24.5.17

estamos bem




a faca debaixo do meu travesseiro era para você, pae
mal uma adolescente, esses braços fortes fortes
nadavam nadavam em si mesmos
a distância entre nós 
escola - presídio - manicômio - hospital
nunca sabemos estar dentro de qual

a mãe e eu estamos bem

comemos ovo de dia
comemos ovo de noite
aí onde você está
conte ao meu amigo 
do outro lado do mundo
que estudo até tarde
que não há o que eu não faça
que este sangue nos meus olhos
para a sua sorte
não é mais ódio
é da melhor ganja do norte






14.5.17

Buenas noches y vaya con Dios




Lírio Melcides é a antítese em pessoa. Sem família, esposa ou filhos, vive sozinho desde a mais tenra mancebia. No entanto, gosta de ficar entre seus pares, principalmente à noite, quando abalroa-se com escritores, artistas, professores acadêmicos, milongueiros, intelectuais e boêmios. Nessas ocasiões ele bebe vinho e fala. Apesar de não desposá-las, amou muitas mulheres. Único poeta vivo com busto no salão de jogos infantis do Esporte Clube Metropol, foi criado pela avó de parentes distantes. Orgulha-se de ter tido pais analfabetos, porque Saramago também tinha os seus. Sempre foi humilde embora altivo diante dos grandes mestres da literatura com quem se relacionou e aprendeu. Quando não gostava de um dos seus 123 manuscritos, rasgava-o sem piedade -- depois de publicá-lo. Publicou os 123. Candidatou-se 13 vezes à ABL e à vereança. Não auferiu os votos necessários. Em entrevista posterior à última tentativa, declarou que nunca mais concorreria à Académie, à vereança, a nada. Então tornou-se sócio do Instituto Michelin de Letras. Tem muitos amigos entre os maiores escritores e artistas. Conheceu de vista Neruda ao passar na frente da Chascona depois de uma dose dupla de ayahuasca. Após ler uns versos de Melcides do outro lado da mínima vidraça, o deus da poesia chilena lhe disse com linguagem labial: “No viví en mí mismo, tal vez viví la vida dos otros”, o que Lírio balbuciente traduziu em simultâneo para: Não desista, insista muito na poesia. Conheceu de passagem Saramago ao entrar em uma livraria de Belo Horizonte e ali mesmo firmaram grande amizade num autógrafo carinhoso mútuo, Amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito. Encontrou-se por acaso com Cortázar na Confitería London City, onde Julito fingiu não conhecê-lo por trás do cigarillo, o que Melcides interpretou como uma broma do gênio que certamente via algo diferente em Lírio de chapéu. Recusou-se a conhecer Borges e T. S. Gambá, porque eram de direita, mas depois que seu primo engenheiro naval disse que ele guardava alguma semelhança física com a fácies de Ezra Pound, ele decidiu ir à casa de Borges que o recebeu à porta com um "Buenas noches y vaya con Dios". Seu tio por parte de pai era amigo de comunistas e por volta dos anos 1960 lhe emprestava manuais de estratégia bélica. Isolou-se para estudar. Seu sonho era seguir os passos de Lamarca  e ser chamado um dia de Comandante numa célula literária. O tio no entanto era de uma organização rival à de Lamarca e então Melcides consolou-se estudando teologia na clandestinidade com o sonho de um dia ser chamado de Cardeal. Isolou-se por 122 dias na Serra da Contamana. Com o esfacelamento da luta armada, foi ser corretor de seguros e jornalista sem abandonar a poesia jamás. Seguiu publicando sua copiosa obra. Frequentou os melhores restaurantes, bares e glosas, um curso de filosofia e centenas de mulheres famosas, todas bonitas, ricas e artistas plásticas para quem recitava seus poemas na falta de Xanax. Lamenta nunca ter se apaixonado por uma poeta. Lírio Melcides é detentor de 11 prêmios internacionais em sua carreira literária: 4 nos EUA (Alabama, Rhode Island, Dakota do Sul e Nebraska); 2 no Panamá; 2 na França (Côte d’Azur e Verdun) e 3 no Paraguai.










12.5.17

Sniper do Tempo






Quando se presta atenção no minuto
ele demora a passar
sniper do tempo
eu o espero no vento zero
no ponto T de estrangulamento
entre terra e mar
não sei onde estou
qualquer lugar é lugar do inimigo
não me distraia






11.5.17

poietikê technê



Isabel a Católica expoliou e assassinou judeus-muçulmanos-conversos.
Purgou-se e purificou-se no templo da poietikê technê.
Hoje toma cappuccinos fit na livraria Lagoa com bardos e bardas
livro-pensantes da Inquisição retórica que consegue amealhar
em seu cerco midiático eletrônico. 
Isabel tem uma fogueira de orantes sonetos ardendo 
em seu coração maravedi 
e uma hoste de seguidores e groupies fantasmatizados
por seu Überitchy instagramático. 
Stalker da cruzada de cultura sonoro-imagética que vale mil palavras, 
acha os filósofos popstars de bula burros mas politicamente úteis.
Não perde uma palestra. 
Isabel vem nas versões direita, esquerda, amazônica, Ken e facial neutra. 



9.5.17

Tu és a criatura mais divina




Sentada na sacada do segundo andar 
de um cabaré da terceira idade.
Av. Mem de Sá. 
Blusa vermelha desbotada.
Alça do soutien insegura.
Cabelho grisalho.
Sovaco raspado.
Cigarro aceso.
Anel de lata.
Ninguém a abohece.
Pitú de Santo Antão no copo.
Olha o asfalto.
Olha o Adilson.
Entram pelos seus ouvidos.
Minha querida.
Bolha no pé.
Adoro o teu porte divino. 
Tu és a criatura mais linda
que meus olhos já viram.






8.5.17

Pantomima




Os bichos saíam pelas capas. 
Pelos buracos roídos no papelão. 
Não piolhos de livros 
que de ventre inchado de polpa 
sobem paredes úmidas num arrasto de digestão. 
Nem traças -- a Ordem Thysanura que se esconde durante o dia. 
Maiores. 
Ancilóstomos. 
Lumbricoides. 
Eu coçava o corpo inteiro. 
Levanto e jogo uma água no rosto. 
Cubro-me de óculos. 
Estão por toda parte. 
Descendo uma prateleira, a outra. 
Trilhando lombadas. 
Fugitivos de bueiro saltando de dentro do miolo,
encolhem o corpo viscoso para forçar passagem. 
Os menores, infantes, despencam ao abismo dos meus pés. 
Não acendo a luz do teto. 
Não preciso ver mais do que estava vendo. 
Viro-me à cama de onde saí. 
Nada. Limpa. 
Seria mera questão de tempo. 
Passo a mão no cabelo com o pouco tato do desespero. 
Nada. Nenhuma superfície mole e molhada. 
Eu estava seca. 
O ar frio penetra-me os poros. 
Ergo os olhos e acompanho a pantomima à minha frente. 
A movimentação aleatória dos protagonistas. 
Tento ouvir uma fala. 
Traduzir onde não há esqueleto. 
Minha audição desperta.
Juraria que conversam. Trocam comandos. 
Alertam-se do perigo que represento. 
Eu poderia matá-los pelo fogo.
Decepá-los seria duplicá-los, triplicá-los. 
Cada pedaço se regeneraria em novo indivíduo. 
Estão comendo o que milhares escreveram.
As histórias que me contam desde a infância. 
Roem a mim. 
Outras têm seus livros 
mas estas são as que li e acrescentei minha vida. 
Escrevi-as em parte. 
Decepei, dupliquei, tripliquei. 
Sinto uma ânsia de vômito no entreato. 
As cenas se desenrolam num palco elisabetano. 
Mambembes, rastejam pelos vários níveis de arquibancadas.  
Não sei mais se sou palco ou plateia. 
Se me observam, se perguntam o que estou fazendo ali
ainda de pé na porta de sua sala de jantar. 
Se não vou me deitar para o repasto. 
Eles não param o que fazem para tentar me escutar.
Talvez não precisem. 
Talvez me ouçam de outra forma. 
Por nervos, por sentidos. 
Pelo que poderia lhes dizer a representação do meu choro.
E então choro. 
Solitária enfim, choro e me curvo úmida numa reverência. 
Rastejo e me desmancho sob seus aplausos.










4.5.17

P.S.




P.S. Lembre-me de botar esse adesivo no meu fuzil.







3.5.17

Irmãs Papin







Clausura e pé de moleque







Estase









Playing tennis 
alone in a Mars 
desert research station