25.1.09

Eva Braun: Uma Psicografia Não Autorizada



I

Esta é uma história para poucos. Uma história para quem tem sangue-frio. Eu não preciso que acreditem em mim. Esta é a minha história e me basta ser como é. Também não preciso justificar ao mundo as atitudes que tomei em vida. Bem sei que sou a mais desprestigiada das Evas. Uma Eva sem Paraíso. E como tal fui esquecida pela história. Fui esquecida e minha memória conspurcada porque me deitei com o Cão. Paguei o meu preço e hoje vivo no mais perfeito limbo, circulando na companhia bisonha de espíritos das mais diversas linhas e qualidades de baixeza. Fantasma de minha própria sombra, ainda trago comigo a aliança presenteada pelo meu Führer naquele fatídico 29 de abril de 1945, quando todos os Aliados bebiam champanhe à custa de nosso sofrimento que logo teria um fim em pequenas cápsulas de "amêndoas amargas". Minha jornada com Adolf foi terrível, confesso, só o diabo sabe o que fazíamos nos corredores do Bundestag. Nas longas noites de ausência do meu amado, ficava eu só, com meus banhos de leite de cabra e a companhia silenciosa de nosso cãozinho pastor, Blondi. Deitada em meus lençóis de seda, ouvia o ronco das divisões Panzer e dos Stukas e meu coração de Valquíria se deleitava. No rádio de cabeceira os gritos ensurdeciam meus ouvidos: Ein Führer, Ein Volk, Ein Deutschland! Mas à medida que o tempo passava, eu ia ficando farta daquela merda toda. Daquele mar de sangue fétido. Daquelas noites solitárias sem os cochichos do meu amado "Fraulein Braun, meu docinho da Floresta Negra". Estava farta das operetas, dos fins de semana em Munique, no hotel Vier Jahreszestein, onde Adolf se ocupava de seu pincel inútil, me confundindo com o povo da Germânia. "Fui transformada em bovino como todos os outros", eu escrevi no meu diário. Dói-me lembrar dos nossos últimos dias no bunker, quando aquele cabo idiota, o líder supremo da nação ariana, passava suas horas lendo a História de Frederico o Grande, de Carlyle, e trocando confidências com Goebbels, sempre ele, ah, quanto ciúme eu sentia... Quando Adolf finalmente resolveu engolir as malditas cápsulas de cianureto (ao contrário do que a história registra, ele não deu um tiro na cabeça), eu ainda pude ouvir suas últimas palavras: "O sangue do mundo é meu destino", e meu coração se encheu de dor, e alívio. No entanto, alguma coisa me dizia que a minha história não acabaria ali.



II



Não era novidade para ninguém, muito menos para mim, que, de todas as jovens de raça ariana pura, o Führer escolheu a mim por me julgar a mais estúpida e obediente. Aquele filho de fiscal de alfândega, née Senhor das Trevas, o Líder Supremo, julgava-me então uma avezinha frágil em suas poderosas mãos, uma Barbie de Weimar que ele carregava para cima e para baixo em Berchtesgarden, nosso retiro na Baviera. Eu, fingindo-me de tonta, posava para fotos ao lado dele e de seus "homens fortes": Goebbels (o bode de Babelsberg), Himmler (psicopata da vida cotidiana), Rommel (sempre cheirando a camelo), Ribbentropp (que mania de beliscar minha bunda), Goering (de mau hálito sempre pronto para invadir qualquer espaço aéreo) e Leni Riefenstahl (uma moçona de ferro com suas lentes fálicas filmando a tudo e a todos em ângulo perfeito). Em nossos jantares vegetarianos, eu costumava prestar atenção em tudo: nas conversas, nos tiques nervosos, nos silêncios, no timbre das gargalhadas, nos olhares trocados e, principalmente, no não dito. Sempre desconfiei de que são nas reticências que residem as grandes traições da história. Acordos eram selados de uma só penada, para serem desfeitos no dia seguinte com uma troca de olhar. Pactos eram firmados com apertos de mãos e discursos, para serem rompidos com um meneio de cabeça. Stalin sem dúvida foi uma das vítimas destes silêncios do Führer. Por isso, sempre que eu me encontrava ao lado do meu amado, procurava o máximo possível ocupar a sua mente com uma tagarelice improvisada. Não queria dar espaço ao silêncio. E se sobrasse para mim? Houve apenas uma vez em que o Führer quase perdeu as estribeiras comigo. Aconteceu numa gélida noite do inverno alpino. Estava eu tranquilamente recostada em minha chaise-longue na frente de nossa lareira, lendo Crime e castigo, quando o Líder chegou acompanhado de Goebbels (sempre ele) e aproximou-se por trás de mim para bisbilhotar o que eu estava lendo. Sua expressão de repulsa, ao constatar minhas preferências literárias, só não foi maior do que a expressão de nojo estampada na cara naturalmente nojenta de Goebbels. Os dois trocaram um sorriso de escárnio e se afastaram para continuar o assunto que estavam discutindo. O tom de voz de ambos era até então sereno, o Führer só se exaltando quando pronunciava as palavras Guerra Total, assim juntinhas. Nesses momentos ele chegava a gritar. Toda vez que esta frase era alçada, vinha em urros -- GUERRA TOTAL. GUERRA TOTAL. Meus ouvidos já estavam doendo com aquilo e resolvi interferir:

-- Querrrido, o que é Guerra Total?

Meu Führer e Goebbels olharam para mim boquiabertos e depois retomaram a conversa só deles. Os gritos continuaram. Eu insisti.

-- Querrrido, quem é Guerra Total?

Adolf, controlando sua raiva, virou-se para mim e disse, os dentes cerrados:

-- Evinha, meu Apfelstrudel, Guerra Total é um conceito.

Eu assenti, balançando minhas mãos cobertas de joias da coroa russa, e disse a ele:

-- Ja, entendi, é uma questão de culturrra...

E foi nesse exato momento que Goebbels, dominado pela cólera, me interrompeu para pronunciar a famosa frase cuja autoria seria erroneamente atribuída a ele tempos depois:

-- Toda vez que ouço falar em cultura, tenho gana de puxar um revólver!



III



Em junho de 1940, enquanto eu cavalgava aquela coisa enorme e dura ao som de O pássaro de fogo de Stravinsky girando no gramofone, as tropas do Führer se acercavam de Paris. "Monique, Monique, rebola minha querrrida", era assim que ele me chamava nas horas em que eu arrancava minhas calcinhas de camurça e enterrava meu corpo no seu. Tinha a mania de, durante o sexo, chamar-me com nomes de prostitutas francesas. Há meses que ele não me procurava na cama e eu já andava desconfiada de suas intermináveis revistas às tropas sempre tarde da noite. Ele voltava cheirando a charuto e bebida barata dos seus companheiros de farda. Mas nesse dia da invasão de Paris, Adolf estava inusitadamente feliz e resolveu fazer comigo uma Blitzkrieg doméstica. Confesso que naquela noite eu já estava cansada e umas duas doses acima. A semana inteira vira soldados e oficiais indo e vindo apressados pelos corredores, sucessivas reuniões até altas horas da madrugada, sem que eu soubesse que, secretamente, o alto comando articulava a ocupação da França. Pobre França... Agora eu entendia por que ele ultimamente vinha me chamando de Madame Pompadour! Eu devia ter entendido os sinais. Ora, ele dominaria a França afinal. Dali para o resto do mundo seria um pulo! Até onde iria sua ambição napoleônica? Que territórios mais lhe seriam suficientes para saciar sua fome de poder? Em nossas horas de intimidade eu costumava dizer-lhe que aquela maldita guerra estava nos afastando. Por que as coisas tinham de ser assim? Adolf então tomava meu queixo em suas mãos e, mirando fixamente os meus olhos, sussurrava: "As coisas são o que eu digo que são." Depois me abraçava com formalidade, garantindo que o seu amor por mim só não era maior do que a dívida pública. E era então que eu me perguntava por que um homem tão expansionista como ele só se limitava a ter uma mulher ao seu lado. Afinal nossa "comunidade étnica" era tão bem servida de beldades... Sim, porque eu sabia que não havia outras na vida dele. Eu gastava milhares de marcos para me manter bem informada de seus passos. Meus espiões secavam minhas economias. Se a Gestapo por acaso descobrisse que eu andava espionando as ausências do Führer, certamente faria a minha caveira com ele. O que, no entanto, significaria um risco para eles também, porque se não conseguissem provar nada contra mim, meu amado não pensaria duas vezes em cortar-lhes a cabeça. E sem guilhotina! Ah, mas naquela noite de amor eu havia encarnado a própria Hipólita. E na qualidade de rainha das Amazonas, eu cavalgava com determinação e sem temor. "Tous le jour à tous points de vue je vais de mieux en mieux." E meu mieux tinha pressa, pois a qualquer momento minha montaria poderia perder o ímpeto. Se ele porventura se distraísse e o pensamento de táticas e estratégias dominasse sua mente, a pistola fria e dura negaria fogo e eu ficaria mais uma vez a ver navios. Porém isso não aconteceu e após alguns minutos de sôfrega cavalgada, eu atingi o ápice do prazer. Uma loucura! Meu Führer suava pois não havia tirado o uniforme. Após o gozo, eu caí ao seu lado, ainda tonta de prazer, ele afagou meus cabelos desatentamente e disse, recolocando a pistola no coldre após recarregá-la com as balas que deixara sobre o criado-mudo: "Durma bem, Fraulein."



IV



Nos anos 1930 havia em Viena uma revista literária clandestina chamada Letras, avante!, ou Letras, sentido!, ou seria Letras, de pé!? Bom, sei lá, faz tanto tempo que minha memória virou pó. Só posso dizer que não sei por que cargas d'água os editores de tão malfadada publicação queriam que eu publicasse lá minhas famosas receitas de Apfelstrudel. Diziam os doutos letrados que eram receitas dadaístas. Sim, dadá foi a cara que eu fiz quando me disseram isso. Daí levaram horas me explicando o que significava dadaísta, enquanto eu conferia meus bilhetes de loteria. Hum-hum, sei... Para mim aqueles caras estavam é loucos. E como de loucura eu já tinha PhD, resolvi passar-lhes as receitas mesmo assim. Não pude resistir àqueles olhinhos azuis expectantes, àquelas mãozinhas nervosas me apontando no papel a beleza estética crua e contemporânea da frase "Cozinhe 4 dúzias de argentinas em fogo brando" (minha receita para um batalhão). O tempo passou, esqueci a história porém, numa bela manhã de outono, enquanto eu fazia uma caminhada solitária às margens do Danúbio, fui interrompida por uma tropa de assalto do Führer comunicando que me chamavam de Viena com urgência ao telefone. Não é que eram os tais editores ensandecidos? (O que Viena não faz com as pessoas...) Os tais dadaístas então me disseram que das dez receitas que enviei, haviam selecionado cinco para serem publicadas no novo número da revista. Hum-hum, ótimo, eu disse, já envaidecida. Mas tem um problema, eles disseram. Sim, e qual é? Precisamos do seu currículo, Fraulein. Como é que é? Sim, Fraulein, ao lado das receitas, assinadas pela senhora, queremos colocar alguns dados biográficos seus. Mas e quem lhes disse que eu vou assinar as receitas? Pra quê? Qualquer pastora de ovelhas nesta velha República de Weimar tem uma receita de Apfelstrudel oculta debaixo do avental. Por que eu? Mas, Fraulein, as receitas são criações suas, alguém fez o Apfelstrudel!, eles insistiram. Pois que todos se entupam de Apfelstrudel e me deixem em paz, eu não vou assinar porcaria nenhuma! Meu nome não pode sair nesta revista maluca de vocês! Querem que o Terceiro Reich me asse viva? Vocês sabem como eles adoram deixar as pessoas passarem do ponto. Além do mais, quem se importa se sou alemã, albanesa ou marciana? O que todos querem são as maçãs! As maçãs!!! (Eu já estava ficando apoplética. Batia maniacamente com meu salto alto no piso de tábua corrida e dava gritinhos pelo telefone.) Nein! Nee! Mas, Fraulein, é só um doce de maçã, que risco há nisso? (Como os vienenses são teimosos.) Nem que fosse o Alcorão ou um rol de roupa suja, meu filho, eu não assino essa merda de jeito nenhum. Arranjem alguém aí que o faça, um ghost-writer morto de fome, um aristocrata falido, sei lá, inventem alguém! Dito isto, bati com o telefone e engoli três vezes três calmantes. Tanta impertinência me tirava do sério. Era só o que me faltava... Três semanas mais tarde, recebi pelo correio a maldita revista, pronta. Folheei-a de cabo a rabo. Cadê as receitas? Nada. Miseráveis. Nem no rodapé! Fiquei descontrolada. Goebbels (Ach, der mit seinem Regenwurm!), reparando que eu, nervosa, sacudia e apertava a revista como se fosse espremê-la, aproximou-se de mim e, com seu sorriso de desdém tão peculiar, cochichou no meu ouvido: "Você achou mesmo que eles iriam publicar qualquer coisa sua que não tivesse a assinatura de Eva Braun?"



V



Certa noite, na primavera de 1943, após um jantar cerimonioso no castelo de Berchtesgarden em homenagem a Josef Mengele, que acabara de inaugurar mais um dos seus tenebrosos campos de concentração, retirei-me mais cedo para os meus aposentos. Estava com uma insuportável dor de cabeça pois passara a noite ouvindo o Führer falar de como havia conhecido Mengele em seu laboratório de patologia na Universidade de Frankfurt. A certa altura da refeição, enquanto eu degustava meu Kassler com volúpia palatal e Adolf espetava suas ervilhas no prato uma após a outra, Mengele ia nos descrevendo as experiências físicas e psicológicas que vinha realizando na área da medicina nazista. O "anjo da morte", como era conhecido, não perdia uma oportunidade de vangloriar-se de seus feitos, e foi assim que naquela noite ouvi os relatos mais escabrosos a respeito de cirurgias sem anestesia, dissecação de cadáveres, remoção de órgãos, injeções de germes letais, cirurgias experimentais com gêmeos, transfusões de sangue, cirurgias de troca de sexo etc. Não preciso dizer que minha digestão foi para o espaço. Antes que eu vomitasse nas travessas de sobremesa, pedi licença e me retirei apressada. Mengele cumprimentou-me com suas frias e precisas mãos de cirurgião e minha pele macia como pêssego arrepiou-se toda. Saí dali em desabalada carreira e desci os corredores escuros em direção ao meu quarto. Fechei a porta e, sobressaltada, passei a chave na fechadura. Um silêncio maligno dominava o ambiente. Eu já não ouvia as vozes e as gargalhadas dos convivas no salão. Mas o que me impressionou é que tampouco ouvia as batidas do meu coração ou dos meus passos no aposento. Tudo estava completamente escuro. Mas como? Eu sempre deixo uma luz acesa quando me ausento do meu quarto, pois assim fica mais fácil para eu me orientar quando retorno tarde da noite, às vezes meio passada na bebida ou sonolenta demais para distinguir a cama de uma banheira. Mas ali a escuridão era tanta que a irrealidade era visível, e o vazio, palpável. Não encontrei luzes ou candelabros, nem um toco de vela. Então, aproximei-me das janelas e escancarei as cortinas. Se houvesse lua, eu conseguiria um pouco de iluminação afinal. Alvíssaras. A lua cheia invadiu o quarto e pude enxergar mais de um palmo à frente do nariz. Mas...aquele não era o meu quarto! Onde eu estava? Havia uma cama com dossel, um guarda-roupa monumental com águias desenhadas em relevo na madeira, e uma cômoda de quatro gavetas. Sobre a cômoda, uma pintura renascentista de autor desconhecido ornamentava a parede. A decoração era simples, quase beneditina eu diria. De quem seria aquele quarto? Da governanta? De algum criado, ou segurança pessoal? Não me parecia que estivesse sendo ocupado por alguém. Tudo tão impessoal, cheirando a capela de cemitério. Seria um dos quartos de hóspedes? Aproximei-me da cômoda e abri uma gaveta ao acaso. Papéis, documentos, recortes de jornais, cartas...vários envelopes de cartas presos por uma fita negra e embolados em uma calçola bordada onde se lia "Mimi Reiter". Comecei a vasculhar. Uma carta de Theodor Morell para o Führer. Morell era o médico pessoal de Adolf. Na carta ele recomendava cuidados com o único testículo do Führer e receitava uma pomada antialérgica. Dentro de uma luva de boxe de Schmeling, achei inúmeras fotos de nádegas de mulheres, homens e crianças nus. E mais fotos de mulheres nuas de um famoso estúdio fotográfico de Berlim. O que significava tudo aquilo? A quem pertenciam aquelas coisas? Ao ocupante daquele quarto? Ou era material sigiloso do Führer? Eu tinha pressa e continuei abrindo outros envelopes. Uma carta de uma tal de Stefanie...para Adolf. Uma carta de amor!!! Mas como? Com endereço de Linz. Uma caligrafia praticamente ilegível. Passei sem demora a outra. Uma carta de Erna Hanfstaengl, quem seria esta fulaninha? "Adolf, meu potrinho, tenho saudades do teu galope"...que vulgar. Ensandecida, comecei a rasgar todos os envelopes, procurando pelos remetentes de tão desditosas missivas. Outra carta agora de Winifred...Winifred? A nora de Wagner? Não é possível. Por isso ele nunca saía da casa de Wagner! E eu que cheguei a achar que ele estivesse interessado no próprio Wagner!!! Como fui tola. Minha cabeça começou a girar e tive de me apoiar na cômoda para não cair. Respirei fundo e voltei à minha função. Eu não sairia dali sem saber de tudo, sem vasculhar aquela sujeira toda. Foi então que um pensamento atravessou a minha mente, paralisando-a numa só frase: Aquele era o quarto secreto do Führer! Sim, Frau Raubal, a governanta, já havia comentado comigo que Adolf possuía um aposento privativo que a ninguém era permitido o acesso. Nem as criadas podiam entrar para fazer a limpeza. O quarto secreto do Führer!!! Sem perder tempo, e amedrontada, voltei às cartas. Um envelope estranho chamou minha atenção, estava coberto de flores desenhadas e exalava um forte cheiro de alfazema. Remetente...Geli. Hum... Geli, Geli, a sobrinha? O que diz a carta? Vejamos... "Queridinho, queridinho, por que me proibistes de minhas aulas de canto? Não sabes que cantar era toda a minha vida? E que agora minha vida se resume a ti? Menino levado, quando vieres aqui (e espero que seja em breve), vou te colocar de quatro e te bater muito até tua bundinha sangrar. (Lembra do nosso chicotinho?) Se continuares assim tão malvado comigo, não faço mais xixi em você..." Aaargh!!! Quase fiquei vesga. Eu não acreditava no que estava lendo. Que despudor! Meu estômago revirou. Como eram capazes? Como ele era capaz de fazer isso comigo? Eu, que fazia de tudo para satisfazê-lo. Transformei-me em uma bonequinha de luxo, a boneca cobiçada de toda a Germânia, só para agradá-lo e agora uma outra fazia xi...não, não tenho nem coragem de repetir. Estarrecida, minha vontade era de jogar-me do alto do Zugspitze, porém saí correndo daquele lugar e atravessei o corredor à procura de minha alcova. Eu não me enganaria novamente. Reconheci a porta do meu quarto e entrei sem demora, ainda enjoada, tonta, minha cabeça latejando. Desabei em minha cama e Frau Raubal despiu-me com carícia.

-- Por que demorou, Fraulein? Nosso banho de sais já está pronto há tanto tempo.



VI



As tropas aliadas já se aproximavam da chancelaria e Berlim estava completamente destruída. Consulto o meu diário, 29 de abril de 1945. A terra treme e o fúnebre redobre da artilharia transforma as ruas em tapetes de corpos e destroços. Minha primeira anotação do dia chama minha atenção: "Políticos são aqueles que se felicitam acreditando que mentem para fazer o bem às pessoas acostumadas a serem enganadas para o seu próprio mal." Isolados no bunker, não havia mais saída para nós. Estávamos perdidos. Com o ânimo decaído, Adolf não ouvia mais em seu gramofone os hinos e as marchas triunfais de sempre. Preferia as valsas de Chopin, o grande músico tuberculoso, às quais ouvia recostado na cama e com o olhar taciturno voltado para o teto. Após nos casarmos numa cerimônia arranjada às pressas que teve lugar na sala de mapas, Adolf havia se recolhido para redigir o seu testamento, no qual ordenava categoricamente que nossos corpos, após o suicídio, deveriam ser queimados no jardim da chancelaria para evitar que fossem exibidos em museus de cera russos como despojos de guerra. Goebbels, o ubíquo, já providenciara cianureto para todos. Ele, Magda e seus seis filhos também iriam ingerir o que eu ironicamente chamei de nossa Solução Final. Ao lado da cabeceira do Führer, sobre a mesinha, uma pistola Walther de 7,65 mm esperava engatilhada, mas, como eu já disse, na última hora ele optou pelo cianureto. Era o fim da linha para o homem que quase conquistara o mundo com sua filosofia beligerante. Era o ponto final de uma guerra que consumiu milhões de vidas com torturas, suplícios, aflições, desolação e espanto. Era, por fim, o eclipse de tudo para mim também que, mesmo à beira do abismo, me sentia aliviada. Pela primeira vez na vida eu conseguia compreender toda a sabedoria do velho ditado alemão: "Glück in Unglück", literalmente, a sorte na má-sorte. Folheando o diário, vejo as anotações que fiz em 6 de fevereiro de 1942, data em que completei meus 30 anos de idade. "Não sou mais do que a combinação da minha realidade com a fantasia daqueles que me amaram", eu dizia em meio a versos de Goethe embaralhados com os meus. Já naquela época eu não conseguia dormir com a mesma serenidade de antes. Abria as cortinas da janela e a neblina confundia as estrelas com aves de rapina. Os céus da Alemanha haviam se transformado nos céus da Luftwaffe. Por que deixei que a minha vida tomasse o rumo que tomou? Como uma mulher feito eu, sensível e um pouco esclarecida, me submeti a tal situação? Não posso explicar, pois eu mesma sou a primeira a desconhecer os motivos. Hoje, diante da morte e dominada pela sentimentalidade mais piegas, só posso chegar à conclusão de que fui, sou e serei eternamente uma escrava do amor. Desde a primeira vez em que meus olhos pousaram nos dele, eu sabia que haveria de segui-lo até o fim. Destino? Quem sabe? Quem se importa? A lembrança daquele 6 de fevereiro me faz mergulhar em profunda melancolia. Quisera eu lembrar-me de algumas anedotas alemãs para consolar-me, mas não consigo. Às 15h do dia 29 de abril faço minha última anotação em meu diário: "Creio porque é absurdo." Adolf senta-se ao meu lado, coloca o retrato de Frederico o Grande em sua mesinha e me passa uma cápsula de cianureto. Às 15h15 minha alma esfuma-se entre a bruma escarlate que tinge os céus da Alemanha novamente. Às 15h30 Adolf dá por encerrado o bárbaro ofício que foi sua vida e Bormann  carrega nossos corpos para fora do bunker como sacos de batata. Caronte, o timoneiro do Além, leva minha alma pela travessia em sua barca do Inferno. Na distância posso ouvir os tenebrosos latidos de Cérbero, a cruel fera que mordia as almas condenadas no Inferno. Eu não queria acreditar que aquele seria o meu destino. Até onde ia a minha culpa? Para onde estaria sendo levada? Senti na boca o travo da eternidade a que minha alma estava condenada. Não havia sido o fim então? Um denso nevoeiro toma conta de tudo e eu já não vejo mais a silhueta de Caronte. Estou sozinha. Olho para baixo e vejo, refletida no pântano, a minha imagem de criança. Uma leve brisa agita as águas e a minha boca refletida sussurra: "Sorria, Fraulein, amanhã pode ser pior."




(2000)







22.1.09

Não há vagas nos motéis


não há vaga nos motéis. 
e eu não posso parar, meu amor. 
me deixe ir. 
ouça o som do meu xixi por trás do avião que passa. 
faço uma lista mental dos dez animais mais inteligentes depois dos porcos. 
dos dez poetas. 
levo cinco minutos nisso. 
mais do que eu pedi pra você ouvir a história da minha vida. 
e do vento que afrouxa colarinhos um pouco para o lado. 
sou a última sobrevivente da Nostromo. não. 
nem que eu pise fundo, o carro sai do chão. 
mas devo ir mesmo assim. 
por causa de você.
há uma lua para descansar 
e as estrelas são as mesmas em todo lugar. 
pesadas, paft a qualquer momento. o céu fica vazio. 
daquele vazio da xícara de café que você levou 133 segundos para beber. 
daquele vazio dos 3 segundos que levou para conservar os olhos em mim. 
eu sei. eu contei. eu não estava de costas pra você na caixa registradora. 
pedi antes. peço agora. me deixe ir. 
muitas juras e uma lata de conversa não serviram. 
nem que fossem oito. 
se acabou, acabado está. 
quer casar comigo? i'm a girl you're a boy. 
a indiferença fuma em silêncio. 
i'm a boy you're a girl. 
duas mulheres sem ser noite sem ser dia. 
suspirando em partes iguais numa casa acostumada. 
certos pensamentos ajudam na hora da curva. 
é a décima vez que passo pelas mesmas árvores ou isso é uma monocultura? 
em nenhum canto deste carro tem um isqueiro. 
não há mais carros que acendem cigarros. 
não se pode querer que a natureza seja original em beira de estrada. 
quantas vezes eu repeti a mesma frase nesta viagem? 
teus cabelos brancos nos pretos. olhos de Picasso. 
não, olhos de Pound que viram Picasso. 
olhos que diziam tudo que eu não queria ouvir. 
esperando pelo resto do um metro e setenta e dois que sua alma não mostrou.
não choro. não lembro. 
seco o volante com a manga do casaco. 
é feio o gesto de secar o volante. 
é triste. 
pareço motorista de ônibus. 
o mundo passa rápido do outro lado da janela. 
correr é a única forma de fazer o mundo parar. 
e não há vaga nos motéis. 
eu não vou parar no Lar do Pescador. 
você é o meu amor, mas a tristeza é mais. 
e neste mundo não há alguém para meu ninguém. 
me deixe ir. nos deixe.
eu era um hóspede e vós me acolhestes. 
seja cristã. 
sim, são linhas retas e daqui a pouco amanhece. 
teu braço debruçado no meu ombro. 
os olhos secos voltados para o mar. 
o barco que arrasto sem ruído. 
você não devia ter aberto o porta-luvas.




17.1.09

As azeitonas de Taggia



eu não escrevo versinhos para o papai
embora ele tenha me ensinado que a
boa poesia deve ser como as azeitonas de Taggia,
não pode ter caroço,
e que todo poeta só é bom se ficar assando

devo confessar que nisso eu concordo com papai
a poesia sempre teve um pé na cozinha
uma cadeira que range
uma couve-flor que se rompe
a xícara lascada de uma avó morta

o que papai não sabe ou nunca reparou
é que foi com mamãe que aprendi a cozinhar
no caminho entre a pia e a beira do fogão
eu aprendi tudo da vida
enquanto ele olhava melancólico para a janela
e a faca sobre a mesa
em vez de ajudar com as panelas

eu não escrevo versinhos para o papai
porque hoje sei o que devo queimar
o que devo congelar
o que devo servir frio