29.1.15

Com 1 uísque eu faço um poema de amor para você




Com 1 uísque eu faço um poema de amor para você

Com 2 faço outro para a cadeira em que te sentas gloriosa

Com 3 uísques faço um poema feng shui para gavetas

Com 4 um poema espírita à cadeira em que te sentas na gaveta

Com 5 levito todas as palavras lançadas ao papel

Com 6 bilocomovo-me à rua comprar outra garrafa

Com 7 aflijo-me à janela luminosa esperando você voltar




26.1.15

I Have a Dreher






I have a Dreher that one day on the red hills of Georgia

I have a Dreher that one day, down in Alabama

I have a Dreher that one day even in Mississippi

I have a Dreher in the Rockies of Colorado

I have a Dreher on the prodigious hilltops of New Hampshire

I have a Dreher in the curvaceous slopes of California

I have a Dreher on the mighty mountains of New York

I have a Dreher on the mountains of Tennessee

I have a Dreher today!

Free at last! Free at last!



24.1.15

1 poema de Carl Sandburg




Chamfort


Aquele Chamfort. Um exemplo.
Trancou-se na biblioteca com uma pistola
e com um tiro arrancou o nariz e o olho direito.
E Chamfort sabia o que é escrever
Milhares liam seus livros sobre como viver
mas não era capaz de se matar
por suas próprias mãos - viu só?
Encontraram-no numa poça de sangue no tapete,
frio como uma manhã de abril:
dizendo máximas divertidas e amargos epigramas.
Pois bem, tapou o nariz e o olho direito com atadura,
bebeu café e conversou anos e anos
com homens e mulheres que o adoravam
porque sabia rir e todos os dias desafiava a Morte:
"Venha aqui me pegar."


(trad. MP)




23.1.15

Em algum lugar lá fora deve ter um fim





vou escrever palavras frias

com caracteres frios

de uma tipologia fria

num papel ou tela frios

para pessoas frias

que as recebam de forma fria

em dias quentes

e se sintam contentes

por eu ter escrito palavras frias

com caracteres frios

de uma tipologia fria

num papel ou tela frios

para suas almas frias

que as recebem de forma fria

em um dia quente

e me deixam contente






21.1.15

O dia que as ruas fazem



Costumava acordar no meio da noite e juntar frases num papel, a mão trêmula, o braço sem apoio, o sono ainda turvando o cérebro, daqueles sonos que não prestam para dormir. Nas piores noites desenhava. Não há palavras que saiam nas piores noites. Desenhos acavalados ou uma suave planta da casa. O lugar onde ficava na mesa. Os objetos sobre a mesa. As cadeiras. Seu corpo de costas. A cama. O cachorro morto na moldura. Desenhava todo o seu quarto. Riscava, desenhava o Pão de Açúcar com o bondinho. A praia embaixo com os barquinhos. Era uma noite ruim, mas no desenho havia sol. Não coloria. Não fazia retângulos. Só traços finos num papel que lhe chupava a tinta, ou embarreirava as linhas. Mudava de papel. Sabia que se escrevesse ou desenhasse, um dia tudo ia sumir do papel, desbotar, mas o papel continuaria ali. O papel continua em qualquer canto. O quarto cheio deles. A sua cara de papel, onde alguém desenhara suas feições. Elas também mudavam, iam sumindo para surgirem outras que não reconhecia mais. O tempo é um papel. Sempre estará ali do mesmo jeito, se limpando do que sucessivas gerações borraram. Costumava acordar no meio da noite e fazia essas coisas. Costumava fazer. Fazer. Hoje acorda e não faz nada. Olha em volta no escuro e sente dores ao menor movimento. Não sabe dizer se são dores imaginárias. Se são dores do escuro. Não quer acender a luz. Não faz um movimento para acender a luz. Apalpa o corpo e vê onde dói. Sabe onde fica cada órgão. Aprendeu em manuais de anatomia. Nos desenhos dos manuais de anatomia. Abaixo do estômago não fica o Pão de Açúcar. O coração é o lápis empunhado pressionando a linha no papel até doer no verso. Uma dor aguda, pontilhada. Seu nariz está ressecado. Tem todos os remédios na mesa de cabeceira. Leva uma cópia deles na bolsa também. Nunca fica sem seus remédios. O ombro esquerdo é o que mais dói. O baixo-ventre. Levanta para urinar. Tudo que está ali dentro do corpo quer sair. Tem medo de que todos os seus órgãos lhe saiam com a urina. A bexiga é sombra e luz. Um dique. Pode arrebentar. Extravasar. Sente um arrepio no corpo. Seu sexo incha. Pensa em se masturbar para aliviar a pressão. Para se masturbar precisa imaginar algo, mas não imagina mais nada. Está no escuro e olha em volta. Sabe onde ficam as paredes. Volta para a cama. Não gosta de determinadas camas. Se acha que vai morrer numa, troca por outra. Há camas que nos puxam para a morte. Prefere colchões no chão. Sempre que acha que vai morrer, deita o corpo no chão frio e fica ali até passar. O mal passa. Sempre passa. É só esperar. O café esfriar na xícara. O dia vai amanhecendo sem precisar desenhá-lo. Os passarinhos estão em seus barcos cantando. O primeiro bonde sai da estação. Vê o contorno da praia lá longe. A baía em forma de bexiga. A dor se apaga sozinha. Já consegue respirar melhor. Tenta buscar uma frase de última hora. Uma borracha. Pega o caderno e desenha as palavras. Acavaladas. Elas têm o seu rosto. Olha para ele e não sabe quem é. Não vai mostrá-lo a ninguém, se a voz que sai de sua garganta não é a mesma que os outros ouvem. Fecha os olhos para não ver o dia que as ruas fazem depois da noite. Pão de Açúcar.







20.1.15

Poema de Maria Martins a Marcel Duchamp




Mesmo muito tempo após a minha morte

Muito tempo após a tua morte

Quero te torturar.

Como uma serpente de fogo,

quero que o meu pensamento

enrole-se no teu corpo sem queimar.

Quero te ver perdido,

asfixiado, perambulando

pela névoa sombria dos meus desejos.

Para ti, desejo longas noites insones,

repletas do tamborilar estridente de tempestades

distantes, invisíveis, desconhecidas.

E no fim, quero que te paralise

toda a nostalgia da minha presença.

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(Maria Martins, escultora brasileira e amante de Duchamp, 
fez este poema por volta de 1945. Trad. Maira Parula, 2015.)



19.1.15

Uma tarde com Conceição




  

                                                         Uma tarde na Vila Real de Conceição de Sabará


Queria entrar por mim como um verme
fumando
abrindo escadarias com o concreto das avenidas
para encher tua boca tua aba com o pó das ruínas
quando escreves um poema soterrado de versos
mal traduzidos de bardos mortos que nem conheces
para enfiar no cu do teu soneto um imbé gigantesco
lepra onde era piso
a Capela do Bagre onde era o mato do inframundo
este, por onde nunca passaste após um disparo









13.1.15

Em que lugar da casa você daria um tiro na cabeça





Em que lugar da casa você daria um tiro na cabeça
em que ponto turístico da casa
em que rua da cidade
de pé
em ruínas
sentado em que móvel
ou automóvel
deitado em que tecido
de que cor
a cor que faz lembrar de alguma coisa antiga
de um projeto futuro
futuro promissor
o tecido macio
você desliza a mão
não é a pele que está ali
é a pele da casa
você está cercado pela pele da casa
que o envolve feito carapaça
a pele áspera da cozinha com tanto café
xícaras que conversaram
em que lugar da mesa você se senta
você tem lugar marcado
na cama tem lugar marcado
o seu travesseiro preferido
o braço dolorido onde apoia o peso do corpo
o ouvido que não encosta no travesseiro
porque não quer ouvir o pulso do coração
você vai poupar o coração
a cabeça foi declarada culpada
com dados viciados
não cabe recurso
em que lugar da cabeça
você é canhoto
não falo dos motivos
falo da mecânica
em que posição da cabeça
tombada
queixo erguido
ou vai mergulhar de cabeça 
do alto de uma cachoeira
mergulhar em areia movediça
você turvará a mente dentro da cabeça
com alguma droga artificial
ou a bílis será a sua bebida
escreverá um bilhete de cara limpa
não há mais papel em sua casa eletrônica
de pele áspera
vai escrever no papel do cigarro
você não fuma
na bula do remédio
sim, na bula
você não quer deixar bilhete algum
tem uma ponte a quarenta quilômetros daqui
com que tipo de arma de fogo
reluzente
escura
vai mirar o ouvido
a têmpora
a cara a boca a nuca
tem um banco no jardim
a casa está em silêncio
os passarinhos comem na sua mão
o pensamento são fardos de algodão
o sol já vai se pôr
então não existe disco voador
você é o holandês do navio-fantasma
aquela prece não sai da sua cabeça
o banheiro está limpo
você borrifa um perfume cítrico atrás da orelha
penteia o cabelo
a lua cheia
maré alta
que coisa barroca dar um tiro na cabeça
descasco uma banana
ponho canela e acendo o forno




10.1.15

ode jabuticabeira





vou morrer bem velhinha no meu canto

você vai morrer bem velhinha no teu canto

à sombra da mesma jabuticabeira carregadinha

os meus cachorros te trarão framboesas e pitangas

os teus cachorros me trarão abacates e caquis

eu lerei ode marítima para você em silêncio

você lerá to be or not to be para mim em klingon

eu cortarei o teu cabelo no verão

você cortará o meu com uma espada samurai

hão de ser 365 dias sem tradução

ou notícias tristes do Afeganistão

no meu canto não brotam jornais

no teu canto, a natureza inteira

à sombra do universo jabuticabeiro

vamos morrer bem velhinhas

na confluência súbita dos rios de janeiro







5.1.15

discurso de formatura





Vivam as cenouras

os abricós

a logopeia

a espermatozoa

Catulo Tibulo e Ovídio

o meu padeiro

o meu padroeiro

a semiótica da operação tradutora

os meus tapetinhos coloridos

a langue e a parole

a minha frigideira velha

o seu wilson, que vai tomar no cu

eu, que não vou reescrever nada do que escrevi

porque o senhor agora está mais morto do que eu

e o seu latinório ficou com os vermes

vivam os vermes e as cafetinas dos vermes

eu, que cago pro que escrevo

meu lupanar, que também caga

os jovens poetas, que cagam pro seu wilson

e versejam enquanto eu faço as unhas

vivam a revista da USP

as assonâncias

as marmitas de ração

a vagina magna cum laude de Mina Loy

o vou-me ego sum

as pálpebras de Narciso

meus 217 merréis no banco

translatorminimus e cia.

vivam o Nada, o Sexto e o Propércio

os macacos que me mordam

os noivos a farmácia

os subterrâneos da pós-graduação

o escondidinho de carne seca

e a conjugação do verbo viver.






1.1.15

Para a coisa




dedico estas cinco horas da manhã à coisa

cinco horas da manhã envoltas em papel celofane
amarradas com fita vermelha em laço
entregues na porta de sua casa
no silêncio exato do pequeno almoço

na fresta entre três e quatro 
um cartão com uma coroa de versos mistos
sem a assinatura de tudo que passou comigo.

a coisa desancora
regurgita sete passos até à porta
recebe o maço das cinco horas
dispensa gorjetas
procura um vaso
desmancha o laço

uma das horas cai
de sua mão já fria

prendo um elástico nos cabelos
e saio para a aula de química
na música que se faz agora