26.12.06

Biscoito/ Alcântara Nu/ Abakuéra



a vida me ensinou que até biscoito 
de cachorro tem sua raison d'être:
aguarda na caixa, estoico e triunfante,
o dia em que há de ser esmigalhado 
por mandíbulas fortes.

eu, como todo biscoito, 
espero de bom grado, que faças o mesmo comigo.
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todos os dias vejo o Alcântara nu
eu não sei fazer poemas
se os fizesse diria o que vejo
quando vejo o Alcântara nu
hoje como ontem

o Alcântara sim é poeta
poeta desinibido
uma alma sem cuecas
-- chega na minha casa
limpa os sapatos na porta
tomamos uma cerveja
e não falamos da vida
poetas não têm tempo a perder
há que se fazer poemas
Alcântara quer ressoar na história
deixar frutos e copyrights
não sei por que precisa da minha opinião
seus versos passam sobre mim
como um panzer

eu não faço versos
moro na rua Halfeld
debruçada na varanda
o que não diz muito
se você não for poeta
mas Alcântara não veio hoje
e eu tenho muita roupa pra lavar

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Abakuéra era um cabra mangatu. Tinha pernas de gente mas tão curtinhas de tanto gastá-las andando pelo kaá ou atravessando os 'ygûasu atrás das mbôia que viviam debaixo de toda itamirim. Diferente de todos os curumins, Abakuéra não tinha Sy, ou se teve não conheceu. Porém, como todos eles, nasceu num kurityba e já antes que lhe nascessem os dentes devorava os pirás que abás traziam das pescarias. Da pouca memória que me restou da inteligência, lembro que Abakuéra não tinha cara de abá, nem de kunhã. Era banguela, com fachada de minhoca e cabelo de coco. Mas seu coração era uma katusaba só. Todos gostavam dele, menos as kunhãs recém-casadas, que achavam que ele tinha cara de abortivo e por isso evitavam olhar aqueles seus olhos de água parada. Não que ele se ressentisse disso, mas que ficava triste, isso ele ficava. Abakuéra se recolhia no fundo da mata com sua tristeza e ficava lá, alisando aipim até ficar redondo, catando a cabeça, desencaroçando concha com a língua e botando pra secar. Algumas kunhãs novinhas no assanho gostavam de mostrar suas akoabas pra ele. Abakuéra ficava com o seu akuãia muito atã e à noite sonhava com babakas vermelhinhas e inchadas feito sapo-boi. Eu tinha pena dele. Que vida de asyara. Ser tratado assim, como se fosse um angaba, um espírito maligno. Mas isso tudo foi muito do antigamente, só conto aqui porque hoje, tirando cera do ouvido, me saíram de lá as lições do mestre Anchieta na arte da gramática. Foi com o padre que aprendi os rudimentos do tupi aos quais me mantenho fiel sempre que posso, apesar de tupinólogos sisudos me julgarem pura abyaka. São todos uns abangaíbas de raciocínio esponjoso e abebó. Não perco o sono. O que foi mais da vida de Abakuéra não sei dizer. Sei que aprendi com ele a contar os anos pelo nascimento dos cajus e Abakuéra me contava isso rindo, banguela de fora, os dois bêbados de tanto akaîui. Não visito mais as aldeias, mas guardo comigo um bracelete de penas presente do meu amigo. Que águas azuis embalem seus sonhos. Anhé será.





9.11.06

Da ensinança de bem escrever



Em nome de nosso senhor Jesu Cristo, que he mandado que todallas cousas façamos, ajudando aquel dito que de fazer livros nom he fim, screvo algüas cousas per que seran ajudados pera a milhor percalçar os que leerem com boa voontade. Faço por ensynar os que tanto nom souberem, e trazer em renembrança aos que mais sabem as cousas que lhes bem parecerem. Per bem screver he necessario que ajom duas cousas principaaes: grande desposiçom e muyto saber. De cada hüa direi apartadamente o que me parece, per que me praz de poer esta scyencya em scripto ainda que tam aproposito nom venham por fazer a algüus proveito, posto que a outros pareça sobejo. (Bem sey quanto pera mym presta fazello ou leixallo de fazer.)

Grande desposiçom: O coraçom oucioso, de tam fraca desposiçom, nom averá poder de cometer, contradizer e soportar todallas cousas fortes e contrarias que perteecem aos estados e oficios de screver. Os desesperançados leixam d'aprender o que pera saber lhes he necessario, e ssom conhecidamente os mais enganados por esto. E ssentyndo esto o vailente emperador Jullyo Cesar, por muyto que ouvesse de fazer, sempre quando avya spaço seguya o estudo e algüas obras de novo screvya. Digo que he visto per speriencia que o coraçom dos que prezam screver he semelhante aa moo do moynho, a qual botada per força das auguas nunca cessa de seu andar, e tal farinha dá como a ssemente que mooe.


Muyto saber: Aos que dizem que screver sem livro se deprende, digo que nom he verdade. Papagayos bem aprendem porem nom leem pera saberem milhor. Aos que bem pratycam a converssaçom de mais cousas razoadamente devem saber, por que esta manha per ssy soo nom he soficiente pera fazer algüu muyto valer. Ssaybham nom tomar jnoramcia por boa voontade. Os que tiram grandes vantagëes do conhecymento em proveito de bem parecer e outras mostramças nom poderóm seer boons scryptores por que a contynuada husança de sua presunçom afastará muytas pessoas se os leerem, que logo se enfadaróm delles. Por regra geeral pessoas de boos coraçõoes desejam leer livros dalgüa scyencya ou enssynança, nom livros bestas mais sem proveito que ellas.


Screver nom he jogo de manqual. Screver bem he saber leer aalem da propria imagem em hum espelho de borracha. E por nom trautarse de avamjelho esto que aquy screvo, leixo de mais sobre ello screver, por muyto nom perlongar. Milhor ouvermos nosso caminho per doutro mar de lomgo.




da Jlha de Vera Cruz, 2004.




8.11.06

Vago navyo de mnha loucura/ Poeta de bronze/ A quem me detesta cordialmente







Ay Deus, vago navyo de mnha loucura,

sola estoy en mi mesa
metad poeta metad galardón
groriosa e tan acabada
quén comerrá 'gora mi coraçom?

Mil veces eu a pastar prefería
e a pastar mui ben
quedar sospirando aa beira do río
como lo mar sobre Lixboa,
o las virgens d'Aragom.

E pois de esquecer-me de mi seendo,
sse fizer tempo, um'onda alta e fremosa
possa levar-me da uida dicendo:
non trobemos, bailemos, gostosa.

*


Sentada na areia. Eu tive medo. Meu pai estava lá em cima. Túnel Dois Irmãos. Não, não estou bem na foto. Não acredite em nada do que escrevo quando digo que meu pai estava lá em cima e nossas janelas não se preocupavam com detalhes. Os barcos entravam aos pedaços na baía do Leme. Meus olhos acompanhando espumas, minha mãe batendo bifes. Há um Copacabana Palace em que não entro. Estou sozinha. Seguro um coco. Escuto mal. Meu pai não vê mais ninguém. Para ele está tudo assim, diferente de um soco. Está tudo atlântico. E nós na foto. 


*


o poeta de bronze

amigos o abandonaram lá com as moscas da areia. 
você respira no meu ouvido, esperando que meu amor saia por ali. 
olhos de anzol, descarrega o mundo no meio da sala e me abraça às cegas. 
resmunga e me pede que eu não escreva isso. 
que não escreva nunca mais porque me arranha o trato intestinal. 
despede-se num balão de quadrinhos antes de partir pra Tremembé. 
patina nos meus pensamentos por uma estrada que já saiu de moda. 
bombons velozes, trocamos de pose. 
nossas mãos juntinhas suando no copo de gim.


*


das pessoas que me detestam cordialmente 

só aceito pagamentos à vista 
embora elas não saibam 
há indisponibilidade total de estoque 
conceitos são pensamentos mortos 
com que vou pastichando uns 
poeminhas de ambulatório 
você faz poesia prèt-à-porter 
e diz que é generativo 
se vende por um pedaço de broa 
e me repassa as despesas postais 
sei que nossa mizade não tem preço 
mas, pense bem, não ia dar mesmo certo.