30.11.16

Gaivotas ouvem rádio





Gaivotas ouvem rádio



-- Eu não gosto de gente.
-- E eu?
-- Você não é gente. Você é um animal.
--  








28.11.16

1 poema de Chantal Maillard






Entremeio




Entre uma imagem tua
e outra imagem de ti
o mundo fica parado.
Em suspenso. E minha vida
é esse pássaro grudado no cabo
de alta tensão
depois da descarga.





("Intermedio", em Lógica borrosa. Tradução de Maira Parula.)





25.11.16

[esqueça que me conheceu]




Esqueça que me conheceu

que de alguma forma soube de mim

sentiu o meu perfume

falou de mim com alguém

esqueça o que leu

o que ouviu

o que sentiu

esqueça que eu passei pela terra

e se me vir

atire pra matar







14.11.16

Duas horas




Aquele domingo

Aquele


Sentadas aos pés da porta da rua


Sua cabeça no meu colo


Nem sei do que falávamos


Meu ônibus partiria em duas horas









13.11.16

Eu o visto a mulher



Eu o vestiria de mulher e faríamos um chicken soup no chão da cozinha. 
O mais perto possível do forno aceso. 
Não precisamos de maquiagem. 
Depois eu limparia todo o seu corpo melado com a minha camiseta molhada preferida. 
Ele tem as pernas finas de Anne Sexton e o imagino sentado de coxas cruzadas atendendo meus telefonemas mais pueris. 
Um copo de Benrinnes ao lado, um ligeiro desvio na coluna, um cigarro encancerado na curva do cinzeiro. 
Os óculos mal-ajustados descendo milimetricamente pelo nariz. 
Ele acerta as hastes atrás das orelhas e ouço sua aliança raspando no receptor plástico do telefone. 
Os pneus da cadeira giratória ferindo o assoalho de madeira. 
Eu o amaria e ele escreve poemas de amor para outra. 
A mulher de fato. 
A que não me conhece e não sabe que eu o visto de mulher quando ele chega do trabalho no meu pensamento. 
Que eu faço o que ele me pede. 
A estrela da morte. 
Em forma de muffin e nos respingamos as duas num romance psicológico de quatro portas. 
O hacker do cubículo em frente disse que posso ler toda a correspondência de Sexton se eu quiser, é só contratá-lo. 
Mas o que me restaria para imaginar? 
Para acrescentar. 
A sala dele, o escritório, o quarto de dormir, o fogão. 
As filhas que eu não lhe daria. 
Minha mãe tentando me abortar com aguarrás. 
Os gritos que damos dentro do túnel sem saber se estamos indo ou voltando. 
Ele me apresentando aos seus amigos, É a minha sobrinha. É a minha avó. 
Como eu apresentava meu pai aos meus, É o meu professor de matemática. É o cão do meu rebanho. 
Sexton acende o cigarro que dormia profundamente: as pílulas são a dieta da morte. 
Os oito beijos químicos. 
Ele para de falar e espera de mim uma reação. 
Eu copio o que ele diz no meu diário. 
Coloco outras palavras no meio. 
Bioformas. 
O doce peso do seu útero. 
E não comento nada. 
Ele sabe que quando fico em silêncio é porque gostei. 
Como os quadros que nos veem nos museus. 






10.11.16

Eram franceses



Hoje verei se uns livros velhos de capa dura valem a pena.
Valem o meu deslocamento pelo ar quente da estrada.
Uma trapista suada.
Um olhar para fora do carro.

Chegando naquele ponto da carne bem-passada
em que você olha para os outros comensais,
pega o garfo e que tudo se foda.
Baixa os olhos e ri.




2.11.16

EU NÃO VOU SAIR VIVA DESSA POESIA



A poesia é meu nó oito duplo
minha HK MG4
meu DSR 50
eu não vou sair viva

A poesia é uma Liberator

uma Global-G2
um búfalo Fabergé
minha Pepper Box
sua Randall

A poesia está na cozinha

no fundo escorregadio da piscina
na alça feita de bétula
nos pneus do Tatra T97

Está na noite 

está no dia

pesa menos de 1 kg
sob o sol inotrópico
de sua nuca infantil
tuberculosa de amargura

A poesia está

A poesia singra
A poesia paralisa
as ervilhas cerâmicas
de Pablo Picasso

A poesia mói mói e mói

pedras Vênus
ossos de galinha
e devolve um aceno de vidro
com o calor de sangue fresco