17.10.17

Lyra





Ele tentou a porta de tela e a maçaneta abriu-se docemente em sua mão. Todas as outras entradas da casa estavam trancadas. Lyra marcara 15 horas. No seu relógio 14:55, no da cozinha 14:52. Gritou chamando Lyra, uma, duas, três vezes Lyra. Ninguém, nem mais de ninguém. Sentou no sofá da sala e esperou. Iam ao dentista. Às 16, consulta marcada. Extração de siso. Enfiou o dedo na boca e futucou os dois da esquerda, os dois da direita. Não doeu. Quando não dói é porque está doente, ou o contrário. Ele não lembrava mais. Então devia ser grave, seus quatro sisos não doíam. Lyra devia estar doente, sim, era ela. Os sisos de Lyra. O pai só chegaria às 8. Bêbado. Tinha de tirá-la da casa antes disso. Lyra pensava que ia levá-lo ao dentista, mas ele é que iria salvá-la. Ele sorriu por isso, olhando para os tênis. Contou os furos por onde entravam os cadarços. Toda casa tem um furo por onde ele entra. Maiores ou menores. Levantou e foi ao banheiro. Onde ficava. Guiou-se pelo faro, entrou e trancou a porta. Precisava cortar o cabelo. Deu dois passos e baixou o zíper. Entrar na casa, não, pensar em entrar na casa deixou seu corpo vulnerável outra vez. Fez os movimentos que aprendeu com a mulher que fazia gozar com as mãos espremendo espremendo a pasta de dente até sair o pus todo e ele ficar zonzo. Abriu o chuveiro e deixou escorrer pelo ralo. 15:08. Ninguém entrou na casa. Lyra atrasada como sempre. Se era para não vir, por que marcou. Lyra tão alta, ele tão pequeno. Não gostava do pai, achava que ela não gostava também. Ela caçoava. Passava mil vezes na frente da TV quando ele estava vendo seu programa preferido. Lavou as mãos. Deixou que o calor da tarde as secasse. Levantou a tampa e viu que era um bolo. Arrancou um pedaço e comeu enquanto se esquecia de como fora parar na cozinha. Como fizera para chegar até ali. Quantos passos. Não lembrava mais daquela cozinha. Alguma coisa estava diferente. Geladeira nova. Abriu. A água desceu com o bolo que o sufocava. A maçaroca desceu raspando e afundou no estômago onde não respiraria mais. Melhor para ela. Melhor para todos. Lyra devia estar grisalha agora, de tanto que se atrasava para ele e se adiantava para os outros. Será que a reconheceria. Sentou nos degraus dos fundos. A porta atrás dele dava para o quintal. Também ela se abriu para ele, docemente. Viu casas do outro lado com luzes acesas. Casas onde antes não havia casas. Seu relógio devia estar atrasado. Pensou umas coisas que não saberia contar a ninguém. Nem por carta. Sabia que se não contasse, esqueceria. Lyra o lembrava de todos os seus pensamentos. Ele a ouvia atentamente para saber o que havia pensado e continuar a partir daí. O que estava fazendo nessa casa, por exemplo. Pelo visto não ia chegar mais ninguém. Ele estava mais alto e Lyra, baixinha. Aves noturnas chamavam seus filhos para os ninhos. Fechou a gaveta dos talheres e subiu a escada para os quartos. Docemente.

No dia seguinte acordou sujo. A calça molhada. Pesada. Não viu a cozinha.  O bolo estava no centro da mesa de centro da sala. Ele estava lá, sentado no sofá olhando os cadarços. Passou em silêncio, abriu a porta de tela e saiu correndo atrás do primeiro ônibus. Sentou e viu os cadarços molhados. Não estava chovendo. A garotinha no banco da frente disse que seu nome era Lyra, perguntou o dele. Ele não havia perguntado nada. O pai ao lado dela zangou para ela sentar direito e não falar com estranhos. Ela perguntou por que olhando para a cara do estranho. Ele abriu a janela e a voz da menina entrou por outro ônibus na direção contrária. Estava atrasado para o trabalho. As lojas passavam pela rua. Nenhuma trazia notícias. O pai já havia erguido as portas. Entrou. Vestiu o avental sem dar bom-dia. Lyra colocava o dinheiro trocado na caixa registradora. Não parecia estar com dor de dente. A primeira cliente pediu um bolo. Apontou com o dedo o que queria. O do centro. Ele embrulhou. O pai conversava com Lyra, sorriam docemente um para o outro. Ele lembrou disso e deu um nó apertado no barbante. Ficou olhando o bolo sufocado. A mulher de cara amarrada puxou o embrulho das suas mãos. Quando ergueu os olhos, ela não estava mais ali. O filme começava às 8. Estava sozinho na loja. Ligou a TV embaixo do balcão e viu um homem entrando na casa. Lembrou que já tinha visto esse. Não lembrou do final.