26.2.14

Horizonte de violoncelos




O sr. Krupp bebeu água sanitária.
E foi um lindo dia de sol.
Ruas riscadas na chama do gás.
Supermercado vazio.
Passarinhos ciscando grãos no corredor de arroz.
O sr. Krupp toma um espresso.
Olha o mostruário de salgadinhos.
Os pastéis de pizza acabaram de sair.
Simétricas lápides quentes na bandeja.
Fazia calor ali dentro daquelas vozes.
Deixou uma gorjeta no balcão.
O sr. Krupp não entendia de supermercados.
Por que não servem bebida nesta merda?
A menina do crachá devolveu a gorjeta.
Enfie no cu o seu dinheiro, parecia dizer.
O velho sentiu-se sujo por aquela menina limpa.
Poderia estrangulá-la se pelo menos ainda quisesse.
O sr. Krupp voltou atrás pelo mesmo caminho.
Um dia teriam filhos, netos.
Assim que esta guerra acabar, querido.
Uma grande família de porcelana chinesa.
Um novo emprego na fábrica do tio.
Uma casinha bem longe daquele inferno.
No horizonte de uma aposentadoria de violoncelos.
O neto que lhe pediria para filmar suas memórias.
Apalpou uma batata que cheirava a merda.
Nunca saberemos de onde vem estas coisas.
A comida que comemos. As estações do ano.
Seu olho de bola de gude. A lesma no papel de parede.
Os peixes que não sabem remar. Cores que se afobam.
A garganta de chumbo dos monumentos.
A imbecilidade do neto que o comovia.
Sua imaturidade se pondo de pé, fazendo as malas.
O sr. Krupp não conseguia mais ler.
As letras se mexiam e saíam pela cortina de gaze da janela.
Herói de guerra.
Sua risada ecoou entre os congelados.
Um dia casaria com a menina limpa do balcão.
O sr. Krupp agora só precisava molhar os lábios.


  



21.2.14

Senhoras tristes ouvem Chopin na sacada do Cosme Velho




Senhoras tristes ouvem Chopin na sacada do Cosme Velho.

Ônibus resfolegam sobre os trilhos de suas avós.

Por baixo da música operadores orientam o tráfego aéreo

do Santos Dumont e não liberam mais pistas para bondes.

O rádio da pensão é um farol que enconcha uma onda

após a outra uma onda após a outra numa página inteira.

À mesa Dona Carolina Augusta passa a limpo o soneto fúnebre

que lhe será dedicado como flores num recanto dos dormentes.

Senhoras tristes ouvem Chopin na sacada do Cosme Velho

estendem a mão e deixam o bonde ir embora.







15.2.14

Marítimas




Na cama, ele cheira a câmara-ardente,

um grego chegando às praias de Troia.




Noturnos





O vento bate na caixa de curativos 

aberta ao som dos Noturnos.

Cercada por familiares e amigos,

ela oscila no tempo mais um pouco 

e tomba por causas naturais.

A letra manuscrita no atestado de óbito

bloqueia a passagem do ar.

A ferida, toda coberta, ainda respira.








11.2.14

Um verão em Iasnaia Poliana





Ontem terça

Amanhã terça

Depois de amanhã terça

HOJE terça

A natureza -- inútil -- naturalesce

Abre e fecha as pernas

Para o sol envelhecer depressa o bilhete do suicida

Morto ontem nessas terças

E vendido nos leilões com o Fabergé militar em aço

Leio agora no Izviéstia







7.2.14

mais asseado que a poesia

                                                     

                                         a montagna o bosque  o rio
os cabelos sussurrantes
a lua refletida nos paens
no quadradinho feito
para encaixar na tua boca
coletas impostos 
és poeta
como nos tempos de Atenas
de estrênua inércia
cada crise parece a última
comes só o que faz mal
na figura de alguém
eu coço tuas costas e tu
não coças as minhas
escrevo com o pé
nas costas das vizinhas
no espelho da cama
todo pau se alevanta
não vês o mesmo
debaixo da manta
coleto impostos
sou poeta
e cada verso parece o último
perdido de onde nada mais
podes obter
amar por amar
amar por loucura
amar por doença
faça o teu preço
depena-me
vista a roupa de uma parente
de uma amiga
da esposa do tira-dentes
e deita-te comigo
como lágrimas nas fornalhas
peito contra peito
um sinal na virilha
de duas sílabas
sem cânone fixo
és poeta
no prelo do meu adultério
coleto impostos
com os rins erguidos
ao teu prazer
fora de casa não há nada
mais asseado que
a poesia




And that, much more than this




A gente vai ficando velho e parece que ser rebelde não se encaixa mais. Há um delay. Todo velho rebelde parece Serguei. Você devia ter morrido aos 21. Aos 27 estourando. Mas o ônibus passou e você foi ficando no ponto. Com suas caminhadas, sua hidroginástica, seus remédios de pressão, seus poemas de Manoel de Barros. O rock passou, o punk rock passou, o pós-punk passou e alguma coisa lhe atrai irresistivelmente para o som do Sepultura. Você que entrava em igrejas barrocas vazias para fugir do calor e da humanidade, ansiando por um pouco de silêncio mortuário em goth rock, agora se vê tentado a ajoelhar e rezar. Na mesa do bar, num encontro com velhos amigos da juventude, o garçom servirá o passado junto com o chope – ou a água mineral. Alguém sempre dirá, “Você se lembra do fulano?” Não, você não lembra. Lembrando ou não, a resposta será, “Pois é, morreu”. Daí você quer saber como. Na sua idade é infarto ou AVC, só pode. Não, fulano se matou. Se matou? Depois de velho? Você que era rebelde e dormiu no ponto não entende. Aturou tanta coisa pra chegar até aqui e se mata? Desiste no último minuto antes que desistam dele? Mas você é um idiota, não percebe que é disso que se trata. Do alto da sua imbecilidade parece não conceder que um velho tenha direito de se matar. Não com um memorável pico na veia, mas com reles corda e cadeira, um tiro na boca. Como você que era rebelde ficou velho, acha uma afronta que outro velho que era rebelde volte a ser rebelde enquanto você bebe água de coco para renovar as células. Para você a rebeldia mora num corpo novo. Rebeldia em corpo velho é esclerose. Aquela fase em que os velhos falam o que bem entendem doa a quem doer e nem lembram do assunto e da sua cara. Você volta pra casa abatido, toma um Viagra e fode duas horas. O amor continua lindo e cansativo. Você põe um vinil do Sid Vicious para give you a fix, mas sua heroína agora chama-se Rivotril. Nem pra Serguei você tem mais culhões.






3.2.14

A primeira vez que abri os olhos era noite



A primeira vez que abri os olhos era noite. Lembro de luzes acesas no meio de uma escuridão larga. Mais tarde eu entenderia que aquilo devia ser a iluminação de uma rua, uma avenida, um centro de cidade. Não sei se da cidade onde nasci pois logo minha família trocou de lugar por outro mais ao norte, onde havia mais dinheiro e oportunidades de uma vida melhor sem pequenas misérias para atrapalhar. A outra noite de que lembro foi no meio do mar. Devíamos estar num barco pois vi água em vez de asfalto ao olhar para o chão. Foi uma sensação boa e virou lembrança na pele. Um forro de vinil. Eu vivia abrindo os olhos e vendo coisas, nem sempre as que devia. Meus ouvidos também escutavam o que não devia. Aos poucos fui percebendo todos esses buracos no meu corpo que traziam coisas que eu sentia boas e ruins. Devia haver uma escola, uma gangue, uma igreja, um mestre, para nos ensinar a não olhar ou ouvir o que traz ódio ao peito. Mestre era o que meu pai não era. Nem bandido. Um bêbado fracassado e ressentido espancador de mulher. Estuprador reprimido. Em mim nunca tocou ou eu o mataria. Usei chupeta para dormir até os cinco anos mas já sabia do poder de uma faca de carne bem afiada. Ainda criança dormia com uma debaixo do travesseiro. Minha mãe, como todas as mães esposas daquele tempo, era uma empregada doméstica do lar. Uma submissa esperando o momento seguro de atacar como uma cobra minúscula oculta num bananal. Cobras nem sempre se dão bem. Desde pequena eu queria matar qualquer filho da puta que julgasse erva daninha. Coisa ruim. Gente que bate em gente, que chuta animais, manda nos outros e fala demais. Gente rica, besta e arrogante. Os mentirosos. Os avarentos. Depois você vai vendo que precisa ser rico e mentiroso para matar a quem odeia e sair limpo. Rico de ódio, ir guardando tudo aos pouquinhos dentro duma caixa insuspeita de ressentimentos. O ódio é o motor que acelera meu sangue, endurece os músculos e me mantém sempre jovem. O amor, dizem não se vive sem amor, amolece e você pega vício nisso. Daí trepa como um animal para afastar essa moleza e vestir de novo seu colete à prova de balas. No sexo não resmungo eu te amo a ninguém. Talvez tenha sussurrado umas quatro vezes a pessoas diferentes que julguei merecedoras. E quem me dispensa como um saco de lixo, saiba ou não saiba, leva consigo o meu ódio eterno, sentimento que distribuo com a bondade de uma nonna dando doces às criancinhas. Não vou matar os vagabundos só porque não querem me foder mais do que já foderam. Se não matei meu pai, por que mataria um idiota que nem do meu sangue é? No fim eu descubro que sempre tive sorte no amor, principalmente quando me abandonam, essa é a verdade. Se você os visse agora como eu os vejo, me daria razão embora pouco me importe. Eu nunca quis estudar, não uso óculos escuros para lhe dizer isso. Preferia ficar remoendo, pensando, olhando o mar. Era muito bom. Mas mães querem que os filhos estudem para não cometer as mesmas merdas que cometeram no passado. Eu era pequena e me submeti. A criança que eu tive era muito covarde. Só os covardes odeiam. Deuses perdoam. Já perdoei muita gente. O meu pai. Deus. Me sinto forte quando perdoo. Quando compro presentes caros. Ajudo velhinhos a atravessar a rua. Ofereço um trabalho bom a um morto de fome. Costumam me chamar de egoísta, mas sou bem pior do que isso se você não souber tirar o melhor de mim com inteligência e um gesto suave. Claro que há momentos de magnanimidade, como no dia em que me casei e parei de trair por sentimento puro e altruísta. Não queria mais ver ninguém sofrer por minha causa, mas as pessoas sofrem de qualquer jeito, acabam achando um motivo mesmo numa mesa farta, num bolso cheio de dinheiro, num coração cheio de perfume, numa praia com gaivotas. Hoje tenho uma profissão aceita pela sociedade, dentro da lei, como minha mãe queria e fez. Minha vontade continua sendo a mesma da infância. Sair matando. Justiçando. E justiça como eu entendo só se faz com sangue. Quando estou sem o colete, escrevo poesias ridículas. Não tenho diários, minha vida está no que escrevo. Agora estou com o colete e escrevo em prosa. O mesmo resultado de merda. Ando com vontade de parar de escrever, não me leva a nada. Mas não escrever me aborrece. O vidro vira borracha. Parece que preciso falar com alguém, alguém que não conheço e não devo odiar ou amar. Alguém que não dorme comigo e não vê as lâminas debaixo do meu travesseiro, os meus cães de guarda na porta do quarto. Alguém que perde o tempo do ódio e do amor lendo coisas que gente como eu escreve. Indiferente. Sufocando.