqui não é Que Viva México, é cinema capitalista, marginal mas capitalista. Deu pra entender? Foda-se. Tehuantepec, era só o que me faltava. E não quero ninguém de buceta raspada. Um corpo sem pentelhos é manequim de vitrine. 

Pense em mim, não precisa mais nada. Eu te dou uma varanda de frente pro Rio-Sul com papéis molhados de suor sobre a mesa de jantar. É aqui que eu moro. No ponto mais alto desse chão riscado de pneus que um coração-reboque atropela. Abaixo a ditadura e Viva Antonioni montado num jegue. Não, nada de ditadura. Nem psicoblablablá. Que jegue o quê. Corte isso. Tu tá pobre, é? Cadê o vampiro? Dando as cartas no vento de Trancoso. Ponha som de vento entre cercas concertinas. Quero o som do aço. Quero estrangular a água. Chame a moça da limpeza. Nós vamos precisar importar os grilos do Qatar? Você aí, ande logo. Preciso da mão do macaco ainda hoje pra cena no Farol.

Meu nome é Óbvio. Gosto de poesia mas não entendo nada. Não estou aqui pra isso. Não tenho nada a ver com isso. Gosto de um pouco de tudo e não tenho a ver com nada. Puxa esse cabo aí. Godard. O Penetralium indevassável de Keats. Penetralium é buceta, é? Pornô japonês. Eu preferia estar fazendo pornô japonês, caralho. Plantando mamões na neve. Um curso de rumba. Não, não é uma Kombi. É uma viagem. É a viagem o significante. O que a gente é. Uma poça de sangue coagulado quebrado em pedacinhos. Não dá pra confiar em ator ioiô da casa da mãe. Vamos refazer a cena toda. Puta merda. Por hoje chega. Um dia vou de stand up paddle até 2082 e fico por lá. Comendo mentirinha sob céus estrelados da madrugada. É a queda de Ícaro, filho, a queda de Ícaro.

-- Aí, Tita, onde eu botá fica. Aqui só fica quem vai dormi. Eu e a Bilí.






16.12.14

Rede






não estou interessada em ver o tênis que você usa = os peitos da sua namorada = o que você come no almoço = para onde viaja = onde fica = a cara da sua mãe = talvez a sua cara = os seus pezinhos no mar = o que fuma = o que cheira = os drinques que pede no bar = suas unhas sujas segurando o que for = as bundas que viu na rua = o seu filho = o seu sexo = a sua crença = o seu partido = o seu vestido = a sua gravata = a sua lata de leite Ninho = o que ganhou de presente = se foi a Paris = se sambou no Carnaval = o que vê na TV = quantas noites não dorme = o seu desodorante = o seu prato = o seu rabo = a lista dos seus amigos = a foto dos seus amigos = o nome do seu psiquiatra = o perfume da sua dermatologista = a sua arte contemporânea = o seu cinzeiro cheio = a sua pelúcia de estimação = o seu chão = a sua Nikon = onde mora = quanto tempo demora = se é virgem = o seu signo = o seu digno = a sua bota = a sua arma = o seu quero-quero = 


mas se você tiver uns versinhos, eu os lerei de bom gosto.










11.12.14

uma coisa pra lembrar





o bom de sair não é ver gente
é ver os prédios novos
prédios antigos
portarias de mosaicos
varandas balaústres
muralhas de vidro
farmácias abertas
pisos escorregadios
tomar um mate gelado
fumar escondido nas garagens
acompanhar o meio-fio
fachadas de pastilhas azuis
comprar chocolates
às vezes eu quero voltar
ver bicicletas na vitrine
nuvens carregadas
um comboio de maritacas
papéis voando no chão
namorar produtos de limpeza
pianos de demolição
fazer amizade com cães vadios
entrar num banheiro público vazio
lavar o rosto e sair pingando
ler cartazes nos postes
o preço do prato do dia
esperar a noite descer
chamar o elevador
e dar num andar qualquer
sentar nas escadas
entre o clínico geral e o dermatologista
apertar a bolsa contra o peito
passar por uma churrascaria deserta
um salão de cabeleireiro
ouvir as rodas chiando no asfalto
ouvir cores de vozes estranhas
vermelho amarelo verde
esperar a noite ficar
uma coisa pra lembrar
e voltar por outro caminho
o bom de sair tem gosto de quarto de hotel
mergulhado na escuridão
tem gosto de bombom adormecido 
na mesinha pra te acompanhar




beijo molhado de sangue


Numa encarnação passada, me imagino trôpega,
apoiando-me nestas paredes da Villa Conti de 1860, 

tossindo sangue como uma tuberculosa. 

Pensando em alguém como na dor. 

Ou em ninguém, 

só no sangue a manchar o meu vestido. 

Olhando para o céu, 

à procura de um deus,

de uma cura,

de uma roupa limpa, 

e me engasgando com mais uma golfada.

Talvez haja um baile acontecendo na casa ali em frente.

Uma casa coberta de limo.

Com sorrisos cobertos de limo

aos quais eu acrescentaria um beijo na face.

Um beijo molhado de sangue.

Talvez a casa esteja abandonada

e eu não pertença mais a este século.

Nem a nenhum outro.

A fotografia não me alcançou.

Fotografias não me alcançam.

Em algum lugar do meu rosto

há um lenço manchado de sangue

que eu nunca encontro.








9.12.14

Mateus




Eu queria viver como Marguerite Gautier e morrer como Anna Karenina. Eu tinha só 13 anos e ele 19. Viver entre lenços ensanguentados um amor proibido, uma amizade muito particular, não publicada, porque todo amor vivido às claras é igual. Saber que as rodas de ferro que haveriam de me matar já estavam prontas, azeitadas e rolando de uma cidade a outra. Talvez eu tenha levado os romances trágicos muito a sério. O sangue derramado. Talvez porque meu nome seja Mateus. Quando eu amo, entro no meu quarto e fecho a porta. Amo em segredo, num lugar oculto. Eu e ele. Não nos amávamos de pé nas sinagogas, no pátio do colégio, ou nas esquinas das ruas para que todos vissem. Em público era um olhar rápido. Uma troca de sorrisos respeitosos entre desconhecidos. O perfume do corpo bastava quando ele passava por mim. Suas camisas com cheiro das manhãs. Suas mãos estendendo uma esmola, virando uma página, acendendo o cigarro. Os lábios tristes tocando o copo de vinho para não gritar ou ranger os dentes. No escuro, após o gozo, decidíamos o destino das nações posicionando exércitos num mapa invisível sem sairmos do nosso terreno baldio. Os generais do terreno baldio. Entre nós o amor não era vivo, dormia. Numa cidade de ouro e prata. E só nós dois sabíamos, não as pessoas da casa, nem os campos de trigo, céus ou árvores. Desertos que vão e vêm. O amor proibido é uma espécie de doutrina surdo-muda. Uma menina sozinha deitada na cama que das migalhas faz sete pães. Eu poderia lhe dizer muito mais, meu filho, embora eu mesmo não saiba bem o quê. Ser pai ou mãe de família é uma notícia que se espalha e contamos uns aos outros sem entender bem o que significa. Quando acabamos de ler um romance, não sabemos o que vem depois. Não saberíamos escrever este depois. O ponto final é o cansaço do autor. E não espero o seu ponto final à minha história. Não espero o seu perdão. O seu amor às claras. O meu peso na sua balança. Um filho é como olhar para o interior de uma casa pela janela. Como um barco à deriva no meio do lago. Você acha que vai resgatá-lo, mergulha, mas vê que a água é feita de tinta. Funda. O barco, uma imagem. O lago, a moldura. Você está preso até à garganta. A deriva foi mera ilusão de ótica. Você não precisa mais se preocupar com o seu pai. Para onde estou remando os meus ossos. O meu repouso de chumbo. Leia esta carta e depois disso me ame como puder. Como quem escuta atrás das portas. Um amor que sei não será mais vivo como antes, nem morto. Adormecido. É o que me basta.





28.11.14

A Aventura de Antonioni





Monica Vitti encontra a amiga na periferia de Roma

Monica Vitti parte para Roma num carro acelerado

Monica Vitti e seus cabelos ao vento

Monica Vitti espera na piazza a amiga fazer amor em Isola Tiberina

Monica Vitti num iate lotado para as vulcânicas Ilhas Eólias

Monica Vitti vendo a amiga mergulhar de touca nas águas de Basiluzzo

Monica Vitti subindo e descendo pedras da Lisca Bianca

Monica Vitti olha para o horizonte do mar Tirreno

à procura do filho de Poseidon, de um sentido para a vida,

da amiga desaparecida ou de um tubarão imaginário

Monica Vitti e seus cabelos ao vento

Monica Vitti segue de trem a Palermo

Monica Vitti angustiada na Villa Montaldo com amigos do iate

Monica Vitti parte para Troina em busca da amiga talvez morta

Monica Vitti encontra o noivo da amiga e vão até Noto,

onde fazem amor numa cidade deserta ao lado da via férrea

Monica Vitti segue com o noivo da amiga para o Trinacria Hotel

Monica Vitti assediada na rua pelo populacho masculino da cidade

Monica Vitti tocando sinos no Chiesa del Collegio

Monica Vitti com insônia no San Domenico Palace Hotel em Taormina

Monica Vitti em desespero pelos corredores panorâmicos do hotel  procura 

o noivo desaparecido da amiga desaparecida por quem se apaixonou

Monica Vitti traída

Monica Vitti perdoa

Monica Vitti culpada

Monica Vitti olhando compassiva para o Monte Etna

que chora e descansa no horizonte

Fine



26.11.14

Feira de Desgraças





Frank esta noite ficou sozinho.

Como em todas as outras noites.

Mas não como esta.

Esta noite ele não iria beber. 

Nem reler os mesmos policiais de capas manchadas. 

Nesta noite ele se arrumou para ver a Feira de Desgraças. 

Estava cansado de detetives, luvas e louras platinadas. 

De revólveres, neblinas e vielas escuras de Chicago.

A exposição tinha vários stands espalhados pelo Calumet Park.

Dentro de cada stand há uma mulher que sofria algum tipo

de infelicidade ou mazela, descritas do lado de fora em cartazes.

Chorosa, numa mesinha, cada mulher esperava que os visitantes

se sentassem ao lado dela e lhe oferecessem solidariedade.

Uma palavra de conforto.

Um aperto de mão.

Um copo d'água.

Havia um prêmio, Frank leu no folheto.

A mulher mais desgraçada, escolhida pelo público, sairia vitoriosa.

Que prêmio era esse, ninguém dizia.

Se os infortúnios eram verdade, ninguém sabia.

Frank só podia imaginar.

Sob a chuva fina, aguardava sua vez na fila do stand 7.






23.11.14

O prisioneiro






Os dias passam.
Cada um mais curto do que ontem.
As paredes da cadeia sobem mais um pouco.
Quem é de vaca, escreve vaca.
Quem é de mar, escreve mar.
Quem é de esgoto, escreve esgoto.
A vaca lança-se ao mar pelo esgoto, anoto.
Escrever passa.
Cada dia mais curto do que ontem.
Você enjoa desse imaginário de Guantánamo.
Já sabe o que vai sair dali.
Que não vai sair nunca.
A minha sarjeta é um colchonete sujo de versos inúteis.
Os seus poemas encapuzados perderam a graça.
A rotina do medo não lhe causa mais tremores.
Encantamento.
E você pensa, Eu estou me enganando.
Se engano a mim mesmo, engano um ninguém.
O tempo podia ser generoso e arrombar as grades de aço.
Mas o tempo não é generoso. É aquilo só.
O tempo é uma escolta que nos arrasta por corredores escuros.
E na enfermaria mais um poema me vem por sonda intravenosa.
Não sei se será o último. Vomito.
Não, não vou escrevê-lo.
As luzes da enfermaria me cegam.
O médico é uma palavra com máscara.
Os interrogadores querem versos.
Belos versos que os façam chorar.
Eu não sei fazer ninguém chorar.
Guardo minhas lágrimas num cofre de sangue.
Todos os poemas que fez aqui foram falsos testemunhos -- eles dizem.
O médico se aproxima e meu peito sufoca.
Sua serra encosta no meu braço direito.
Você vai fazer um poema nem que seja pelo rabo, filho da puta.




17.11.14

as vacas trêmulas de james dean




Eu queria ficar brincando no tumblr

mas tenho que trabalhar

Eu queria ir do Soho a Barbara Stanwyck acendendo o cigarro mil vezes

ver todos os rádios antigos

anunciando desenhos de Picasso

a bainha da saia de Rita Hayworth

a princesa Grace falando com um pato

como se faz clarinetes

poemas requentados

laranjas de novembro

verdes metálicos

canos tubos e pontes

pizzas praias e guitarras

o vestido de luto da rainha Vitória

numa explosão de photoshops e gifs

Fernando Pessoa andando num skate invisível

Ava Gardner assoviando canções tristes

Eu queria ficar para sempre nestes paraísos da neutralidade

só por ficar

só por ver

pelo prazer de ver

alfabetos abstratos

escadas chinesas

minha bicicleta congelada

os fados que você publica, meu amor

mas tenho que trabalhar

para encher nosso carrinho de sopas Campbell's

e ordenhar as vacas trêmulas de James Dean em Indiana








12.11.14

Antes de amanhã cedo




Tenho tanto por fazer
e uma lassidão inadiável
resolver papéis de aposentadoria
renovar minha oftalmologia
bater ponto na ginecologia
fazer uma nova identidade
a velha escondeu-se em algum 
lugar de sua casa-grande
e eu sou uma xerox
transferir o título de eleitor
havia um leite chamado Vigor
entregar-me a acupunturas
laçar veias em exames da rotina
ureia glicose creatinina
abrir o peito à cardiologia
tanto tanto por fazer
que um dia é mais um dia
não faltar à terapia
acumular milhas de psiquiatria
enquanto fico parada
onde todo mundo já foi
tenho tanto por fazer
e só me levanto para um poema
malversado 
mal-acabado
um lumbago
quando a Poesia está de pé 
há muito tempo
ocupando o banheiro
seu troninho de dossel
eu fico aqui -- mão no queixo
sem saber concluir essa bosta








11.11.14

La monja



Una lástima que no quieras acostarse con monjas. 
Que hacer ahora con mi vestimenta carmelita? 
La túnica castaña, lo escapulario. 
La capa blanca. 
Que cosas tan placerosas y contemplativas podríamos hacer bajo la capa blanca. 
Mostrarte mi carisma descalzo de Antigua Observancia. 
Mi monte Carmelo. 
Mi roja vocación. 
Lástima. Pura lástima. 
Mi cuerpo tiene todos los síntomas de una fiebre tifoidea. 
Santa Teresa de Jesús!



10.11.14

Felicidade




Estou muito feliz com minha bipolaridade
minha depressão
meu pânico
minha esquizofrenia
minha neurastenia
nevralgia
parafronia
meu esse est percipi
suicidismo
suigenerismo
tetracromatismo
minhas plantas na varanda
o treponema pallidum do meu avô
a santíssima trindade
minhas mialgias
com o professor Adolf Meyer
o meu Minderwertigkeitskomplex
a língua portuguesa
e as toxicomanias
escoptofobias
sem falar na faux gastrique
sua mão inteira na minha vagina
meu impuberismo
minha versomancia
itens
mitemas e goethases
meu salmão com maracujá
você foi mas vai voltá
estou feliz com todo instrumentalismo
que sirva ao corpo, alma e sombra
como escrituras em espelho

só me deixa infeliz

o seu rasgo de caráter 
esse travesseiro de concreto
que você me comprou como 
a última palavra em design de interiores





9.11.14

7.11.14

Encontro às cegas





Você se chama Moema Paranhos de Oliveira?
Como vai?
Meu nome é Luísa Guedes Monteiro.
Moro em Passo Largadinho, sul do estado.
Ninguém conhece.
Você quer ser minha namorada?
Vamos nos conhecer?
Você tem nome de quem vive da beira do mar.
Mo-e-ma.
Não sei por que acho isso. Vai ver é cisma.
Eu nunca vi o mar.
Vamos à praia de Copacabana?
Comer pizza numa cantina italiana.
Eu fico nervosa em primeiros encontros.
Fico tremendo. Não sei o que falar.
Dar três passos já é uma longa viagem.
Três sílabas, uma noética.
Isso acontece com você?
Essa urtiga no estômago.
Não sou bonita, mas li muito Machado de Assis.
Muita mucelagem poética.
Também não sou feia, sou abstrata.
Adoro noz-moscada, Charlie Parker, sirene de bombeiro,
e acho que nuança deve se escrever nuance,
como no francês.
Sou simpática. Numismática.
Você deve saber que tudo tem dois lados.
Mas fale-me de você.
Você que gosta de chamar os namorados de Mozi
e nem desconfia que Mozi era um rival de Confúcio.
Você que está longe de ser feia e quer ser atriz principal
num monólogo nô de Plínio Marcos.
Você também treme num primeiro encontro
mas fala pelos cotovelos para esconder
o que sente o que não sente.
Você não quer muito ir à praia de Copacabana
mas por um amor efêmero é capaz de ir até o Novo México.
Afinal, para onde escoa aquela areia toda?
Você que adora luminárias, neurolépticos e narcisos,
prefere sempre mungunzá a pizza.
Você que nunca namorou uma mulher teme -- ou espera
que Luísa seja a mãe fundadora do lesbianismo estatal.
Com políticas púbicas que não lhe deem muito trabalho.
Que arranque sua calcinha no banheiro do Mamma Rosa
e tire da cartola um orgasmo lento, progressivo e histórico.
Você, Moema Paranhos de Oliveira, mal contém
suas carnes, medula e ossos girando em fogo persa.
Vai se encontrar sim, queira ou não, não vê a hora,
com Luísa Guedes Monteiro em Copacabana,
Mucuripe ou no diabo que nos carregue.




3.11.14

Vãos




Sou uma pessoa boa
varro o chão
e deixo o cloro agir
na porcelana branca
o importante não é ser herói
fazer um bom negócio
tirar da terra o sustento de dez bocas
tirar de dez bocas o sustento de uma terra
o importante é deixar a porcelana branca
sem mácula
núbil
para que possam ver que está limpa
e tenham prazer em cuspir ali,
em vomitar naquele branco absoluto,
em defecar como quem sonha cataclismos
a paz entre os homens
a imortalidade da alma
a aniquilação do Aedes egípcio

Sou uma pessoa boa
e levo tudo isso em consideração
quando tiro as luvas 
e deixo o cloro agir
na porcelana branca
desde criança tinha essa sensação
uma fatalidade genética
um dom por escrito
ser uma pessoa boa
o Criador atochou toda a bondade do mundo
no meu fardo e tocou o cavalo comigo para longe
eu não preciso ser feliz
não preciso de muito dinheiro
a pessoa boa ama tudo que a cerca
os passarinhos
os gestos pequenos 
o abrir uma caixa de fósforos
o relojoeiro das avenidas
o trem na plataforma
o intervalo da timidez
os injustiçados

Hoje seria mais um dia para ser uma pessoa boa

entanto acordei de um sonho ruim 
numa cidade absurda
onde faço toda espécie de maldades 
sem grafia
sem regras
sem lei
e sinto-me mal
uma angústia me escorre dos poros
como ouro falso
eu não devo ter limpado direito
a frincha das portas
uma pessoa boa precisa lembrar
de todos os vãos
para que o sono não lhe faça mal
uma pessoa boa não usa luvas
toca a porcelana branca só com a ponta dos dedos.