30.12.15

No Workshop de Escrita Criativa (Poesia Fast Food)




Dizendo o nome do meu poeta fast food preferido.







o pedido








Sandro Penna





A porta do mundo não sabe
que lá fora a chuva a procura.
A procura. A procura.
Paciente, se perde, retorna.
A luz não sabe da chuva.
A chuva não sabe da luz.
A porta do mundo está fechada:
cerrada à chuva,
cerrada à luz.


("Le porte del mondo non sanno", trad. Maira Parula, 2015.
A opção pelo singular "a porta" e não "as portas"
foi intencional.)




27.12.15

poeticídio não dá cadeia, dá alívio



a e i o u
dabliú dabliú
tem uma vaga
no caju caju

o sono que dá sono

tem sono que não dá sono

troquei três poetas
por um cão dinamarquês
botei três poetas
na boca de uma lâmina agnês
poeticídio não dá cadeia
-- dá alívio

com duas rodelas d'água em volta dos olhos

é com grande alergia que leio o mais recente livro
do poeta derme da palavra, o hímen-futurista
travesti de iogue o senhor aquele que espera
o cavalo encilhado das calúnias e me pergunto
enquanto coço o queixo se porventura já li
algum poeta que não usou em seus versos
termodinâmicos nenhuma vez vezinha a
palavra cloaca. essa paixão infinda pela cloaca
por citar nigérias de olho nas secretarias estaduais
de cultura pescar um cabide no fundo do lago
garantir seus tostões às favas a poesia do amigo
é sempre a da reconstrução da memória nacional
que tal ir se foder enquanto aprendo suavemente
a massagear meus braços com pauzinhos de bambu
e escrever palavras na derme poesia não tem derme
a derme é minha vai se foder que minhas rodelas
d'água em volta dos olhos começam a secar com
os olhos. não gosto de unhas esmaltadas mas foi a única
foto que achei quando eu era jovem e fumava cigarros caros
agora me limito a recordar dos momentos de tê-los fumado
como a sua poesia definha puxe a orelha que ela pode cair
pelo buraco da caça-níqueis poetas todos de dentro da casa 
estão no fundo do meu lago bem afogados com a boca cheia 
de areia com nanquim onde escrevi se o que eu tinha era
medo da morte ou do futuro se as secretarias estaduais
de cultura são a morte ou o futuro aquela voz que se demora
na escuridão eu gostaria de conhecê-lo poeta hímen-futurista
budista dos quartos de criança com telefones coloridos
patológicos você não desperta minha atenção só o sono
que dá sono minha gasolina acabou no meio de Long
Island e deixei seu livro pelo meio dentro do tanque
posso dizer que meu carro não se deslocou um centímetro
com seus poemas fiquei atochada acho que no deserto numa
floresta não me darei ao trabalho de corrigir nem responder
uma festa da farsa um dia 18 pela metade os símbolos
representam até onde eu posso alcançar daí não passam
seus leitores não são burros seus leitores são seus leitores
pegam suas mãos e as prendem uma de cada lado da cama
você foi templificado parabéns eu prefiro ser sangrada
medíocre e apaixonada acabe o jantar ficarei muito grata





10.12.15

Deixe que grite











O último grito. 
Deixe que grite. 
Fique quieta. 
Vamos ouvir. 
Ouça. 
Ainda ecoa. 
Traz o cheiro 
de sua carne à sala.
Não conte. 
A ninguém.
Ninguém precisa 
saber coisas.
Pegue minha mão,
seu embrulho.
Deixe que esquente
no seu colo.
Calada.








30.11.15

Os desconhecidos alegres





Ela não oive de lá
que eu oiço daqui. 
Vão almoçar no quintal 
o bando de amigos com seu casal. 
Uma rua de mesa de jardim. 
Gente assim não senta na grama. 
Não chora além da porta. 
Os desconhecidos alegres. 
Um garrafão de Violet tinto. 
Dois velhotes expansivos trocam charadas intelectuais. 
Os jovens, de reticências -- voltaram da Grécia de espírito aberto. 
Mexo a panela, oiço mais um pouco. 
Alguém vai escrever uma biografia d'outro, por comicidade. 
A varanda olha suas portas amarelas.  
Falam de um monge que atropelou uma cobra, 
há uma encenação de significados. 
Falam de telas e cavaletes. 
Uma conversa cacete. 
Outro casal pulinhos atrasado. 
"A vida simples no campo." 
Um telheiro de filósofos. 
Oiço um bebê chorando -- ou torta no forno. 
Essa poeta premiada sua amiga usa muitos "ques". 
Vontade de cair no meio das flores -- dois copos batem. 
No campo sinto que não estou sendo cooptado. 
Nada disso ela oive, só eu. 
O motor do helicóptero passa e evapora. 
Toca o telefone da sala. Corro. Não é o meu. 
O mundo tem telefone na sala. 
Volto. 
Um intervalo sem vozes. 
Seis toques uma mulher atende. 
No quintal, seus amigos riem pelas costas. 
Ela fala alto no telefone. 
Uma voz tão melodiosa 
quase deixo me queimar. 
Minha poesia tem só treze anos, Paulo. 
Eu queria poder ver os gestos que ela faz. 
Fico com essas palavras batendo no sino da capela. 
Na sirene da polícia. 
No trem entrando na gare. 
A ligação termina. 
Temos de almoçar. 
Ainda esperam o fígado do cordeiro. 
O nevoeiro entra pelas janelas: ela não virá, mais uma vez.




19.11.15

Banco de espera da Psiquiatria







Quando topamos com alguém no banco de espera da Psiquiatria, não dá para saber o que aquele indivíduo lê, e se chega a ler. Em Berlim 1940 só eram permitidos banhos aos sábados e domingos. Neste século não está muito diferente, por motivos climáticos que entendo pouco. Vejo que Toy chegou cedo. Toy gosta de ler relatos e diários de guerra. Biografias de senhores das duas guerras mundiais. Toy não é o seu nome verdadeiro, que desconheço. É o nome do cachorro que passeia entre um banco e outro da Psiquiatria. Fico encarando Churchill de páginas abertas nas mãos de Toy, como se suas mãos fossem uma relíquia hipnótica de Dardanelos que eu perdi. Imagino se Toy diverte o psiquiatra com anedotas de campanha, ou se abre a lista de baixas que tem na memória. Olho as revistas ilustradas. Normalmente não gosto de livros de mais de trezentas páginas. Não tenho tempo. Preciso de trens expressos de alta velocidade. Acumular milhas de história é bagagem incômoda. E além do mais são pesados. Abrem o meu pulso. Mas hoje Toy está de banho tomado. Terei de esperar a sua consulta e só depois será a minha vez. Pedirei um café à antipática cordial da padaria ao lado enquanto espero essa vez. Abrirei o meu bloco de anotações e verei qual tema da minha vida devo abordar hoje. Isso se o psiquiatra não começar a falar da própria vida metade da consulta, o que anoto assim que saio para comparar com a minha até que o perigo passe. Elza se ofereceu para vir me buscar, não vale a pena. Posso me confundir. Elza é muito bonita, e sabe contar minúcias das mortes como numa rodada de fotografias. Identificar corpos. Embalsamar. O cheiro da sua água-de-colônia pode me realocar. Preciso ficar só depois das sessões. Ver se ainda estou viva. Se o prédio não desabou arrastando o meu mínimo necessário. Telefonar para mim mesma e me tranquilizar. Enquanto isso, Toy já estará em casa, são e salvo. Quem sabe lendo mais um capítulo de Churchill antes de capotar no seu colchão seco. Aprendendo russo on-line. Fritando batatas. Inventando pretextos para cada circunstância. Ou tomará outro banho depois de conspirar pelo telefone. Toy fecha o livro e cruza os braços. Está impaciente com a demora. Já não se concentra na leitura, como eu me concentro nele. Tão amigos antes da guerra. 







13.11.15

A galinha morta de Borremans






Quem só fala de primaveras e orvalhos me odeia.
Devo ter cara de lama tóxica.
Da galinha morta de Borremans.
De burguesas sem viço e sem métrica.
De verbos vindo à tona em lixões a céu aberto.
De quem traz o revólver na cintura.
E no entanto sou tão linda.
Uma coisa vaga.
O batom na pia do banheiro.
O copinho de cachaça por trás de janelas fechadas.
O sol de Pilatos.
A ânsia de vômito de Pushkin.
A raça secreta das meninas de família,
dos governadores de estado.
Um terraço cheio de plantas voluntariosas.
Não precisam de primaveras ou orvalhos.
Barbantes filosofantes --
minha poesia causa câncer.
E trabalho com muito entusiasmo
quando a noite começa a jorrar.





Azulejo






do portão não me ouvem mais

vento
respiro
água. 

trocamos algumas palavras








metabólica






amores rápidos


    metabolismo lento






8.11.15

Foi por aqui que correu o sangue de César




Foi por aqui que correu o sangue de César
onde agora acendes luzes de néon
no meio da neve

12 de abril de 1940
e a tua família posa na varanda
com o cachorro e a bicicleta

como o cachorro e a bicicleta
guardarás a foto até a morte
porque os espelhos cansaram do teu rosto

ela ficará na parede com a tua boca
horas a fio
dias a fio
enquanto limpo o cromado das rodas








31.10.15

Poesia



Eu não sei perseguir
uma pulga
colocar na unha
esmigalhar.
Espero que ela salte
pego
sufoco entre os dedos
até ela esquecer que é pulga
até eu esquecer que é pulga
até eu esquecer que estou
olhando pela janela
e escrevo 
estou com uma pulga entre os dedos.
Todo poeta é um picareta
alguns com pulgas gordas
outros com pulgas anêmicas.
Pela janela todos plantam alfaces.






24.10.15

1 poema de André de Leones





Amar
                                              para Maira


dizia
até ontem não saber que Armand Amar
nasceu em Jerusalém
ele nasceu aqui, sabia?
estávamos na varanda
ela fumava Marlboros, eu bebia Goldstar
sharav abatendo Jerusalém
tudo aqui ganha uma dimensão bíblica
cada bloco de concreto uma hipérbole
eu bebi um gole e concordei com a cabeça
não disse nada
gostava de ouvi-la
Armand Amar nasceu em Jerusalém
repetiu
num tempo em que ainda se nascia em Jerusalém
e hoje? perguntei
hoje?
ela sorriu, tragou fechando os olhos
hoje só se morre
em Jerusalém



(André de Leones, 22.10.2015)



22.10.15

Só uma vez - Videopoema - Maira Parula



(Música: Armand Amar, “City of the Birth”.
Vídeo de domínio público dos Prelinger Archives: 

demolição do Star Theatre, Nova York, 1901, 
direção de Frederick S. Armitage.)


21.10.15

that is cough







I exist as I am,

that is cough.








17.10.15

16.10.15

Só uma vez



Ela bate à máquina freneticamente, sorrindo, olhos fixos nos seus tipos. 
Parece ouvir uma voz muito longe de casa 
e apressa-se em registrar o que ninguém disse. 
Nesses momentos não se sente responsável por mim. 
Estou na poltrona ao seu lado. 
Vejo-a de baixo. 
Seu pescoço fino. 
Uma mecha de cabelo preto caindo na testa. 
A pulseira dourada subindo e descendo no pulso. 
Não adianta eu querer chamar sua atenção. 
Barganhar ausências de um escuro já vencido. 
Comentar que o dr. Martin ligou e pediu-lhe para ligar depois. 
Quer trocar o horário da consulta. 
Dizer desse tempo tão seco nosso que arde o gramado lá fora. 
Dar uma caminhada e voltar amanhã.
Ela bate e bate, inventando enfermidades e desgraças. 
A cada segundo treme o relógio atrás do seu ombro direito nu. 
Às vezes ela para e me pergunta a capital de um país remoto. 
Respondo e a máquina se enfurece outra vez. 
Ouço suas aulas de canto. 
Suas traições com periódicos, revistas, livros.
Seu rifle de caça. 
Ela me quer num estado vegetativo ereto. 
Que eu não perturbe nunca suas horas azuis. 
Os poemas que tem encharcados na cabeça. 
Os ensaios do seu espírito.
Eu gostaria de encostar o ouvido na sua boca.
Dentro do seu animal. 
Dos seus móveis pesados.
Eu gostaria que ela parasse de brincar de não nos vermos. 
Gostaria. 
Que nos preparássemos para começar a vida toda de novo. 
Só uma vez.  




4.10.15

Não fui eu que pedi



-- Vamos ver o que temos aqui.
Não fui eu que pedi. Ele quis ler.
O copo de água gelada suava em sua mesa. Ele abriu o caderno espiralado. Acendi um cigarro e fui até a janela do oitavo andar. Havia um comício lá embaixo. Um bando de cem com bandeiras de algo que pouco me importa. As janelas do antigo escritório eram gradeadas. Não pude nem descansar os cotovelos no peitoril. Mal vi o céu. Ouvia só sua respiração. Toda vez que alguém respira sinto falta de ar. Dois maços de ar. O cigarro ia acabar e ele ainda estava de cabeça virada para o tampo da mesa. Virava as folhas do meu livro devagar, puxava os óculos para a ponte. Atrás dele uma estante. Fui até lá. No caminho não bati as cinzas no cinzeiro da mesa. Joguei no chão atrás dele, fingindo olhar lombadas. Nada que me interessasse. Cartas Celestes, Zen budismo, Figures de Lukacs, Bertrand Russell, Contradições culturais do ca... um globo de vidro. Suspirei. Apaguei a guimba na palma da mão direita. No silêncio sem dor. Um mamilo começou a coçar. Não cocei. Fiquei esperando a sensação aumentar até ficar insuportável. O celular vibrou na mochila. Abri e desliguei sem nem ver a tela. Ele agora folheava mais depressa. Quando esse movimento acelerou, olhei por cima do seu ombro para saber em que parte do livro ele estava. Quase no meio. Que poemas eu havia colocado no meio mesmo? Aproximei-me do encosto de sua cadeira e fixei-me no caderno. Low-down. Ele lia Low-down agora. Na certa vai me sugerir um título em português. Ou título nenhum. De longe reli o poema. Quando acabei de passar os olhos no quinto verso, meu olhar escapuliu para a direita. Para o polegar que segurava a folha. Para a unha do polegar que segurava a folha bem no quinto verso. Aquele dedo branco, curto, grosso e de unha roída. Uma unha podre. Levantada, oca, amarelo-escura como catarro. Esse tempo todo ele passou aquela unha pelos meus poemas. Não sabia dos outros dedos por baixo da folha. Dos dedos que apertaram minha mão quando cheguei às 15h30 em ponto no escritório da editora. Sinto um bolo no estômago e volto para a janela, quero respirar. O comício chega ao fim. A pequena multidão se dispersa lentamente. A unha podre sobre os meus poemas. O ponto de ônibus começa a encher. Ele gira na cadeira. Estou de calça jeans e mangas compridas vermelhas. Olho minhas unhas. Um pouco roídas, mas perfeitas. Limpas. Quase transparentes. Ele me chama, ergo rápido a cabeça e sinto uma leve vertigem. Não sei se aquela unha fede. Se vou levar de volta para casa aquelas páginas fedidas. O ônibus enfim aparece e ele me estende o caderno sem um comentário. Não quero olhar. Jogo os poemas na mochila e fecho. Ele recosta-se na cadeira, toma um gole de água, olha para o teto pensando e depois sorri. Vai publicá-lo. Pago a passagem e sento num banco vazio. Quando o ônibus alcança o meio da ponte, atiro as folhas na Baía de Guanabara.