20.7.16

Jeito na vida





Eu deveria tomar jeito na vida, pegar a pá e enterrar isso numa cova bem funda no meio de uma mata fechada onde nem as almas dos condenados ao perdão ousem se abrigar. Meu erro foi ter feito um serviço porco e às pressas emparedado com pouco cimento e muita areia. Eu não deveria ter sido tão miserável e displicente comigo mesma. Com o tempo o cimento se esfarela, cai pelo chão e tenho de ficar varrendo e a cada varrida tudo volta à superfície e respiro o seu pó, porque é isso que nós somos, você e eu, pó da história, pó do romantismo dandista. Eu deveria tomar jeito na vida e enterrar o corpo que você esquartejou ainda vivo, ainda respirando, ainda abraçado ao seu próprio corpo. Mas você não se deixou levar, descolou-se, saiu do caminho e deu meia-volta para nunca mais e agora eu, miserável comigo mesma, vou dessangrá-la mais um pouco dentro de mim, não pela menstruação das possibilidades vivas, mas pelos pulsos a cada canetada no papel já amarelo, porque escrever é sangrar como um porco, o nosso porco velho de refrigerador enferrujado que sempre pinga mais uma gota quando passo a faca em seu pescoço. O pescoço que não se beija mais na varanda em frente ao viaduto Paulo de Frontin porque você, no último degrau de sua escada monóxida e magnânima, veio só me comunicar a sentença. E no meio do barulho dos carros eu ainda duvidei que estivesse ouvindo o que ouvia, a sua clareza didática, a sua frieza revolucionária, você conseguiu, coração altivo, se precisa me matar para sobreviver, você conseguiu, só posso aplaudir, eu não tenho a mesma coragem, tenho um corpo recurvado no portão que abri sem me despedir deixando as marcas de minhas mãos suadas. Eu voltei por baixo, o viaduto nem sei se chorava, eu estava quebrada, no meio dos carros que seguiam na direção contrária eu estava quebrada debaixo daquele viaduto imundo que bem antes havia desabado por um vão e matado não sei quantos com suas compras de natal,  e quem sabe foram eles os esmagados que me atormentaram os ouvidos aquele tempo todo, que me chamaram para você quando eu nem passava por aquela rua e morava do outro lado da cidade. E muito depois de mim a sua casa também viria abaixo e você se mudaria para o outro lado da cidade que era meu e eu tive de fugir da cidade e aprender a largar o portão suado sem me deixar vir abaixo. Eu poderia ter me jogado na frente dos carros, mas a história ficaria mais ridícula do que já é, e porque eu preferi matar aos pouquinhos o que morto estava para ver se bem matado eu poderia arrancar dali muitas histórias para lembrar e sofrer e criar palavras mortas pelas quais não lutaria um décimo. Debaixo do viaduto não param ônibus. Tive de ir correndo para a praça, subir trêmula os degraus e me sentar na janela para respirar o ar carregado do seu bairro, carregado de você. A mesma janela de ônibus em que dias depois eu a veria na rua do meu lado da cidade sorrindo e esperando atravessá-la, atravessar-me, e tudo voltou em meu peito como agora. Não, não como agora, agora estou fria, agora é inverno, são nove e meia da manhã depois de alguma década, eu estou em outra cidade e você está morando na minha rua da cidade que deixei, na mesma rua em que eu morava quando você disse para eu não voltar. Como isso é curioso. Quase êxtase de poeta tuberculoso. O meu cheiro ainda deve estar por aquelas palmeiras imperiais. A minha voz. Você passando na frente do meu prédio quando sai para trabalhar. Eu aqui não tenho nada que lembre você. Ao contrário de você, eu não fiquei com um livro seu, um disco sequer, um presente. Restaram umas cartas suas que você nem assinava, podem ser de qualquer um. E quando as releio, lembro de qualquer um. Umas cartas em que você não menciona o meu nome. Falando do amor que sentia pela pessoa não nomeada. Talvez você mesma módulo de mim. E na última fala do alto da escada do conde de Frontin, você se traiu. Na última fala, mentiu. Como as grandes rainhas de domínios de sangue já explorados e secos. Mentiu. E essa covardia eu não posso perdoar. Como não perdoo a minha. E você hoje lê minhas mentiras. Minha "voz feminina" nos textos que escrevo. E diz que gosta. Você é outra. Somos outras. O tempo passou. Atrações turísticas, quando nos olhamos contemplamos lagos, rios, montanhas e firmamentos. Depois nos cumprimentamos formalmente e sorrimos. Tenho um viaduto de paciência onde carros ainda passam acelerados. 









19.7.16

Decreto-lei

















no dia em que você me abandonou, 

a presidência da república alterou 

a legislação referente ao imposto único 

sobre lubrificantes e combustíveis 

e deu outras providências









Collagene del mondo (esparsos)






#   vento de quatro portas

# el baibém de la barca
#  esforço descomunal para não abominar o que escrevo
# o uso de calcinha molhada pode provocar emplastro ovariano
# mágoa furtada
# o piano do sul. o piano do norte
# circunburrice
# cascatas de mármore
# diga o que você quer
# todas as always
# limoliberal
# empanzinada de esperança
# poesia anestésica
# os replicantes da ficção da singularidade

# evangelho de shopping-center
# tudo em mim é alguém
# footing de baratas
# uma semana pensando na música do futuro
# gosto na boca que não se apressa
# meio mulher, meio latim
# mamilos obedecem
# poesia projetiva
# a gaveta de mola que no seu desenho habitamos
# e imaginar que um café
# só mais uma rês/ amanhã talvez
# não é inteligência, são nódulos
# tão bela que se fosse 1 polegada mais bonita seria monstruosa
# sopa de cerne

#tempurá de jaca
# quando não puder combater, sufoque
# a maldade e meia de escrever
# há algo de suicida em querer ser homem ou mulher
# a lot can happen in one ear
# quem moça lava poemas de sainha

#
um coração de molho frio
um anapesto da Ligúria
duas átonas e uma tônica
descascadas à faca
socadas no liquidificador
servidas com o vinho acre
que preferires no dátilo
rítmico de tuas pétalas

# assoprando o braseiro da metanoia
# madrugada penso nela/ o franguinho na panela

#
ninguém se ama
ninguém se quer
Küche, Kirche, Kinder

#
flores de acácia eufraternas
cheirando heroína de porão

# much Ido for nothing
# poesia pejorativa
# vibrou na coroa de sangue
# moinho autoritário

# há 20 anos, num gesto de total desapego filosófico-histérico,
   vindo sabe onde do nada, doei toda a minha biblioteca
   marxista-leninista. quem ganhou cobriu-se de felicidade.
   havia também volumes de produção clandestina anos 1970 
   e obras anarquistas. hoje me arrependo. dariam uns bons cobres 
   no leilão de ideologias. 

# vizinho é aquela pessoa que martela parede às 8 da manhã
   de um domingo. outra tradução de vizinho é "o próximo". isso,
   mistura cimento, boludo. em geral, são velhos aposentados.
   e burros. descerebrado adora fazer obra. emendam uma na outra. 
   porque não têm mais nada para fazer. ver tevê.
   and vanish along the level of the roofs.

# bárbaros vs. helenos

# very whatever

# "burguesificado"

#  "perhaps she's straight to say something" (Maria Gladys matando a Madame)










3.7.16

Talijanska tatuou




Talijanska tatuou uma bicicleta no braço só por mim
Toca La Partida no acordeom sem tirar-me os olhos
Suas rodas de carvão tribal giram na pele a linha Maginot
Oklahoma à noite lembra qualquer lugar à noite
Talijanska quer correr na praia solando bemóis como a Dudkowiak
Depois se cansa, ajoelha e besame mucho
Pergunta se eu gostei
É que houve um delay
entre sua imagem, o áudio das ondas
e o dedilhado dos baixos
Ela sorri como São Petersburgo
Um riacho de esgoto deságua no mar
Talijanska toda de branco parece um bule de chá
O pescoço de um cisne de quatro vozes
Oklahoma à noite lembra qualquer lugar
Harmônica e os Alpes
Músicas rancheras
Foragidos do Oeste
Refugiados do Leste
Delfos, Creta e Esparta
Endeusdamientos
Por um punhado de dólares a mais
A fistful of kaze no ne fucks
Talijanska tatuou uma bicicleta no peito só por mim
Nuestra muerte tenía un precio