30.11.15

Os desconhecidos alegres





Ela não oive de lá
que eu oiço daqui. 
Vão almoçar no quintal 
o bando de amigos com seu casal. 
Uma rua de mesa de jardim. 
Gente assim não senta na grama. 
Não chora além da porta. 
Os desconhecidos alegres. 
Um garrafão de Violet tinto. 
Dois velhotes expansivos trocam charadas intelectuais. 
Os jovens, de reticências -- voltaram da Grécia de espírito aberto. 
Mexo a panela, oiço mais um pouco. 
Alguém vai escrever uma biografia d'outro, por comicidade. 
A varanda olha suas portas amarelas.  
Falam de um monge que atropelou uma cobra, 
há uma encenação de significados. 
Falam de telas e cavaletes. 
Uma conversa cacete. 
Outro casal pulinhos atrasado. 
"A vida simples no campo." 
Um telheiro de filósofos. 
Oiço um bebê chorando -- ou torta no forno. 
Essa poeta premiada sua amiga usa muitos "ques". 
Vontade de cair no meio das flores -- dois copos batem. 
No campo sinto que não estou sendo cooptado. 
Nada disso ela oive, só eu. 
O motor do helicóptero passa e evapora. 
Toca o telefone da sala. Corro. Não é o meu. 
O mundo tem telefone na sala. 
Volto. 
Um intervalo sem vozes. 
Seis toques uma mulher atende. 
No quintal, seus amigos riem pelas costas. 
Ela fala alto no telefone. 
Uma voz tão melodiosa 
quase deixo me queimar. 
Minha poesia tem só treze anos, Paulo. 
Eu queria poder ver os gestos que ela faz. 
Fico com essas palavras batendo no sino da capela. 
Na sirene da polícia. 
No trem entrando na gare. 
A ligação termina. 
Temos de almoçar. 
Ainda esperam o fígado do cordeiro. 
O nevoeiro entra pelas janelas: ela não virá, mais uma vez.




19.11.15

Banco de espera da Psiquiatria







Quando topamos com alguém no banco de espera da Psiquiatria, não dá para saber o que aquele indivíduo lê, e se chega a ler. Em Berlim 1940 só eram permitidos banhos aos sábados e domingos. Neste século não está muito diferente, por motivos climáticos que entendo pouco. Vejo que Toy chegou cedo. Toy gosta de ler relatos e diários de guerra. Biografias de senhores das duas guerras mundiais. Toy não é o seu nome verdadeiro, que desconheço. É o nome do cachorro que passeia entre um banco e outro da Psiquiatria. Fico encarando Churchill de páginas abertas nas mãos de Toy, como se suas mãos fossem uma relíquia hipnótica de Dardanelos que eu perdi. Imagino se Toy diverte o psiquiatra com anedotas de campanha, ou se abre a lista de baixas que tem na memória. Olho as revistas ilustradas. Normalmente não gosto de livros de mais de trezentas páginas. Não tenho tempo. Preciso de trens expressos de alta velocidade. Acumular milhas de história é bagagem incômoda. E além do mais são pesados. Abrem o meu pulso. Mas hoje Toy está de banho tomado. Terei de esperar a sua consulta e só depois será a minha vez. Pedirei um café à antipática cordial da padaria ao lado enquanto espero essa vez. Abrirei o meu bloco de anotações e verei qual tema da minha vida devo abordar hoje. Isso se o psiquiatra não começar a falar da própria vida metade da consulta, o que anoto assim que saio para comparar com a minha até que o perigo passe. Elza se ofereceu para vir me buscar, não vale a pena. Posso me confundir. Elza é muito bonita, e sabe contar minúcias das mortes como numa rodada de fotografias. Identificar corpos. Embalsamar. O cheiro da sua água-de-colônia pode me realocar. Preciso ficar só depois das sessões. Ver se ainda estou viva. Se o prédio não desabou arrastando o meu mínimo necessário. Telefonar para mim mesma e me tranquilizar. Enquanto isso, Toy já estará em casa, são e salvo. Quem sabe lendo mais um capítulo de Churchill antes de capotar no seu colchão seco. Aprendendo russo on-line. Fritando batatas. Inventando pretextos para cada circunstância. Ou tomará outro banho depois de conspirar pelo telefone. Toy fecha o livro e cruza os braços. Está impaciente com a demora. Já não se concentra na leitura, como eu me concentro nele. Tão amigos antes da guerra. 







13.11.15

A galinha morta de Borremans






Quem só fala de primaveras e orvalhos me odeia.
Devo ter cara de lama tóxica.
Da galinha morta de Borremans.
De burguesas sem viço e sem métrica.
De verbos vindo à tona em lixões a céu aberto.
De quem traz o revólver na cintura.
E no entanto sou tão linda.
Uma coisa vaga.
O batom na pia do banheiro.
O copinho de cachaça por trás de janelas fechadas.
O sol de Pilatos.
A ânsia de vômito de Pushkin.
A raça secreta das meninas de família,
dos governadores de estado.
Um terraço cheio de plantas voluntariosas.
Não precisam de primaveras ou orvalhos.
Barbantes filosofantes --
minha poesia causa câncer.
E trabalho com muito entusiasmo
quando a noite começa a jorrar.





Azulejo






do portão não me ouvem mais

vento
respiro
água. 

trocamos algumas palavras








metabólica






amores rápidos


    metabolismo lento






8.11.15

Foi por aqui que correu o sangue de César




Foi por aqui que correu o sangue de César
onde agora acendes luzes de néon
no meio da neve

12 de abril de 1940
e a tua família posa na varanda
com o cachorro e a bicicleta

como o cachorro e a bicicleta
guardarás a foto até a morte
porque os espelhos cansaram do teu rosto

ela ficará na parede com a tua boca
horas a fio
dias a fio
enquanto limpo o cromado das rodas