6.12.08

Elegia a William Carlos Williams




[Bill wrote a note]

This is just to say

I have eaten
the plums
that were in
the icebox

and which
you were probably
saving
for breakfast

Forgive me
they were delicious
so sweet
and so cold




[The late answer]

Those were just to say



Sweet indeed
and so cold
we were then delicious
but not "plums", Bill
Sorry





22.11.08

Aderaldo





não é por ser meu filho, não
mas Aderaldo é burro
acho que emburreceu
no dia em que aceitei
ser madrinha de um elefante
- mãe minha não batiza elefante
fez uns olhinhos de
queijinhos chorosos
e desdaí só abre a boca
para traçar nacos de
minhas goiabadas Thereza Quintella
hoje pede carinho aos cães
eu não me meto porque
não se deve acender fósforos em Cabul
e porque obras de gênio demoram
mas também apodrecem
o pai dele diz que a culpa é minha
por ser vegetariana
e o vegetarianismo
como toda gente sabe
encolhe o cérebro
acho que o pai dele
também é burro
bem faz o Rubens
que não tem TV em casa
tá bom o chá, minha filha?




24.10.08

Wired Solitude


Wired Solitude



de solidão interativa, 2008
--

25.9.08

Por que matei Roberto Carlos




Nem tudo que acontece na cadeia são mortes, rebeliões e colchões queimados. Bom, nem quase tudo. Para evitar a surpresa de ser um número a mais nas estatísticas, prefiro dormir de olhos bem abertos e barriga para cima, só assim poderei ver o focinho do meu provável assassino. Um assassino não muito diferente de mim, que peguei uma pena de 29 anos por matar Roberto Carlos. Estou trancafiada neste lixo com a escória da humanidade já há nove anos e nem sei como tudo começou e aonde vai parar. Não adiantaria me arrepender agora, remorsos não aceleram o tempo para me tirar daqui, nem trazem os mortos de volta, o que seria a última coisa que eu desejaria na minha vida, principalmente o morto que em boa hora decidi matar. Há nove anos que acendo o meu primeiro cigarro da manhã pensando em por que tive de matá-lo. E no que errei para ser presa horas depois e me ver numa situação dessas. Que importância tinha para mim vê-lo morto? É certo que hoje vivo em paz por saber que ele apodrece cada dia um pouco mais debaixo da terra. Mas também qual a importância de me ver aqui dentro viva e apodrecendo da mesma forma? Quando o cigarro acaba, estas perguntas saem com a fumaça pela janela. Talvez nada tenha importância na verdade e o que vale mesmo é estar ainda com o que me resta dos pulmões para acender mais cigarros e pensar no crime que cometi naquela noite de sexta-feira de 1999.

O 17 de dezembro de 1999 foi um dia útil da semana como outro qualquer e, como todo dia útil, pouco importa se chove ou faz sol. Eu estava desempregada e acordaria de ressaca do mesmo jeito naquele muquifo em que morava de favor na rua Conde de Lages. Eu nem precisava temer oficiais de justiça ou senhorios furiosos chutando a minha porta, pois o conjugado era de um coronel de minha única irmã e eles costumavam usá-lo para se encontrar toda quarta-feira. Eu só tinha de liberar o lugar nesse dia, no resto da semana podia me encostar por lá sem precisar me preocupar com fila de banco todo dia 5 e ordens de despejo. Enquanto minha irmã estivesse nas graças do sujeito, eu podia relaxar, o que fazia sem constrangimento pois esse patrocínio já durava alguns anos. Minha irmã sabia conquistar um homem, isso a filha-da-puta sabia. Quando estava de bom humor e duas doses acima, me confidenciava sua principal técnica: poucas perguntas e um ippon de buça, eles não resistiam. Nós gargalhávamos e no silêncio que se seguia eu ficava pensando que ela não precisava usar de tanta modéstia comigo, porque eu sabia que era bem mais do que isso. Inteligente, apesar de formada em educação física e com um emprego de gerente numa próspera academia do Leblon, era bonita e atraente o bastante para ter um marido pra chamar de seu, só que ela preferia chamar o das outras. Provavelmente era entre uma esteira e outra que fisgava os trouxas que acabariam se apaixonando por ela. Eu não podia condená-los, era impossível ser indiferente àqueles olhos tristes e negros de Elisa, a amante de Roberto Carlos.

Elisa é mais velha do que eu uns dez anos ou mais, não me lembro bem, pois desde que fui presa não penso em aniversários, feriados, efemérides. Mas o que quero dizer é que, por ser mais velha, ela traz consigo uma memória residual daquilo que se convencionou chamar de Jovem Guarda. E quando o sujeito se inscreveu na academia dizendo chamar-se Roberto Carlos e dias depois sussurrou para ela uns versinhos do “Broto do Jacaré” enquanto trabalhava os glúteos, sua associação afetiva foi instantânea. Ela caiu de amores pelo seu Rei da Juventude, um empresário rico e setentão, alto e barrigudo, com a cara do Erasmo.

Lembro até hoje do dia em que ela me contou, pois rimos de engasgar com o café que estávamos tomando na cafeteria da academia. Como eu babava para saber detalhes do Rei, Elisa abriu a carteira e mostrou-me uma foto dele com a família, o que achei meio humilhante, embora ela não se importasse. Talvez sentisse um prazer íntimo com aquela disputa. Nunca o conheci pessoalmente, mas conhecia o cheiro que ele deixava no apartamento e nos lençóis em que eu dormia ao chegar trôpega tarde da noite toda quarta-feira. “Mas ele é a cara do Erasmo”, eu disse e minha irmã rebateu, fechando o sorriso. “Nem toque nesse assunto, ele odeia quando dizem isso.” Eu fiquei intrigada e ela não deu explicações. Meses depois eu fiquei desempregada, fui despejada e ela disse que eu poderia ficar na “garçonnière” deles enquanto não arrumasse outro lugar. No momento em que ouvi esta palavra, percebi em minha irmã os primeiros sintomas da nostalgia psíquica que começava a dominá-la. Como se de um dia para o outro, ela passou a usar palavras e expressões antigas, como “nota preta”, “boa-pinta”, “podes crer”, “pra frente”, “eutôquetô”, “bafafá”, “manda brasa”, “champanhota” e outras estranhices que eu precisaria de intérprete. Fez uma revolução em seu guarda-roupa e começou a usar tubinhos variados com botas de cano longo brancas, cílios postiços, laquê no cabelo armado, coroando tudo com fartas doses de Chanel n.5. Comecei a temer de que um dia ela perdesse o emprego. Mas os clientes da academia não se importaram com a extravagância, pelo contrário, diziam que ela era uma festa temática ambulante e tudo acabava em risos, bem tolerados por Elisa. Nunca toquei no assunto dos motivos de sua repentina mudança, Elisa se distanciara de mim e não trocávamos mais confidências, nem quando bebíamos. Até o dia em que, morando fazia algum tempo naquela garçonnière da Lapa, encontrei na gaveta do criado-mudo um Taurus, calibre 32. Sem saber o que pensar, na mesma hora telefonei para Elisa e interpelei-a, as mãos tremendo e suando agarradas ao fone. “Por que você guarda a porra de um revólver neste apartamento?” Ela então baixou o tom de voz e pude ver seus olhos assustados perscrutando ouvidos a sua volta. “Não é meu. É do Roberto.” E com um discurso entrecortado pelos bons-dias e como-vais que distribuía aos clientes do outro lado da linha, teceu uma fileira de justificativas à minha pergunta. Que a nossa vizinhança era barra-pesada, que Roberto temia que aqueles favelados os assaltassem e invadissem o apartamento, que a portaria do prédio virou uma “chacrinha” de pederastas, que ele estava pensando em vender aquele apartamento até porque não suportava mais encontrar-se com ela num lugar sujo e sebento que eu não me dava o trabalho de limpar para recebê-los, afinal de contas ele tivera a condescendência de me deixar morar lá de graça sem mesmo me conhecer, era uma boa alma enquanto eu, sem a menor preocupação de dar um jeito na minha vida, só pensava em provocá-lo com aqueles discos do Erasmo espalhados pela cama toda vez que chegavam lá, as fotos de Erasmo que colei na porta do banheiro, eu era uma mal-agradecida, uma debochada, e ele pensava em ter uma séria conversa comigo hoje mesmo. Elisa não viu as minhas lágrimas enquanto se despejava pelo fio do telefone. Eu desliguei sem uma despedida e recoloquei o Taurus na gaveta. Minha irmã estava dominada. Minha única irmã. Pensei em nossa mãe morta e entristecida com suas filhas tão desunidas. Elisa, que trançava meus cabelos e me protegia do bicho-papão nas noites em que nossa mãe se ausentava. Que cantava baixinho no escuro, afastando os espíritos que falavam pelas paredes de nosso quarto para que eu pudesse dormir. E agora minha irmã era a presa de um obsessor. Um Roberto encarnado em Erasmo. Minha irmã no centro deste império dividido. Sem coroa de rainha. Sem súditos. Sem herdeiros. Minha carne e meu sangue. Baixei a agulha da vitrola e me deitei em seu leito macio. Toda pedra no caminho, você deve retirar, numa flor que tem espinhos, você pode se arranhar. Se o bem e o mal existem, você pode escolher. É preciso saber viver.





7.9.08

Que homem extraordinário


se eu crescer no futuro
serei como ela
e casarei com meu pai
-- que homem extraordinário,
dizia o açougueiro da esquina,
irei para a universidade,
os modernistas paulistas
já me escorrendo da boca
com pizza e grapette,
mas não há só isto
ou onde foi isto
há sim uma geladeira
a robert frost
e as folhas de um dicionário
de latim presas por elástico,
escrevo sobre a luz,
com os corpos dos insetos
que vou matando,
de minha caça-níqueis mental
caem um livro de Jung
sobre correção ortográfica
e um pacotinho de amendoim,
a perna que faltava
do Tescatlipoca,
una-su-pierna,
uma perna nobre
e mui pia,
recolhida pela tripulação
de um barco que montei
ontem à noite depois do jantar,
em todo conto de fadas
as mulheres velhas são más,
tenho medo das veias saltadas
que seguram sacolas,
o tempo só passa
nos espelhos e nos
olhos dos outros,
é só não olhar, papai
costumava dizer
entrando pela cozinha,
me trazendo
um carneirinho bem gordo,
pero de algodão
-- que homem extraordinário.



4.9.08

Eu estava ali e vi tudo com os teus próprios olhos azuis





Cadáver em decomposição, semicarbonizado, espostejado. Ele era um soldado e chegou sozinho. Vi quando se aproximou de mim a passos lentos e bem marcados. Suas botas enlameadas deixando máculas no piso da sala de necropsia. O uniforme militar rasgado e sujo de terra, origem desconhecida. Eu acabara de examinar um dos vinte corpos que chegaram naquela tarde e repassava mentalmente as conclusões que colocaria no laudo. Não se podia deixar escapar um detalhe em casos de morte violenta. Eu me formara há poucos meses em patologia forense e ainda não me habituara às exigências burocráticas do trabalho. Tirei meu avental de borracha e ergui os olhos. O homem olhava fixamente para a serra de ossos na mesa de instrumentos. Refez o meu rastro e descobriu a calota craniana aberta na minha frente. Não consegui determinar a cor exata dos seus olhos. Aquele corpo também não poderia seguir para a universidade. As peças maceradas não serviriam para as aulas práticas. Talvez com um tratamento eu pudesse encaminhar o encéfalo.

Bom trabalho, doutora.
Ainda não acabei, falta a parte mais chata.
O que causou a morte?
O homem foi metralhado e carbonizado.
Não foi envenenado antes disso?
Não vi sinais de envenenamento.
Não dá para consertar?
Consertar?
É, costurar tudo, juntar os pedaços, cobrir os buracos, limpar as cinzas.
Impossível. A matéria é inconsistente. Desmancha nas mãos.
Você é médica. Nada é impossível para os médicos.
Ah, é sim. Não sou Deus. E por que o faria? Quem é você?
Eu preciso deste corpo. Você vai recompor tudo agora.
Ele está destruído. Não serve nem para estudo.
Mas vai servir para mim. Faça o que puder, eu espero.
Preciso de uma ordem por escrito e assinada por autoridade competente.

Ele me entregou um papel amassado que tirou do bolso do uniforme. Reconheci o timbre do exército. Assinado pelo general Weizman. Data: 27 de setembro de 1943. O que está acontecendo aqui? Ele ouviu meu pensamento e sua voz de comando insistiu, me apontando uma Mauser enferrujada. Conserte o corpo agora, preciso dele, já disse. Não me faça esperar mais do que pretendo. Vou ficar aqui, perto da janela. Sem atrapalhar. Consultei o relógio, 8:15 da noite. Eu estava me sentindo fraca de fome, mas não conseguiria comer nada, eu sabia. Ele ficou de pé o tempo todo ao lado da janela, olhando para mim, para os instrumentos, acompanhando meus movimentos. Eu não ouvia mais sua respiração, sua voz. Só os tiros lá fora. Quando o relógio assinalou 2h da manhã, eu desisti.

Não consigo fazer melhor do que isto. Vou desmaiar se não parar.
Bom trabalho, doutora.

Ele se aproximou da mesa e tocou com carinho a mão reconstituída. Crânio, tórax e abdômen fechados. As peças do seu corpo encaixadas novamente. Tire uma foto de nós dois, ele disse. Saí do laboratório de patologia às 3 da manhã, corredores vazios, ruas vazias. Cheguei em casa e me joguei na cama depois de tomar um copo de leite gelado. Acendi um cigarro. Ainda podia ouvir os tiros lá fora. Na manhã seguinte acordei virada para a foto no porta-retrato da cabeceira. Os olhos eram azuis. “Obrigado, doutora.”









31.7.08

Corvo frio



talvez ela traga um corvo frio
na mão esquerda
feche a porta
e não fale nada








1.5.08

Triste para ela




eu posso duvidar dos meus ouvidos, não de mim. os espíritos são mudos. eu disse, ela não acreditou. esticou uma fileira de sal na porta de casa, pregou na porta do quarto uma estrela de seis raios e debaixo do travesseiro pôs uma tesoura aberta. os espíritos são reflexos da sua alma, insisti. ela virou todos os espelhos. aqui em casa espíritos não têm hora para aparecer. às vezes aparecem no meio de uma dor de cabeça. naquele jeitinho de quinta-feira. cada um ouve o que deve ouvir. triste para ela, quando o ouvir é mais importante do que o vivido. quase não sai de casa. ouve vozes por trás das vozes da TV. e todos os outros ruídos vindos do silêncio. mandou construir 28 degraus até o sótão, como no palácio de Pôncio Pilatos. nunca subi. não gosto de sótãos. não a vejo há quatro dias, embora moremos na mesma casa. talvez seja a minha voz que ela não quer ouvir. como o meu trabalho é escrever, me pediu que procurasse nos tantos livros que li -- aqui senti um tom de desprezo -- umas simpatias para apaziguar os seus nervos. não queria mais ouvir os mortos. foi bem assim. senti um arrepio na hora. mas depois de quatro dias sem vê-la, a convivência aqui está bem melhor e meu humor vem mudando. talvez ela até goste das minhas simpatias para cortar malefício de mortos indesejáveis, para evitar que os mortos falem mal de você, para agradar seu morto da guarda, para o morto não fugir com a sua melhor amiga, para calar a boca de morto de língua solta, para espantar morto de maus bofes, para curar morto destrambelhado, para morto deixar de babar, para morto cheio de xodó, para amansar morto brabo, para morto que tem medo de estar morto, para cortar olho-grande de morto, para entender conversa de morto estrangeiro, para dar um sossega-leão em morto de morte matada e para afastar morto com mania de psicografar. bem, cortei esta última. é tão bom morar de frente pro mar.





24.4.08

Oração a São Francisco






Francisco, fazei com que eu pare de fumar,


mas não me transforma numa porca cruel.



Tende clemência e mais um pouco



das trufas negras da Quaranta Martiri.









10.4.08

Odete





Odete tinha muito potencial quântico.
Não diminuía quando eu me afastava.
Não irradiava.
Não tinha uma fonte.
Era uma entidade física indetectável.
Odete me ensinou que a abstenção também é um vício.
O amor, um gás.
Naquela hora do dia em que o tempo parece parar.












7.4.08

O bilhete



Mas ao que pouco se perdoa, pouco ama.
(Lucas 7:47)






São Bartolomeu foi esfolado vivo. São Pedro, crucificado de cabeça para baixo. São Estêvão, apedrejado. Por essas e outras, você não tem mais permissão para tocar em mim. Contenta-te com os calos santos de frei Hermano da Guatemala. Como tu, ele acreditava que a Terra era um ovo. Aproveita e compra uns tomates na feira. Hoje eu não volto. Adão e Eva só passaram 12 horas no Paraíso. Fotografei a porta da tua casa para nunca mais me esquecer. Os olhos são tudo, mesmo numa pessoa. Deixei espaço de sobra na tua memória para você se distrair. Agora estou feliz, se me sento na privada ninguém me vê. Seja feliz também. Porque todo mundo fala sozinho, e você nem precisa ouvir.







7.3.08

uma bicicleta atravessa a ponte





uma bicicleta atravessa a ponte

duas bicicletas atravessam a ponte

três bicicletas atravessam a ponte

daqui não se vê as cabeças que conduzem as rodas
mas a velocidade vira a folha do galho

a quarta bicicleta não demora:
os olhos dos mortos
guardam a cara dos seus assassinos

só por essa ponte passam coisas
o lápis cai e ela apaga a ponte




31.1.08

Mãe






o cabelo molhado
os óculos escuros
um sorvete de bola
a mão segurando a casquinha --

o mar lhe escorrendo pelo braço
até a pulseira de argolinhas

meu irmão nunca mais devolveu a fotografia








15.1.08

Exercício de areia


o mar foi meu barco
só ele me espera
depois da rua
não a morte
não a vida
o mar

o mar foi, meu barco
o mar, foi meu barco
o mar foi meu, barco
só, ele me espera
depois a rua
a morte
a vida
mar