28.11.14

A Aventura de Antonioni





Monica Vitti encontra a amiga na periferia de Roma

Monica Vitti parte para Roma num carro acelerado

Monica Vitti e seus cabelos ao vento

Monica Vitti espera na piazza a amiga fazer amor em Isola Tiberina

Monica Vitti num iate lotado para as vulcânicas Ilhas Eólias

Monica Vitti vendo a amiga mergulhar de touca nas águas de Basiluzzo

Monica Vitti subindo e descendo pedras da Lisca Bianca

Monica Vitti olha para o horizonte do mar Tirreno

à procura do filho de Poseidon, de um sentido para a vida,

da amiga desaparecida ou de um tubarão imaginário

Monica Vitti e seus cabelos ao vento

Monica Vitti segue de trem a Palermo

Monica Vitti angustiada na Villa Montaldo com amigos do iate

Monica Vitti parte para Troina em busca da amiga talvez morta

Monica Vitti encontra o noivo da amiga e vão até Noto,

onde fazem amor numa cidade deserta ao lado da via férrea

Monica Vitti segue com o noivo da amiga para o Trinacria Hotel

Monica Vitti assediada na rua pelo populacho masculino da cidade

Monica Vitti tocando sinos no Chiesa del Collegio

Monica Vitti com insônia no San Domenico Palace Hotel em Taormina

Monica Vitti em desespero pelos corredores panorâmicos do hotel  procura 

o noivo desaparecido da amiga desaparecida por quem se apaixonou

Monica Vitti traída

Monica Vitti perdoa

Monica Vitti culpada

Monica Vitti olhando compassiva para o Monte Etna

que chora e descansa no horizonte

Fine



26.11.14

Feira de Desgraças





Frank esta noite ficou sozinho.

Como em todas as outras noites.

Mas não como esta.

Esta noite ele não iria beber. 

Nem reler os mesmos policiais de capas manchadas. 

Nesta noite ele se arrumou para ver a Feira de Desgraças. 

Estava cansado de detetives, luvas e louras platinadas. 

De revólveres, neblinas e vielas escuras de Chicago.

A exposição tinha vários stands espalhados pelo Calumet Park.

Dentro de cada stand há uma mulher que sofria algum tipo

de infelicidade ou mazela, descritas do lado de fora em cartazes.

Chorosa, numa mesinha, cada mulher esperava que os visitantes

se sentassem ao lado dela e lhe oferecessem solidariedade.

Uma palavra de conforto.

Um aperto de mão.

Um copo d'água.

Havia um prêmio, Frank leu no folheto.

A mulher mais desgraçada, escolhida pelo público, sairia vitoriosa.

Que prêmio era esse, ninguém dizia.

Se os infortúnios eram verdade, ninguém sabia.

Frank só podia imaginar.

Sob a chuva fina, aguardava sua vez na fila do stand 7.






23.11.14

O prisioneiro






Os dias passam.
Cada um mais curto do que ontem.
As paredes da cadeia sobem mais um pouco.
Quem é de vaca, escreve vaca.
Quem é de mar, escreve mar.
Quem é de esgoto, escreve esgoto.
A vaca lança-se ao mar pelo esgoto, anoto.
Escrever passa.
Cada dia mais curto do que ontem.
Você enjoa desse imaginário de Guantánamo.
Já sabe o que vai sair dali.
Que não vai sair nunca.
A minha sarjeta é um colchonete sujo de versos inúteis.
Os seus poemas encapuzados perderam a graça.
A rotina do medo não lhe causa mais tremores.
Encantamento.
E você pensa, Eu estou me enganando.
Se engano a mim mesmo, engano um ninguém.
O tempo podia ser generoso e arrombar as grades de aço.
Mas o tempo não é generoso. É aquilo só.
O tempo é uma escolta que nos arrasta por corredores escuros.
E na enfermaria mais um poema me vem por sonda intravenosa.
Não sei se será o último. Vomito.
Não, não vou escrevê-lo.
As luzes da enfermaria me cegam.
O médico é uma palavra com máscara.
Os interrogadores querem versos.
Belos versos que os façam chorar.
Eu não sei fazer ninguém chorar.
Guardo minhas lágrimas num cofre de sangue.
Todos os poemas que fez aqui foram falsos testemunhos -- eles dizem.
O médico se aproxima e meu peito sufoca.
Sua serra encosta no meu braço direito.
Você vai fazer um poema nem que seja pelo rabo, filho da puta.




17.11.14

as vacas trêmulas de james dean




Eu queria ficar brincando no tumblr

mas tenho que trabalhar

Eu queria ir do Soho a Barbara Stanwyck acendendo o cigarro mil vezes

ver todos os rádios antigos

anunciando desenhos de Picasso

a bainha da saia de Rita Hayworth

a princesa Grace falando com um pato

como se faz clarinetes

poemas requentados

laranjas de novembro

verdes metálicos

canos tubos e pontes

pizzas praias e guitarras

o vestido de luto da rainha Vitória

numa explosão de photoshops e gifs

Fernando Pessoa andando num skate invisível

Ava Gardner assoviando canções tristes

Eu queria ficar para sempre nestes paraísos da neutralidade

só por ficar

só por ver

pelo prazer de ver

alfabetos abstratos

escadas chinesas

minha bicicleta congelada

os fados que você publica, meu amor

mas tenho que trabalhar

para encher nosso carrinho de sopas Campbell's

e ordenhar as vacas trêmulas de James Dean em Indiana








12.11.14

Antes de amanhã cedo




Tenho tanto por fazer
e uma lassidão inadiável
resolver papéis de aposentadoria
renovar minha oftalmologia
bater ponto na ginecologia
fazer uma nova identidade
a velha escondeu-se em algum 
lugar de sua casa-grande
e eu sou uma xerox
transferir o título de eleitor
havia um leite chamado Vigor
entregar-me a acupunturas
laçar veias em exames da rotina
ureia glicose creatinina
abrir o peito à cardiologia
tanto tanto por fazer
que um dia é mais um dia
não faltar à terapia
acumular milhas de psiquiatria
enquanto fico parada
onde todo mundo já foi
tenho tanto por fazer
e só me levanto para um poema
malversado 
mal-acabado
um lumbago
quando a Poesia está de pé 
há muito tempo
ocupando o banheiro
seu troninho de dossel
eu fico aqui -- mão no queixo
sem saber concluir essa bosta








11.11.14

La monja



Una lástima que no quieras acostarse con monjas. 
Que hacer ahora con mi vestimenta carmelita? 
La túnica castaña, lo escapulario. 
La capa blanca. 
Que cosas tan placerosas y contemplativas podríamos hacer bajo la capa blanca. 
Mostrarte mi carisma descalzo de Antigua Observancia. 
Mi monte Carmelo. 
Mi roja vocación. 
Lástima. Pura lástima. 
Mi cuerpo tiene todos los síntomas de una fiebre tifoidea. 
Santa Teresa de Jesús!



10.11.14

Felicidade




Estou muito feliz com minha bipolaridade
minha depressão
meu pânico
minha esquizofrenia
minha neurastenia
nevralgia
parafronia
meu esse est percipi
suicidismo
suigenerismo
tetracromatismo
minhas plantas na varanda
o treponema pallidum do meu avô
a santíssima trindade
minhas mialgias
com o professor Adolf Meyer
o meu Minderwertigkeitskomplex
a língua portuguesa
e as toxicomanias
escoptofobias
sem falar na faux gastrique
sua mão inteira na minha vagina
meu impuberismo
minha versomancia
itens
mitemas e goethases
meu salmão com maracujá
você foi mas vai voltá
estou feliz com todo instrumentalismo
que sirva ao corpo, alma e sombra
como escrituras em espelho

só me deixa infeliz

o seu rasgo de caráter 
esse travesseiro de concreto
que você me comprou como 
a última palavra em design de interiores





9.11.14

7.11.14

Encontro às cegas





Você se chama Moema Paranhos de Oliveira?
Como vai?
Meu nome é Luísa Guedes Monteiro.
Moro em Passo Largadinho, sul do estado.
Ninguém conhece.
Você quer ser minha namorada?
Vamos nos conhecer?
Você tem nome de quem vive da beira do mar.
Mo-e-ma.
Não sei por que acho isso. Vai ver é cisma.
Eu nunca vi o mar.
Vamos à praia de Copacabana?
Comer pizza numa cantina italiana.
Eu fico nervosa em primeiros encontros.
Fico tremendo. Não sei o que falar.
Dar três passos já é uma longa viagem.
Três sílabas, uma noética.
Isso acontece com você?
Essa urtiga no estômago.
Não sou bonita, mas li muito Machado de Assis.
Muita mucelagem poética.
Também não sou feia, sou abstrata.
Adoro noz-moscada, Charlie Parker, sirene de bombeiro,
e acho que nuança deve se escrever nuance,
como no francês.
Sou simpática. Numismática.
Você deve saber que tudo tem dois lados.
Mas fale-me de você.
Você que gosta de chamar os namorados de Mozi
e nem desconfia que Mozi era um rival de Confúcio.
Você que está longe de ser feia e quer ser atriz principal
num monólogo nô de Plínio Marcos.
Você também treme num primeiro encontro
mas fala pelos cotovelos para esconder
o que sente o que não sente.
Você não quer muito ir à praia de Copacabana
mas por um amor efêmero é capaz de ir até o Novo México.
Afinal, para onde escoa aquela areia toda?
Você que adora luminárias, neurolépticos e narcisos,
prefere sempre mungunzá a pizza.
Você que nunca namorou uma mulher teme -- ou espera
que Luísa seja a mãe fundadora do lesbianismo estatal.
Com políticas púbicas que não lhe deem muito trabalho.
Que arranque sua calcinha no banheiro do Mamma Rosa
e tire da cartola um orgasmo lento, progressivo e histórico.
Você, Moema Paranhos de Oliveira, mal contém
suas carnes, medula e ossos girando em fogo persa.
Vai se encontrar sim, queira ou não, não vê a hora,
com Luísa Guedes Monteiro em Copacabana,
Mucuripe ou no diabo que nos carregue.




3.11.14

Vãos




Sou uma pessoa boa
varro o chão
e deixo o cloro agir
na porcelana branca
o importante não é ser herói
fazer um bom negócio
tirar da terra o sustento de dez bocas
tirar de dez bocas o sustento de uma terra
o importante é deixar a porcelana branca
sem mácula
núbil
para que possam ver que está limpa
e tenham prazer em cuspir ali,
em vomitar naquele branco absoluto,
em defecar como quem sonha cataclismos
a paz entre os homens
a imortalidade da alma
a aniquilação do Aedes egípcio

Sou uma pessoa boa
e levo tudo isso em consideração
quando tiro as luvas 
e deixo o cloro agir
na porcelana branca
desde criança tinha essa sensação
uma fatalidade genética
um dom por escrito
ser uma pessoa boa
o Criador atochou toda a bondade do mundo
no meu fardo e tocou o cavalo comigo para longe
eu não preciso ser feliz
não preciso de muito dinheiro
a pessoa boa ama tudo que a cerca
os passarinhos
os gestos pequenos 
o abrir uma caixa de fósforos
o relojoeiro das avenidas
o trem na plataforma
o intervalo da timidez
os injustiçados

Hoje seria mais um dia para ser uma pessoa boa

entanto acordei de um sonho ruim 
numa cidade absurda
onde faço toda espécie de maldades 
sem grafia
sem regras
sem lei
e sinto-me mal
uma angústia me escorre dos poros
como ouro falso
eu não devo ter limpado direito
a frincha das portas
uma pessoa boa precisa lembrar
de todos os vãos
para que o sono não lhe faça mal
uma pessoa boa não usa luvas
toca a porcelana branca só com a ponta dos dedos.