30.12.14

O primeiro amor





Anotei seu nome e telefone 

no verso de uma bula de Broncocilin.






20.12.14

Hora da camisa de força




Sonhei que vomitava faeces

Nunca me esquecerei desse acontecimento


Na vida de minhas papilas tão foliadas





Saudades de casa





Fools, they do not even know how much more is the half than the whole.
-- Hesíodo

São 4 da manhã ou 5, não sei bem. A lamparina de led está acesa no meu quarto do laboratório de pesquisa aplicada Aquiles, na Antártida. Meu grupo de trabalho estuda algas, mas a esta hora do dia e depois de todo o cansaço de mais uma jornada de trabalho, não é bem para algas que volto minha atenção. Este cérebro está aberto na minha tela e o estudo enquanto os minutos passam. Duas fatias de um estranho pão de hambúrguer de barro, eu diria. Ou corpos humanos malformados, nus e aconchegados uns nos outros sem propriamente uma cabeça que os lidere. A cabeça foi retirada como uma casca de noz. É o fora. O que não se vê. O espaço sideral contido na gaveta de um deus. Corpos humanos, ou apenas corpos, embolados numa vala comum de conexões há muito desativadas e banhadas em formol. Um belo vaso fenício. É o que trazemos dentro de nós. O que me faz pensar e ver minha mesa iluminada com meus cacarecos de serviço. Anotações e cálculos. O que eu poderia colocar entre uma fatia e outra que poderia levar este cérebro a operar novamente? Não algas, por certo. Os seres deitados, essa massa modelada, formam um labirinto. Procuro a saída por suas vielas tortas. As vielas dão umas nas outras num circuito fechado, restrito. Entre um hemisfério e outro, há uma beira de abismo, você pode pular. Não vejo perigo aí. Distância curta. Como quem salta de uma poltrona a outra de uma sala de estar convencional. Por mais que eu olhe a imagem, só vejo corpos jogados, estirados em sua imperfeição. Fetos inconclusos. Imagino também que alguém tirou esta foto da cabine de um avião sobrevoando uma pequena extensão de floresta verde. Cinza, no caso. Qualquer um poderá ver muitas coisas nesta peça e até esquecer que se trata de um cérebro humano. De uma identidade desaparecida. De um ser vivo que carregou dentro de si dezenas de corpos de outros seres não nascidos. Que dormem. Dormem e quem sabe pensam ainda depois do seu alfa morto. O centro de comando. Pensam no seu alfa morto e imóvel no formol. Nesta foto. Na minha tela. Pensam nos motivos que levaram o alfa a deixá-los à míngua, em risco, quando estavam ainda em processo de desenvolvimento para saírem da caixa, da casa, da cápsula, dos hemisférios. Teria o alfa morrido para não deixar que eles nascessem? Estaria programado nas células do centro de comando este autoabortar ou mais uma vez o acaso se impôs? O deus, como chamam. Esses filamentos, essas partes de um eu, desejavam ter suas próprias conexões independentes para desligarem-se do mestre num futuro próximo? Mas eles formavam o mestre! Cada partícula do centro de comando. Posso concluir pelo cansaço que há um suicídio biológico programado aí. Que bobagem. Filme B. O todo eliminando as partes para que não se tranformem em outros todos. Minhas especulações bobas andam em círculos e me sinto numa roda de criança. Eu não deveria estar perdendo um precioso tempo de sono para ficar olhando lobos cerebrais. Não é minha área de especialização. Depois de tantos anos analisando algas, não esperava que um cérebro humano pudesse me chamar de tão longe. Talvez eu queira apenas passear por estas vielas. Aqui, em minha cápsula, neste hemisfério, sinto saudades de casa.







18.12.14

"Fale aí uma frase de Nietzsche" - título provisório - roteiro inacabado


The individual has always had to struggle to keep from being overwhelmed by the tribe. 
If you try it, you will be lonely often, and sometimes frightened. But no price is too high to pay for the privilege of owning yourself. 
- Nietzsche



Uma caveira é uma cacofonia de ossos e pensamentos civilizatórios. A caveira que desce o Pelourinho conversa comigo com voz de película:

-- Estou com uma vontade horrível de fazer xixi.
-- Moi aussi.
-- Estou com uma vontade horrível de fazer filme de terror.
-- Moi cocô.

Grave o áudio separado, bote uns galos cantando, uma perereca gugudadaísta recitando o vocabulário técnico e crítico da filosofia. Tem uma Copacabana na Bahia, porra. Gá-gá-gá. Abaixo a lei do inquilinato e a mão única na Voluntários da Pátria. Sons de friture, de telefone, de passarinho piando, de cachorro suspirando. Nós vamos conhecer outro mambo na velocidade da fuga. Cinema de terror experimental marginal. 

Meu nome é Óbvio. À noite eu nunca penso o que vou escrever. Só puxo a caneta e digo, oi. Eu queria ter um filho chamado Felicidade. O Felicidade é um pico de adrenalina malhada na veia do cordão umbilical. É, é isso mesmo. 

Eu queria fazer um filme com Continental sem filtro. 

-- Tem um bebê chorando no cinema brasileiro.
-- Liga a televisão.

Assim não dá pra dormir. Meu anjo da guarda é o seu babador. Um príncipe voador inglês de babador. Eu espero um emprego. Eu espero uma sobremesa no deserto. Tudo certo. 

Fale aí uma frase de Nietzsche segurando um Continental sem filtro debaixo de um pé de buceteiro carregadinho de flor. Mostre o ticket pra Ajuda. Entre na Kombi com um maço de versos e uma camisa azul. Cabelo repartido no meio. Chutando metáforas de pedras portuguesas. Dê um trago profundo agora. Olhe pra câmera. Finja que ela é um embrulho. Olhe pro chão agora e vai subindo devagar, quebrando em pedacinhos. Assim, tá legal. Agora vire e corra pra rua. Na direção do lixão. Depressa. Eu vou indo atrás. Isso, vai vai. Vocês aí, desocupem esse banheiro, porra. Que os bêbados calem a boca. Me tragam as rimas de amor. Quem escreveu essa merda? Eu pedi poemas de cama, não poemas de quem está de cama. Foda-se. Vai sair assim mesmo. Essa elefantíase poética. Corra, minha filha. Estou gravando. Velho, tire esse bigodão de Zapata. Isso aqui não é Que Viva México, é cinema capitalista, marginal mas capitalista. Deu pra entender? Foda-se. Tehuantepec, era só o que me faltava. E não quero ninguém de buceta raspada. Um corpo sem pentelhos é manequim de vitrine. 

Pense em mim, não precisa mais nada. Eu te dou uma varanda de frente pro Rio-Sul com papéis molhados de suor sobre a mesa de jantar. É aqui que eu moro. No ponto mais alto desse chão riscado de pneus que um coração-reboque atropela. Abaixo a ditadura e Viva Antonioni montado num jegue. Não, nada de ditadura. Nem psicoblablablá. Que jegue o quê. Corte isso. Tu tá pobre, é? Cadê o vampiro? Dando as cartas no vento de Trancoso. Ponha som de vento entre cercas concertinas. Quero o som do aço. Quero estrangular a água. Chame a moça da limpeza. Nós vamos precisar importar os grilos do Qatar? Você aí, ande logo. Preciso da mão do macaco ainda hoje pra cena no Farol.

Meu nome é Óbvio. Gosto de poesia mas não entendo nada. Não estou aqui pra isso. Não tenho nada a ver com isso. Gosto de um pouco de tudo e não tenho a ver com nada. Puxa esse cabo aí. Godard. O Penetralium indevassável de Keats. Penetralium é buceta, é? Pornô japonês. Eu preferia estar fazendo pornô japonês, caralho. Plantando mamões na neve. Um curso de rumba. Não, não é uma Kombi. É uma viagem. É a viagem o significante. O que a gente é. Uma poça de sangue coagulado quebrado em pedacinhos. Não dá pra confiar em ator ioiô da casa da mãe. Vamos refazer a cena toda. Puta merda. Por hoje chega. Um dia vou de stand up paddle até 2082 e fico por lá. Comendo mentirinha sob céus estrelados da madrugada. É a queda de Ícaro, filho, a queda de Ícaro.

-- Aí, Tita, onde eu botá fica. Aqui só fica quem vai dormi. Eu e a Bilí.






16.12.14

Rede






não estou interessada em ver o tênis que você usa = os peitos da sua namorada = o que você come no almoço = para onde viaja = onde fica = a cara da sua mãe = talvez a sua cara = os seus pezinhos no mar = o que fuma = o que cheira = os drinques que pede no bar = suas unhas sujas segurando o que for = as bundas que viu na rua = o seu filho = o seu sexo = a sua crença = o seu partido = o seu vestido = a sua gravata = a sua lata de leite Ninho = o que ganhou de presente = se foi a Paris = se sambou no Carnaval = o que vê na TV = quantas noites não dorme = o seu desodorante = o seu prato = o seu rabo = a lista dos seus amigos = a foto dos seus amigos = o nome do seu psiquiatra = o perfume da sua dermatologista = a sua arte contemporânea = o seu cinzeiro cheio = a sua pelúcia de estimação = o seu chão = a sua Nikon = onde mora = quanto tempo demora = se é virgem = o seu signo = o seu digno = a sua bota = a sua arma = o seu quero-quero = 


mas se você tiver uns versinhos, eu os lerei de bom gosto.










11.12.14

uma coisa pra lembrar





o bom de sair não é ver gente
é ver os prédios novos
prédios antigos
portarias de mosaicos
varandas balaústres
muralhas de vidro
farmácias abertas
pisos escorregadios
tomar um mate gelado
fumar escondido nas garagens
acompanhar o meio-fio
fachadas de pastilhas azuis
comprar chocolates
às vezes eu quero voltar
ver bicicletas na vitrine
nuvens carregadas
um comboio de maritacas
papéis voando no chão
namorar produtos de limpeza
pianos de demolição
fazer amizade com cães vadios
entrar num banheiro público vazio
lavar o rosto e sair pingando
ler cartazes nos postes
o preço do prato do dia
esperar a noite descer
chamar o elevador
e dar num andar qualquer
sentar nas escadas
entre o clínico geral e o dermatologista
apertar a bolsa contra o peito
passar por uma churrascaria deserta
um salão de cabeleireiro
ouvir as rodas chiando no asfalto
ouvir cores de vozes estranhas
vermelho amarelo verde
esperar a noite ficar
uma coisa pra lembrar
e voltar por outro caminho
o bom de sair tem gosto de quarto de hotel
mergulhado na escuridão
tem gosto de bombom adormecido 
na mesinha pra te acompanhar




beijo molhado de sangue


Numa encarnação passada, me imagino trôpega,
apoiando-me nestas paredes da Villa Conti de 1860, 

tossindo sangue como uma tuberculosa. 

Pensando em alguém como na dor. 

Ou em ninguém, 

só no sangue a manchar o meu vestido. 

Olhando para o céu, 

à procura de um deus,

de uma cura,

de uma roupa limpa, 

e me engasgando com mais uma golfada.

Talvez haja um baile acontecendo na casa ali em frente.

Uma casa coberta de limo.

Com sorrisos cobertos de limo

aos quais eu acrescentaria um beijo na face.

Um beijo molhado de sangue.

Talvez a casa esteja abandonada

e eu não pertença mais a este século.

Nem a nenhum outro.

A fotografia não me alcançou.

Fotografias não me alcançam.

Em algum lugar do meu rosto

há um lenço manchado de sangue

que eu nunca encontro.








9.12.14

Mateus




Eu queria viver como Marguerite Gautier e morrer como Anna Karenina. Eu tinha só 13 anos e ele 19. Viver entre lenços ensanguentados um amor proibido, uma amizade muito particular, não publicada, porque todo amor vivido às claras é igual. Saber que as rodas de ferro que haveriam de me matar já estavam prontas, azeitadas e rolando de uma cidade a outra. Talvez eu tenha levado os romances trágicos muito a sério. O sangue derramado. Talvez porque meu nome seja Mateus. Quando eu amo, entro no meu quarto e fecho a porta. Amo em segredo, num lugar oculto. Eu e ele. Não nos amávamos de pé nas sinagogas, no pátio do colégio, ou nas esquinas das ruas para que todos vissem. Em público era um olhar rápido. Uma troca de sorrisos respeitosos entre desconhecidos. O perfume do corpo bastava quando ele passava por mim. Suas camisas com cheiro das manhãs. Suas mãos estendendo uma esmola, virando uma página, acendendo o cigarro. Os lábios tristes tocando o copo de vinho para não gritar ou ranger os dentes. No escuro, após o gozo, decidíamos o destino das nações posicionando exércitos num mapa invisível sem sairmos do nosso terreno baldio. Os generais do terreno baldio. Entre nós o amor não era vivo, dormia. Numa cidade de ouro e prata. E só nós dois sabíamos, não as pessoas da casa, nem os campos de trigo, céus ou árvores. Desertos que vão e vêm. O amor proibido é uma espécie de doutrina surdo-muda. Uma menina sozinha deitada na cama que das migalhas faz sete pães. Eu poderia lhe dizer muito mais, meu filho, embora eu mesmo não saiba bem o quê. Ser pai ou mãe de família é uma notícia que se espalha e contamos uns aos outros sem entender bem o que significa. Quando acabamos de ler um romance, não sabemos o que vem depois. Não saberíamos escrever este depois. O ponto final é o cansaço do autor. E não espero o seu ponto final à minha história. Não espero o seu perdão. O seu amor às claras. O meu peso na sua balança. Um filho é como olhar para o interior de uma casa pela janela. Como um barco à deriva no meio do lago. Você acha que vai resgatá-lo, mergulha, mas vê que a água é feita de tinta. Funda. O barco, uma imagem. O lago, a moldura. Você está preso até à garganta. A deriva foi mera ilusão de ótica. Você não precisa mais se preocupar com o seu pai. Para onde estou remando os meus ossos. O meu repouso de chumbo. Leia esta carta e depois disso me ame como puder. Como quem escuta atrás das portas. Um amor que sei não será mais vivo como antes, nem morto. Adormecido. É o que me basta.