28.1.14

Cabeças humanas decassilábicas




De longe avisto aquela 
cabeça humana decassilábica 
sei que é Domingos descendo a rua 
até minha porta. 
Deve ter passado noites chupando veias 
poéticas de gregos e latinos. 
Domingos quer imitar poetas arcadianos 
sem perder seu gibão moderno. 
Sem tirar a mão do tempo. 
Acha que poderá se trocar palavras, rimas, matérias. 
Está num devir neopombalino, 
para galanteio dos Amigos, 
exatamente o que acho de 
cabeças humanas decassilábicas 
sem poder dizê-lo. 
O instruir e deleitar horaciano 
combina bem com a redondilha perfeita 
do pescoço do meu 
Cavalo. 
Vou até o curral e preparo a montaria. 
Domingos e eu combinamos esticar 
a licença de El Paso até o Parnaso. 
Uma jornada para dar vazão a pensamentos 
brancos sem musicalidade, assim disse ele. 
Creio que vamos demorar nessa fatura, 
hoje estou muito emotiva, 
duvido que possa conter 
minhas consoantes/toantes 
em círculos, quadrados, triângulos. 
Escolho o terceiro buraco da fivela da barrigueira, 
faço os últimos ajustes no peitoral, 
na embocadura. 
Domingos cruza a porteira, aproxima sua 
cabeça humana decassilábica 
de mim. 
A cabeça sorri, 
o tom em vez do som. 
É isto que chamam de estro. 
Deixo dois dedos de folga na focinheira.




25.1.14

O arenque



Não há nada mais irritante do que linguinha mole no mamilo.

Vou lendo todos os livros de Auster e não entendo por que continuo.

Rabada com garfo de plástico e polenta é o prato do dia.

A única opção do cardápio, o único bar em 20 quilômetros.

Não gosto mas vou comendo.

Linguinha mole, Auster e rabada com polenta

são coisas que um dia temos de enfrentar na vida.

O vento quando bate esfria o mamilo molhado demais.

Para esquentá-lo um dawamesk com café forte.

A montanha ao lado libera íons positivos e me energiza outra vez.

Olho para o céu e procuro o ozônio da revolta de John dos Passos.

A esta altura a rabada já apodrece no meu intestino.

Explodindo com muito estilo, não brilha como o arenque.






23.1.14

Tudo azul





hoje é meu aniversário

por favor não me procure

faça de conta que eu morri

nada de e-mail cartas flores

estamos no verão

e não vou responder

talvez eu coma uma pizza

e nem lembre de mim



solidão com rosto de guaraná

um aniversário é um ano a menos

na simples arte de me matar







21.1.14

I had a farm in Africa






"Ei! Vamos lavar esse cu rápido, vai que acaba o gás!", é o que a foto me diz. Intitulo. Talvez esse homem já soubesse o que eu não sabia. Que a Terra era redonda para que ninguém pudesse ver ninguém de muito longe. Talvez eu já desconfiasse, sem ele precisar dizer, que no seu mundo de vacas, eu era a mais vaca de todas. Que bastava pegar o ritmo para a música ser sempre igual. As nuvens no céu eram uma das poucas coisas que ele não podia carregar ou passar o trator. Entre o caminho do rio e a cadeia de montanhas, seus olhos se apertavam para não deixar a água passar. Para desviá-la para suas terras. Os seus pulmões. I had a farm in Africa era uma frase que eu ouvia à noite na rádio de ondas curtas. Alguém contando uma história. No outro lado do mundo, talvez todos soubessem o que eu não sabia. Eu era jovem e os jovens são animais selvagens. Esse homem sabia. Animais selvagens se criam sozinhos, com o ímpeto da fome. Você só saberá que é selvagem quando estiver no meio dos homens. Quieto. Seu olhar atravessará a paisagem à toa, o corpo matará a sede no rio, mas as garras não sairão do lugar. Aí então estará seguro. Completamente em paz com o passado, com a Terra, e sua música.




20.1.14

Tanta morfina




Ele sua a camisa para se promover. Comparece a tudo. Onde houver gente reunida online e off, lá está o dedinho dele. E ainda é paranoico. Aposto que se ler isto aqui, vai achar que é pra ele. Não é. É pro outro. Ou outra. Daqui de longe não vejo bem. Aquilo é um homem uma mulher ou um poeta? Um rato, corrija-se. A expressão conhecida é essa. Ando esquecido. Sempre andei esquecida, mas hoje até quando se esquece um prego no reto é Alzheimer. Tudo é Alzheimer. Será que ninguém entende que não há espaço numa cabeça para caber tanta gente, tantos números de ônibus, tanta morfina? Botar um piercing na buceta não é Alzheimer. É moda. Eu gostaria de ser um homem uma mulher um rato, mas tenho de ficar escrevendo isso aqui rápido e não há mais tempo. Daqui a pouco vou querer escrever outra coisa porque me canso de temas e personagens. Eu poderia escolher as opções texto preto e fundo preto. Nem eu saberia do que estava falando, como nas filas de cinema de shopping, numa palestra sobre os poderes implícitos da psiquiatria e das palmeiras imperiais no Segundo Reinado. Mas só que eu tenho um vizinho que é homem. Debaixo dele tem uma mulher, debaixo da mulher tem um rato, debaixo do rato tem um poeta. Daqui de longe não dá pra distinguir quem é quem. Além do Alzheimer, vão dizer que sou cego. Cega. Malditas desinências de gênero. O português é uma língua sexista. Sexo-segregacionista. Não fossem os poetas portugueses, não gostaria dessa língua. A palavra gênero já é escrota. Lembra supermercado, faculdades de letras. E o que é o Brasil? Grandalhão. Um brucutu de costas pro universo, marombando suas placas tectônicas. Esta cachaça esparramada no mapa. Você vive 100 anos e não conhece inteiro. Todas as cidades, ruas e buracos. Principalmente os buracos, a melhor parte de todas as coisas. De um corpo. De um livro. De uma casa. No buraco de um livro se conhece o autor. Você fica rastejando ali dentro para entender o que ele não está dizendo baixinho. Uma casa se finca num buraco maior infestado de buracos menores que a massa não cobriu. É ali nos buracos menores que alguém chora escondido, fala sozinho e se masturba. Isso. Masturbar-se. Acho que chega agora. Tenho outras coisas pra fazer. Com licença. Passe bem. E vossa mercê também.





19.1.14

Uns imersos





se você eu não quiser ouvir

eu me despeço

eu me resguardo

tenho pecados com a sua sombra

uns imersos

uns em claro

no corpo que te dei

não se procure mais

eu te peço

eu te aguardo

para ver se ele volta pra mim


e você poder dormir

enquanto o rasgo








Georges Bizet



Acho que ainda ouço 

Oculta sob as palmeiras 

Sua voz suave e sonora 

Como o canto de uma pomba. 

Oh noite encantadora 

Divino êxtase

Oh encantadora recordação, 

Louca embriaguez, doce sonho! 



Na clara luz das estrelas 

Acho que ainda a vejo 

Entreabrindo seu longo véu 

Na cálida brisa da tarde. 

Oh noite encantadora 

Divino êxtase

Oh encantadora recordação 

Louca embriaguez, doce sonho! 


("Je crois entendre encore", ária da ópera Les Pêcheurs de Perles, de Georges Bizet. Estreada em Paris, no ano de 1863, a ópera foi um fracasso de público e crítica. Foi preciso Bizet compor Carmen, seu grande sucesso, para esta ópera ser reconhecida, e postumamente. O vídeo acima é belíssimo, mas obviamente não é o Sri Lanka, onde a ópera tem seu ambiente. Trad. do texto, MP.)

17.1.14

Seu lugar

Carta a Emílio





Dores do Indaiá

Bom Despacho

Carmo da Mata

Cláudio

Belo Horizonte

Não gosto de sair de casa, Emílio

A névoa entra nos sinos

A névoa entra na alma

E tange todo o seu azul para o céu

De pedra e cal descompassado

Derramado por uma corda de sisal

São João del-Rey

Ouro Preto

Diamantina

Sabará

Por lagoa do Pilar

Essas vozes de bronze molhadas

Saídas da torre de boca para baixo

De trens de ferro e montanhas na caixa

De clavinas, facões, pólvora e bestas de carga

De uma légua de onde todas as outras partem

Dão o repique metal da Boa Morte

A outras almas cruzadas em público

Sinais visíveis de coisas invisíveis:

Não chora não, que eu vou pro céu

Não chora não, que eu vou pro céu

Em duas séries de dobres simples para mulheres

Três séries de dobres simples para homens

E até nessa hora, Emílio, até nessa hora, arremate

Uma mulher sem alma não deve sair de casa







Récita

15.1.14

eu não usaria esta palavra, mas é o que parece




tirei as calcinhas e quis lhe mostrar 
o processo por trás do hambúrguer
ele quis saber o segredo da Coca-Cola
aquilo não ia dar em foda
era uma ocupação inimiga
arreganhei minha batata frita
passando  ketchup com sal
ele nem tremulou as sobrancelhas
não preciso decidir nada agora
tenho seis mil dólares e muita paciência
ainda acho uma boa ideia
tudo na vida tem exceções
o tempo certo e caçadores de bruxas
você só precisa ver quem está no elenco
e ouvir vozes bem diferentes do inferno
desabitado o suficiente para nos salvar






13.1.14

Matéria-prima





A matéria-prima continua sendo a menina,

folha pautada que procura

no papel-manteiga do sanduíche

aquela coisa qualquer que é o seu nome,

antes de mudá-la o corpo ao virar a esquina.





4.1.14

Porque choram os homens




Teu prédio tem pilotis brancos.
Eu sei onde você mora.
Seis andares.
Fachada em pastilhas vinho e bege.
Eu sei bem onde você mora.
Grade de fechamento externo.
Rua sem saída.
Bairro modesto.
Você não disse. 
Eu sei.
Uma cigana me contou no Google Maps.
A da beira do caminho.
Uma ave sem ninho que
do galho mais fraquinho
ouviu você cantar Moody’s Mood for Love.
Para que se ocultar.
Eu sei onde estás e estarás
Sozinha ou acompanhada.
Pousando na lâmpada apagada.
Putrescente na essência amadeirada:
Porque Choram os Homens.
Am I insane or do I see now heaven in your eyes?
Eu sei meu bem onde você mora.
Venha me visitar.