29.10.14

Unwelcome Words




"Só não se esqueça ao entrar, do meu infinito particular."
É o que todos pedem, é o que deve ser. O marco civilizatório. O respeito ao indivíduo. Indiví-duo. Eu também quero. Parece que quero. Eu também ponho limites ao outro. Mas no fundo. Mas no fundo. No fundo uma parte de mim, uma grande parte de mim, soçobra. Soçobra e espera. Sentada no ponto, vê o ônibus passar cheio de gente. Lá vai o mundo. E você não entra. Espera alguém lhe puxar. Seja para o que for. E você fica ali no banco de pedra e canta Só não se esqueça ao entrar, da minha infinita jugular. Você espera e precisa da invasão bárbara do outro. Que me digam o que fazer. Onde ir. Mas eu não sou mais criança. Você cresceu e envelheceu -- que é uma forma de não ter mais por onde crescer. Como eu posso dizer a uma pessoa da sua idade o que fazer?, ela diz. E eu me sinto humilhada. Mais velha ainda e cansada. Como se meu cérebro estivesse morto. Ela acha que eu já devo ter pensado tudo que havia para pensar. Chegado a todas as conclusões possíveis. Só não me mexo mais porque não quero. E eu me sinto deitada, ainda viva, o coração batendo forte, as mãos apertadas, mas com morte cerebral. Ela só vê crianças na criança. Não em mim. Já vejo a hora em que vai mandar eu me foder. Vai perder a paciência. Por que espero tanto dela? Ela não é o mundo que vi passar dentro do ônibus. Ela sequer é parte do meu mundo. Do mundo que construí pra mim. Como separar a pessoa do médico? A pessoa do amigo. A pessoa do amante. São coisas que você não consegue. Elas se embaralham. E no momento que consegue desembaraçar, você pode não gostar do que vê. E embaralha novamente as cartas para ver se sua mão sai um pouco melhor desta vez. Chego à melhor conclusão a que posso chegar, o que eu já sabia há muito tempo: você é uma bárbara, uma viking, uma vampira. E espera isso do outro, como uma prova de amor. Que entrem na sua jugular, no seu sangue. Senão não vale a pena ter vivido. Viver. Entrar no meu sangue e ficar lá, correndo dentro de mim. Quieto. Formando um novo ser. Que não é gente. Todas as palavras que nos dissemos devem servir para alguma coisa. Não vou tirar o seu sangue, só quero nadar nele. Como se você fosse um rio que me levasse aonde bem quer. Eu preciso mergulhar em você, em cada passageiro que passa naquele ônibus. É uma ilusão achar que o seu sangue vai aceitar o meu. Incompatíveis, ficaremos sós. Uma infinita jugular intacta. É como descrevo a solidão. Tenho de resolver isso. Unwelcome Words. Afago a cabeça do meu cachorro velhinho e ele boceja, preparando-se para um novo dia. Toma o seu banho independente de mim e sei que estamos juntos. Os seus dois caninos ainda afiados como nunca.





26.10.14

Sonya





Sonya passa com cuidado pelo fogareiro para não queimar a fralda da camisa, mas o carvão aceso atinge sua calça no joelho.

Começa por uma chama pequena no pano que vai se espalhando em duas direções opostas numa linha reta. Descendo e subindo pela perna.

Sonya lembra bem.  

Seus gritos.

Sonya busca alguém para acudir.

Quer arrancar a calça o mais rápido que pode. Mas é tarde.

Quando a chama enfim consegue ser debelada, Sonya precisa baixar devagar a calça colada em sua pele queimada.

Isto tudo teria uma importância muito maior se fosse realidade.

Sonya desce o pano pouco a pouco, centímetro por centímetro. Junto com a calça sua pele vai saindo também.

A pele em linha reta.

Uma avenida de carne viva do alto da coxa ao peito do pé.

Sonya lembra.

Não lembra da dor.

A calça é azul-escura. Sintética.

O fogo era o que os animais conhecem e temem.

E havia uma música.

Prelúdio da gota d'água.

Sonya vira lentamente a cabeça para o céu.

Varsóvia.

Ela reconhece aquele céu entre todos os outros dispostos ao seu lado. Reconheceria até de olhos fechados.

A linha reta em carne viva é uma fila de corpos.

Sonya está entre vozes e corpos empurram o seu.

Quer proteger a perna mas a ferida não há mais.

É o estômago que arde. Que cola em suas costas. Que não sai de dentro dela. Que não pode ser apagado.

O sonho indica o caminho quando ela não consegue ver mais o passado.

A massa do gás se contrai, se autoaquece e forma o embrião de uma nova estrela. Uma nuvem molecular gigante e assustadora. Quanto mais a nuvem se contrai, mais a temperatura aumenta.

Seu pai está falando das protoestrelas.

Sonya lembra. Uma canção de ninar.

Isto teria uma importância muito maior se fosse vigília, porque todo sonho apaga o sonhador.

No sonho, ela nada pode fazer.

Está paralisada na fila de imagens em sucessão.

Imóvel na rotação em torno do centro, onde a morte está ali -- na sombra.




23.10.14

Mum




Mum

O primeiro desodorante industrial.

Antes disso cheirávamos a bode.

Mum -- mãe -- segredo.

Agora, cheirando a mum, 

eu me sinto em condição de te dizer

que se fosses rico jamais serias poeta.

Poesia é coquetterie dos miseráveis.

Do caixeiro da praça. 

Do corcunda de escritório.

Do pensionista da mãe.

Dos míopes a serviço do mundo.

Da metáfora que falhou.

De ânsias sentimentais inúteis.

De celas e algemas.

Hipócrita --

se fosses rico não serias poeta.

Enquanto não te enriqueces,

segue com o sininho no pescoço,

ditando o ritmo do rebanho,

onde uma cabra com ovários de avelã

te perturba e inquieta sem o escrever.





22.10.14

Perfil ocupacional





Não importa o que dizem os versos do poeta.
Ele é peito, pescoço, cupim e acém.
Não cai do papel.
O que um não tem, você acha no outro.
Filé, picanha, alcatra e maminha.
O poeta é açougue de beco de metrô.
O homem do talho.
Desde os tempos do as-suq,
azougue e aaçougue.
Um fraldinha. Um patinho.
Pergunta pro teu pai.
Ele foi o que sobrou da carcaça:
coxão duro, coxão mole, lagarto e rabo.
Mas ainda rumina.



19.10.14

Falta muito pouco




Falta muito pouco agora.
Se binocularmos pelo buraco de um formigueiro, nossa tentação será achar que muito ainda falta e tanto. São tantas as galerias de trabalho, as câmeras de fungo e de lixo. As câmeras vazias. E nos veremos ali, soltando a terra para olheiros de ventilação, preparando a comida, fazendo a limpeza, regulando umidade e temperatura, tanto ainda por fazer. Até o dia em que, pelo suspiro do monte mais alto de terra fofa, nossa fome, agora gigantesca e cega, não distinguirá a isca do predador e faltará muito pouco. O prédio ruirá. Com timidez até, diante da nossa sublevação e agonia. O que foi feito dos sentimentos que deixei nos vários prédios por onde habito? Deram a descarga com ampolas de cloro ou uma demão enquanto eu saía apressada com a mala dos melhores dias. A mala que não se vende. Que mantemos guardada na sombra para usos que virão. Escondida das visitas, de nós mesmos. Para que não topemos com ela a cada vez que nos escondemos no seu quarto dos fundos para chorar. Você não acredita que falta pouco e relê livros, soltando a terra trecho por trecho. Não se interrompe para pensar se vale o esforço, apenas segue em frente trabalhando, incorporando folhas ao ninho, incansável, tirando daqui e botando ali, abastecendo suas ilusões de paz, negociando com a eficiência operacional do destino. Coeficiando. Mas eu despertei mais cedo. Meu acabamento está pronto. Por isso sei que falta muito pouco agora. Os dias acontecem como memória. Assim é este. Sem surpresas, só incidentes. Não que eu seja indiferente. Temo a morte como quem vê um filho morto ser carregado para a panela vazia de um formigueiro. Temo a morte como início de uma nova vida, onde legiões de humanos possam estar me esperando lá fora outra vez. Para me alimentar com suas matérias decompostas, me ver crescer, trabalhar e me triturar para novas colônias. Você passa por mim e ergo os olhos das folhas. Sei que não quer perder tempo nas câmeras inúteis do meu pensamento. Você existe e se volta toda para isso. Acompanho os seus gestos, adapto os meus sonhos ao seu corpo suado, suas pernas de muita gente, e sorrio com a sensação. O amor está quase pronto dentro do relógio embrulhado. Falta muito pouco agora.





17.10.14

Eu, nuca drogada e prostituída



Quem disse que para fazer um poema há-se de transpirar?

Sente aí, vou fazer um agorinha mesmo para lhe provar:

Ó opróbrios senzalas e céus azuis

Waly Salomão desce d'Alá, daime a luz

Um calor dantesco, perpétuo e mameluco

Se achas que vou rimar a toda hora ficou maluco,

Transviado, Finnicius Revém ou Pernambuco

Faço poesia com baços de nuvem, 

o trabuco arrancado de um eunuco

etíope, drogado, sírio ou libanês,

do meu próprio bolso,

já disse isso a vocês

ah, Galileia, berço de cores escandalosas,

terra boa murmurantes e gostosas

olhai, que bela grande merda federal

vou pintar este poema nas paredes da bienal





13.10.14

Uma prostituta chamada Silvana






Nas minhas mãos é verão todos os dias.
Quero sonhar com cavalos, muitos cavalos.
Não com você preparando as malas,
me contando que vai morar com
uma prostituta chamada Silvana
muito melhor na cama do que eu
com quem dorme há dois anos.





11.10.14

a mulher do tempo




no inverno, sempre ao meu lado, eu tenho você só pra mim – chá de hibisco, chocolate pelando, sopa genovesa, caldinho de açafrão.

no outono, você na janela com cara de folha seca no breu ainda precisa do meu corpo aceso à baixa umidade do ar.

primavera, entre crisântemos e estefânias, não sei por onde você desabrocha nos temporais ofegantes dos fins de tarde.

no verão, entre pitangas, cajus, carambolas e abacaxis, eu nem lhe vejo, procuro ou acho na cor dos seus olhos, seu corpo iluminado grudado na rede distribui meu calor antes roubado em bolas altas nas areias do Corcovado.

meu amor que o tempo comeu, no próximo junho compre um triplo aquecedor, faça esse favor num magazine da rua do Ouvidor, sai bem mais em conta do que eu.




7.10.14

Toada da lavadeira



Sim, comerei o teu cu
Todo o teu cu
Com a vara rútila do teu centauro
E ficarás de quatro nas campinas
Com teu cu incandescente
braços ao vento acovardados
gemendo nas labaredas secas
de um deus estrume de jabiru


O chifre do unicórnio te rasgará
e dilacerada a tua soberba 
com o silêncio dos trapistas
dos teus testículos de garanhão
da prosódia roncolha dos teus versos
nascerá rasgando tuas pregas vomitadas
uma buceta cor de sangue
uma buceta com U a ferro
que te assombrará por toda a terra
secará o teu rebanho de vaidosa ladainha
masturbando tuas nuvens prenhes e inúteis
num êxtase orgiástico de virgens éguas azuis




6.10.14

Tive sim



Sabe de uma coisa, a vida é uma bobagem. 
Me apego a ela como a um saco de pipoca, 
um amendoim sem casca, 
uma pizza com muita mussarela derretendo no prato, 
um chocolate maciço antes de entrar na sala fria e escura do cinema. 

Se um dia perguntarem meu último desejo, 
seria uma barra de chocolate bem crocante — jamais poesia. 
E depois uma dose caprichada de morfina. 
Talvez minhas últimas palavras fossem, 
Tive sim, outros grandes sabores antes do teu. 
A vida era a bobagem que faltava em mim. 
Sou gulosa, amor, mas espero você se servir.






3.10.14

queria saber





queria saber escrever simples 
do jeito exato que ela faz
puxa-me pela cintura
com mão quente e firme
e me beija forte, sem desespero
a língua vindo segundos depois
na tinta a escorrer por minha pena








2.10.14

Igor




Todo poeta é uma espécie de Igor, 
o medonho assistente corcunda e vesgo 
de um cientista psicopata chamado Poíesis, 
que o chicoteia e mantém cativo na torre de marfim 
para servir aos seus propósitos mais hediondos.



1.10.14

todo quarto uma casa fria




Todo quarto uma casa fria
precisa do casaco pesado no gancho
sempre à mão
um aquecedor de prontidão
pouca luz por janelas fechadas
porque ninguém enxerga o claro
uma poltrona fofa como areia
a luminária que dará problemas de fiação
e madeira
muita madeira
pesada como o casaco
pesado como o quarto
pesado como a casa