27.6.14

Gênesis 2.0




Pois no futuro as paredes responderão, 
o inanimado far-se-á animado
e todas as coisas herdarão o pensamento. 
E quando a Morte cumprir o seu trabalho
com os homens, descansará.
E do seu descanso renascerá do pó
e da carne impura
cada homem renovado
à sua própria imagem e semelhança,
ou segundo sua vontade,
e criará novos céus,
terra e mar,
dia e noite, 
e todo o seu exército. 
Produzirá, multiplicará,
encherá a terra
e a submeterá à sua criação
vestindo-a com novos nomes.
Todo ser vivo que se arrasta
sobre a terra,
povoa as águas
e o firmamento,
se perpetuará 
segundo sua espécie 
ou brotará do ajuntamento 
de espécies diferentes. 
O bem e o mal cairão
das árvores e este será
o vosso alimento
se achardes adequado
um ou outro,
fruto e semente.

E assim se fará 
o sopro que se aproxima
do comprimento de um palmo, 
pois é o que está escrito
no programa de Deus 
desde o início dos tempos.





24.6.14

1 poema-conto de Sherwood Anderson





O mudo


Tem uma história. — Não consigo contá-la. — Não tenho palavras. A história está quase esquecida mas lembro dela de vez em quando.
A história é sobre três homens em uma casa numa rua. Se eu conseguisse dizer as palavras, eu a cantaria. Sussurraria a história no ouvido das mulheres, das mães. Correria pelas ruas contando-a mil vezes. Minha língua se soltaria - vibrando contra os dentes.
Os três homens estão em uma sala na casa. Um é jovem e almofadinha. Ele ri sem parar.
Há um segundo homem com uma barba comprida e branca. Ele está consumido pela dúvida mas às vezes a dúvida o deixa e ele dorme.

Um terceiro homem de olhar demoníaco anda nervosamente pela sala esfregando as mãos. Os três estão esperando — esperando.
No andar superior da casa há uma mulher de pé encostada na parede, na penumbra ao lado de uma janela.
Esta é a base da minha história e tudo o que saberei está destilado nela.
Lembro que um quarto homem entrou na casa, um homem branco silencioso. Tudo era tão silencioso como o mar à noite. Seus pés no chão de pedra da sala em que os três homens estavam não faziam som algum.
O homem de olhar demoníaco virou um líquido em ebulição — corria de um lado para outro como um animal enjaulado. O velho foi contagiado por seu nervosismo — ele ficava puxando a barba.
O quarto homem, o branco, foi ao andar superior ter com a mulher.

Ela estava lá — esperando.
Como a casa estava silenciosa  — como os relógios dos vizinhos tiquetaqueavam alto. A mulher do andar de cima ansiava por amor. Esta devia ser a história. Sua fome de amor dominando todo o seu ser.  Ela queria criar o amor. Quando o homem branco silencioso aproximou-se ela saltou para frente. Seus lábios estavam entreabertos. Havia um sorriso neles.
O homem branco não disse nada. Em seus olhos não havia reprovação, perguntas. Eram olhos tão impessoais como estrelas.
Na sala o demoníaco gania e corria de um lado para o outro como um cachorrinho perdido e faminto. O grisalho tentou segui-lo para cá e para lá mas logo se cansou e deitou no chão para dormir. Nunca mais acordou.
O companheiro almofadinha deitou-se também no chão. Ele ria e brincava com seu bigodinho preto.

Não tenho palavras para contar o que aconteceu na minha história. Não consigo contá-la.
O homem branco silencioso talvez fosse a Morte.
A mulher faminta que esperava talvez fosse a Vida.
O homem grisalho barbado e o demoníaco me confundem. Penso, penso e não consigo entendê-los. Mas na maior parte do tempo não penso neles. Fico pensando no almofadinha que riu durante toda a minha história.
Se eu conseguisse entendê-lo, entenderia tudo. Poderia correr o mundo contando uma história maravilhosa. Eu não seria mais mudo.
Por que não me foram dadas palavras? Por que sou mudo?
Tenho uma história maravilhosa para contar mas não sei como contá-la.


(do original "The Dumb", 1921. Tradução MP.)





20.6.14

Não diga nunca




Querido Max

Eu sei que você deve estar vendendo cerveja na praia e que por isso não tem tempo de aparecer aqui para nos ver. A cidade está cheia de turistas e é uma boa oportunidade para tirar um dinheirinho extra. Eu sei. Não precisa me explicar. Quem não precisa de dinheiro neste vale das balsameiras? Lembra quando a mãe nos falava isso, Max? Que só o comércio nos salvaria. Que escolas fazem gente inteligente para um desemprego nobre. Escolas são para gente de mãos finas e delicadas, não para nós. Eu sei que você está vendendo cerveja na praia. Leva salgadinhos também? A praia é tão longe de tudo e aquela gente rica fica com fome cedo, mesmo de barriga cheia. Alguém lhe ajuda nisso? Pode me dizer. Não se envergonhe. Não devemos nos envergonhar do trabalho honesto. Max tem vergonha de me dizer que vende cerveja na praia. Que precisa andar quilômetros para chegar até lá. Uma praia em que costumávamos nadar, pescar e catar siris para comer mais tarde. Hoje aquelas águas estão sujas. Não há mais siris. Não sei por que ele tem vergonha de ser um ambulante. Um ambulante que não se desvia do seu caminho para me visitar. Não vem vender na minha porta. Hoje está chovendo e Max não deve estar na praia. Fico pensando onde Max está numa hora dessas com essa chuva. Em casa. Sozinho. Ruminando. A mãe se preocupava muito com você, Max. Com sua felicidade, os seus vícios, a sua falta de uma religião, de uma luz para colocar no candeeiro. Eu também fico em casa vendo aquele filme na TV. Mas eu tenho Deus dentro de mim. Leo trabalha o dia inteiro naquela maldita serraria e até que precisa de uma ajudinha sua. Não tem ninguém lá com ele agora. Max sempre detestou a serraria do meu marido. Acho que detesta mesmo é o Leo. A serraria é uma desculpa. Max tem ciúme de Leo. Do meu casamento. De mim. Éramos muito apegados até Leo aparecer. Um dia, numa volta da praia, Max me beijou na boca. Os siris se debatendo na cesta. Eu senti pela primeira vez uma alegria coberta de vergonha entardecida e voltamos correndo pra casa. A mãe rezando pra Fátima. Max não deve se lembrar disso. Eu me lembro sempre que vejo beijos nos filmes. Quando Leo me beija na cama não é a mesma coisa. Beijo de marido. Não é igual. Não sei explicar. Assinamos um papel para nos beijar. Um contrato. E você espera receber ou entregar o que está no contrato. O beijo é o carimbo. Não é assim? Max, você é um autônomo, como dizem. Pode vender o que quiser e onde quiser. Não precisa se envergonhar. Você é livre. E a liberdade, neste mundo curto da gente, é uma tocha acesa sobre a cabeça dos justos. Vou fazer o jantar agora e gostaria que você aparecesse. Num barco. Eu queria um barco. Max não sabe disso. Eu sempre quis um barco. E ser feliz. Para Max ser feliz é vender cerveja na praia da Beira. Para Leo, cortar madeira. Feri-la em portas e janelas. Mesas para pobres. Mesas para ricos. Para a Santa Ceia. Você vai aparecer no Natal, Max? Leo não quer fazer um barco pra mim. Diz que não tem tempo. Que com barco é diferente. Ele não sabe cortar madeira em barco. Não sabe pescar. Pegar siri. Não sabe o que é praia. Não sabe o que é um barco desaparecendo aos pedacinhos no mar lá longe. 

Não diga nunca que não vai me ver mais, Max.




17.6.14

Um trem com hora marcada




Estamos sempre nos plagiando. 
Contínua e diariamente. 
Na vida e na literatura
do que vive e escreve
o outro um dos seus. 
Numa emoção barata ou 
num fiapo de pensamento
do quarto ao banheiro e corredor. 
Como um trem com hora marcada 
para o trabalho ou para a guerra, 
de manhã é o mesmo café com pão. 
Você finge examinar o motor
e as regras da gramática.
Você olha para o céu copiado. 
Sabe que só vai encontrar lá
uma duas ou três coisas da lista. 
Você tica 
e tudo em volta 
dentro de você 
confirma o esperado.
É a calma. 
Você assina e segue adiante. 



Estamos sempre nos plagiando. Contínua e diariamente. Na vida e na literatura do que vive e escreve o outro um dos seus. Numa emoção barata ou num fiapo de pensamento do quarto ao banheiro e corredor. Como um trem com hora marcada para o trabalho ou para a guerra, de manhã é o mesmo café com pão. Você finge examinar o motor e as regras da gramática. Você olha para o céu copiado. Sabe que só vai encontrar lá uma duas ou três coisas da lista. Você tica e tudo em volta dentro de você confirma o esperado. É a calma. Você assina e segue adiante. Contínua e diariamente do quarto ao banheiro e corredor. Um trem com hora marcada para o trabalho ou para a guerra é a calma. O céu copiado numa emoção barata finge examinar o motor dentro de você e sabe que só vai encontrar lá regras de gramática. Você tica um fiapo de pensamento e escreve o outro um dos seus. Estamos sempre nos plagiando do que vive e escreve o esperado.




8.6.14

Zona morta




o regulamento não permite 
andar com a vida nas mãos
sem jogá-la ao chão em 5"

circulei a quadra de bicicleta

e  lancei-a ao cesto 
sem tocar no aro

fiz 3 pontos de fora do garrafão





2.6.14

A vida onde moro





A vida onde moro é muito alta. Um arranha-céu.
Não vou dizer o meu andar porque você vai acabar
sabendo a minha idade 
e não vai acreditar 
nunca acreditam 
sempre tive de esfregar 
a identidade na cara de algum 
então imagine que eu more num andar 
bem lá pra cima 
sem número 
que até por elevador você teria medo de chegar 
e quando chegasse 
tem medo de descer 
eu também 
quanto mais alto menos tenho vontade de descer 
ruas ficam perto demais da terra 
posso tropeçar 
ser engolfada por um buraco de infância
é tão esquisito isso. 
Lama. Carne.
Então fico no meu andar. 
Poucas coisas me acontecem aqui 
mas quando acontecem escrevo 
nesta folha dobrada sobre um livro de poesia
escrevo à mão com caneta azul minha preferida 
me apoio no livro de poesia porque acho que de alguma forma
o que escrevo vai parar dentro das poesias 
que o poeta publicou e sinto como se minhas coisas 
estivessem publicadas ali também 
e muita gente leria pensando ser tudo dele 
se bem que não 
eu não escreveria aquelas coisas que ele diz 
mesmo estando ali dentro do livro com ele 
tenho vergonha de gente ele vendo o que eu faço
o que eu sinto As pessoas 
as pessoas buscam 
uma explicação 
um enlevo 
uma identificação
uma vida onde morar 
que não sei se estou pronta para dar 
e a comparação 
vão fazer comparações com o que já leram
vê 
eu não suportaria 
eu gostaria só que sentissem 
que estão aqui comigo 
juntos por alguns segundos 
que soubessem que não estão sozinhas
que eu entendo se não gostarem do que escrevo 
que entendo se gostarem e nos damos as mãos 
assim 
e de mãos dadas 
vamos até a minha janela embaçada 
ver as rodas guinchando no asfalto 
formando palavras que não dizemos