29.9.14

Olívia




A morte faz farinha à meia-noite. 
Ando sem estômago.
Não existe coragem
para abandonar o corpo.
A cama dói demais.
O vão da escada é cubista.
Você na moldura está com Chopin?
Preciso trocar de óculos.
De um vinho branco gelado.
De dois não sei o quê.
Falar uns palavrões protocolares.
Depois datar e carimbar.
Descer a rua Santo Amaro
para ver até onde vai o exagero.
A morte faz carinho à meia-noite.
Você nem imagina.
Olívia.




21.9.14

Gaze macia





Eu não quero morrer suja

Dê-me um banho rápido

Pegue panos baldes canecas

Os monomotores já sobrevoam a praia

Não me deixe morrer suja

Como um ombro de pedras marrons

Um cão de secos e molhados

Uma Cayenne abandonada no Qatar

Eu não quero morrer suja

Traga até um pedaço de pente

Um chafariz invisível

O sabonete mais triste

A gaze macia de tudo que eu já fiz

Mas não me deixe morrer suja

No leito vivo de areias dormentes







13.9.14

Peça da cabeça de Yoko Ono




PEÇA DA CABEÇA DE YOKO ONO



Martele um prego de aço na cabeça de Yoko Ono.

Pelo buraco quase imperceptível da foto

espie a sua cama vazia e durma.







12.9.14

Não temos notícias precisas




Coisas e pessoas são objetos imóveis.

Estão ali paradas.

Você que as faz se mover.

A varanda aberta do décimo andar.

O parapeito baixo sem guarda.

Os prédios em volta.

Palavras mortas por dentro

até seu olho misturar céu e concreto.

Um puxa para cima.

Outro puxa para baixo.

A precaução do vidro que você deixou para trás.




 

6.9.14

Giuseppe Ungaretti




Os rios


Encosto-me nesta árvore mutilada
Abandonada nesta dolina
Que tem a languidez
De um circo
Antes ou depois do espetáculo
E olho
A silenciosa passagem
Das nuvens pela lua

Esta manhã recostei-me
Em uma urna de água
E como uma relíquia
Ali repousei

O Isonzo corria
Polindo-me
Como a uma de suas pedras
Ergui meus quatro ossos
E caminhei
Como um acrobata
Sobre as águas

Agachei-me

Junto a meus trapos
Sujos de guerra
E como um beduíno
Curvei-me para receber
O sol

Este é o Isonzo
Onde melhor
Me reconheci
Uma dócil fibra
Do universo

Meu suplício
É quando
Não me creio em harmonia

Mas essas mãos
Ocultas
Que me modelam
Trazem-me
A rara
Felicidade

Repasso

Épocas
De minha vida

Estes são
Meus rios

Este é o Serchio

Em que beberam
Por dois mil anos talvez
Os camponeses de minha terra
E meu pai e minha mãe

Este é o Nilo

Que me me viu
Nascer e crescer
E arder de inocência
Em suas extensas planícies

Este é o Sena

Que em sua turbulência
Misturei-me
E me conheci

Estes são meus rios

Reunidos no Isonzo

Esta é a minha nostalgia

Em que cada um deles
Me atravessa
Agora que cai a noite
E minha vida parece
Uma corola
De trevas



(Do original "I Fiumi", 1916, trad. MP.)



2.9.14

todo mundo morre por um canto




Todo mundo morre por um canto. 
A frase surge num momento nada a ver da conversa. 
Uma frase que cada um entenderá de um jeito.
Afonso, oitocentista, vê no canto um ideal.
Exatamente o que não aconteceu.
Berenice, marxista, aponta o canto no mapa.
Um território. A disputa pela terra.
Catarina pensa num canto de hospital.
Um canto de rua.
Catarina é triste.
Todo mundo morre por aí.
Tem um canto onde vai cair.
Atrás da cortina do hotel.
Tombando na mesa do chá.
Pulando o muro para fugir em vão do seu assassino.
Mergulhando de um penhasco.
Todo mundo morre por um canto.
Você pode encontrá-lo todas as noites.
Ou já está deitado nele e morre por ali mesmo.
A morte é um caderno de folhas soltas.
Catarina sou eu, como pensei.
Tenho de anotar-me tudo agora.
Sentada na beira da cama,
carrego as folhas debaixo do braço
como quem desce até a praia.