13.3.07

Éramos quatro





Não sei qual dos dois eu vi primeiro. Qual dos dois eu me lembro de ter visto primeiro. Só sei que tinha uma outra pessoa entre nós três. Uma pessoa um pouco maior do que eu e menor do que as duas primeiras. Esta estava sempre ali ao lado de mim e só ela falava com as duas maiores do que nós duas. Éramos quatro. A outra, a maior de nós três, também vivia perto de nós mas era diferente. Tinha cabelo no corpo e voz grossa. E nem sempre ficava perto de nós três. Ficava longe quando estava claro e só aparecia quando escurecia. E quando aparecia, a outra do tamanho dela lhe trazia uma comida e a chamava de ele para nós duas menores. Eu via que eu sempre ficava ali com os três num lugar pequeno que tinha outros lugares menores dentro dele. Um para comer, um onde eu fazia cocô e a água caía em cima de mim, um onde eu deitava perto da maiorzinha, um onde os dois maiores ficavam sozinhos e outro onde todos nós quatro ficávamos sentados olhando para um quadrado brilhante que piscava, cantava e falava, pois tinha uma gente pequeninha lá dentro colorida como nós aqui do lado de fora. Uma dos dois maiores ficava no lugar onde se comia fazendo o que nós quatro íamos comer numa mesa com quatro cadeiras. Uma para cada um. A mesma todas as vezes. Quando ficava escuro, os dois maiores diziam umas coisas para nós duas menores e tínhamos de sair dali para fazer xixi, jogar água dentro da boca e cuspir antes de irmos deitar juntas. Um dos dois maiores apertavam umas coisas na parede e ficava mais escuro ainda. Nós duas menores íamos para o nosso lugar de deitar, uma em cada canto, e eu subia ali e fechava os olhos bem apertado e todos eles sumiam de repente, pois ficava escuro por dentro e eu não podia me mexer. Jogavam um pano em cima de mim e eu ficava quentinha, o que parecia me ajudar a ficar quietinha. Daí eu não via mais nada nem ninguém colorido. Só umas sombras que se mexiam e falavam comigo embora eu estivesse de olhos fechados. Eu lembro que neste lugar de sombras eu me mexia sem sair do lugar, via uns bichos correndo atrás de mim que me davam medo do escuro e aquilo parecia não acabar. Mas acabava. Acabava quando eu abria os olhos de novo e estava tudo claro outra vez. Eu levantava, ia fazer xixi e ficava andando até um dos maiores me chamar pra me dar uma água branca pra eu engolir. Ela, a maior de nós três, dizia baixinho coisas que devíamos fazer e comer para ficarmos fortes e crescer. O maior de nós quatro já não estava em nenhum dos lugares ali dentro que eu pudesse ver. Depois a maior do que eu que dormia comigo sumia também carregando umas coisas e com uma roupa que ela vestia todo dia a mesma. Daí a maior que sobrava ali naquele lugar me tirava dali e íamos para outro lugar lá fora, cheio de gente do tamanho dela e do meu tamanho. Era claro lá fora, quente. Mas eu não conhecia ninguém. Todos passavam sem falar conosco. E coisas correndo. Barulho. Depois de tantas vezes que essas coisas aconteceram eu aprendi que o maior de todos nós quatro se chamava pai, a maior de nós três se chamava mãe, a maior de nós duas era a irmã, e eu, a menor dos quatro, era a filha. Os dois maiores chamavam as duas menores de filhas, eu não podia chamar a maior de nós duas de filha. Era a irmã. Descobri também que o que fazia tudo ficar claro lá fora e entrando pela nossa janela se chamava sol. E o escuro se chamava noite. Que quando meus olhos se fechavam por muito tempo e eu começava a ver sombras era por que estava dormindo. As sombras eram sonhos. Que eu era a menor de nós quatro porque era criança. Que lá fora as coisas correndo eram a rua. E aqui dentro aqueles lugares pequenos que nos separavam eram a casa. Que toda vez que eu dormia nascia um dia novo. Que os dias eram muitos e juntos eram chamados de tempo. A água que caía dentro de casa em cima de nós era banho. A que caía do lado de fora, chuva. A que caía dos meus olhos, lágrima. Aos poucos eu ia aprendendo todas essas coisas e depois de muitos dias já era fácil chamá-las pelo nome. Não sei de quantos dias precisei para aprender que quando o pai e a mãe falavam alto um com o outro se chamava briga. E que a mãe quando chovia por dentro se chamava triste. Um dia, quando eles falavam alto um com o outro, eu falei mais alto do que os dois e eles pararam de falar alto um com o outro para falar mais alto ainda comigo. A lágrima saiu dos meus olhos e eu corri para o meu lugar. A mãe correu atrás de mim e me chamou de meu amor. Ela disse que me amava. Eu não sabia o que era amava. O que ela me amava. Se eu era pequena e ela precisava me dar comida e dizer ainda tantas coisas que eu precisava aprender. Ela fazia isso tudo todo dia e deitava primeiro que todo mundo porque me ensinou que estava cansada. Eu aprendia rápido. Cansada é quando a gente faz muita coisa sem saber se gosta de fazer. O pai não tinha dias que dizia que me amava. Ele não me ensinou que também estava cansado. E como nunca fez isso em dia nenhum e nunca deitava primeiro eu me cansei dele porque ele fazia isso todo dia. Então os dias se passaram, eu fiquei forte e grande e o pai e a mãe continuaram naquele mesmo lugar comigo. A irmã já tinha ido embora, pela rua. Ela se casou, como o pai e a mãe fizeram um dia. A irmã foi embora para fazer os seus próprios quatro de nós num outro lugar. Eu não quis ir embora para fazer o que a irmã fez. Eu não queria um novo quatro de nós. Eu ainda tinha três de nós em casa comigo. Os dois maiores que ficaram comigo não eram agora maiores do que eu. Eu era a maior de todos. A mãe não me chamava mais de meu amor porque não via mais uma lágrima nos meus olhos. Estavam secos. Eles ainda falavam alto um com o outro, não comigo. Que falava mais alto do que os dois. Eu preparava a comida deles, dava banho, trocava a roupa, levava para passear no sol e botava na frente da televisão para ver gente colorida. Eles não tinham nada para ficar cansados, mas não sei por que eu sentia que estavam cansados de mim. Eu devia estar cansada deles porque batia na cama e tudo escurecia mais depressa do que antes. Às vezes a irmã nos visitava e eu via uma lágrima nos olhos dos dois menores do que eu. Eu chovia lá fora. De raiva, porque eu fazia tudo por eles e a irmã só aparecia e ia embora correndo para os quatro de nós dela que ela havia criado. Antes de partir ela os chamava de meu amor. Mas o que ela sabia de meu amor se nunca a mãe a vira chorando? Se ela nem percebia que o pai e mãe estavam desaprendendo tudo o que haviam ensinado para nós? Se esqueciam das coisas e eu tinha de ensinar tudo de novo? E eu ensinava do mesmo jeitinho que aprendi com eles. Tem dias que eu acho que a irmã está certa. Eu devia arranjar uns quatro de nós mais novos porque os meus estão ficando velhos e daqui a pouco eu não vou ter mais ninguém a quem ensinar, alguém que me deixe cansada até o fim para o sono vir mais rápido e os dias passarem depressa.





3.3.07

Akhmatova, Nagasaki, Omaha & Nobodaddy


AKHMATOVA AKHMATOVA

HÁ UMA MINA ABANDONADA EM POTOSÍ

AKHMATOVA AKHMATOVA

AY CARAJO!

DIGA QUE SÍ




+



Conheci um poeta beat em Nagasaki pouco depois de Emilinha gravar a última cena de "Cala a boca, Etelvina". A cidade estava em reconstrução, voltando a amontoar casas, e qualquer corrente de ar era um risco. Eu evitava tossir. Bob me perguntava do Cassino da Urca. Queria ler seus poemas no Rio. Emilinha já havia trocado a Urca pelo Cassino Atlântico. Bob desconhecia muitas coisas, pude reparar com gosto depois de dois apliques de metadona. Era fã de Emilinha. Decepcionado com Carmen Miranda, sua ambição poética era ser anônimo. Esquecido. Me convidou para conhecer sua família em New Orleans, onde recitava em cafeterias baratas. Jazz poet por essência, dispensara o be-bop depois de ver Carmen no cinema. Chegou a escrever "Cocoa Morning" para o Bando da Lua, que não se interessou. Bob sofria. Parece que não gostava de ser americano. Odiava Ginsberg, que lhe roubara dois namorados com promessas de transformá-los em poetas. Sua última esperança era Emilinha. Eu os apresentei e dois anos depois, com problemas nas cordas vocais, a Favorita da Marinha gravou uma marchinha de carnaval com letra de Bob vertida para o português. Não me ofendi quando a assessora de Emilinha dispensou os meus serviços de tradução depois que Bob aprendeu a nossa língua. Bob comporia muitas canções para Emilinha. Sempre anônimo. Esquecido. Soube disso ontem, enquanto acompanhava o velório de Bob no São João Batista. Com um calor de 42 graus, só o rosto de Bob não suava. Blake saiu sem ser notado. Suas flores já haviam murchado.

+


Eu não sabia que aquele gringo branquelo sentado no Castelinho com o cérebro molhado de caipirinha tinha sido o maior poeta da Segunda Guerra Mundial. Limpava toda areia de Omaha nas ondas pouco cívicas de Ipanema. O deslocamento do ar enchia meu chope de lembranças da guerra. O Castelinho acabou e eu não fui convocado. Havia uma grande distância entre meus ideais e o Corcovado.

+


Arquibaldo era motorista de ambulância e não perdia um filme de Hitchcock. Acabou se formando em direito. Depois de perder duas causas, leu uma edição condensada de T. S. Eliot e resolveu ser poeta. Apaixonou-se pela filha do diretor da Biblioteca Nacional e conheceu pessoalmente muitos escritores que nunca havia lido. O casamento durou pouco, mas então ele já era poeta famoso. Para não estrangular a mulher, pediu divórcio. Não faria versos com sabor de Disque M para Matar. Dividimos ontem um waffle na Confeitaria Colombo porque ele não queria engordar. Para mim foi uma economia. Mostrou-me seu último poema intitulado "Nobodaddy". Acho que ele nunca gostou do sogro. Arquibaldo agora faz poemas em inglês e quer aprender urdu porque não tolera tradutores. Baudelaire levou 14 anos traduzindo Poe para o francês e morreu na merda. Não dá pra confiar. Arquibaldo quer seus poemas traduzidos em muitas línguas. Como vive de encomenda, não sei onde arranjará tempo para tanta filologia.

+