26.5.09

Apesar da diferença de altura

Em um hotel de Chicago, no outono cheyenne, um rico criador de gado chamado Waco se embriaga, perde no pôquer e se associa a Maddox, ex-pistoleiro de olhos de mingau que deseja esquecer seu passado de fora-da-lei. Antes de a noite acabar, eles decidem partir para comprar uma boiada no México. Durante o acidentado percurso, a notável diferença de altura dos dois, em vez de plantar discórdia, os aproxima fazendo nascer uma amizade de fortes. Após cruzarem um deserto de sal, eles se perdem e vão parar em Wichita Sky, uma cidade-fantasma cercada de rochas esculpidas pela erosão e assombrada por espectros de índios sioux em sanguinária batalha contra espectros de ianques renegados. Sem saber se haviam chegado na porta do inferno ou do Texas, os dois amigos se mostram determinados a expulsar da cidade o que julgam ser uma manifestação do demônio. No entanto, pela primeira vez eles divergem dos métodos. Waco, que apostava no futuro nas alturas e acreditava que o céu sempre manda alguém, achava que deviam construir uma igreja evangélica, pois entre o bem e o mal não há acordo. Maddox, acossado pela memória e preferindo jogar todas as fichas na pacificação do passado, tentou convencer o amigo com palavras duras: "Hijo de cuatro puercos, odiar o diabo é o mesmo que odiar o deserto por não ter água. Temos de proteger os túmulos, não construir igrejas." Não houve regateio. Em meio a visões fantasmagóricas de tiroteios, lutas de machadinha, flechas de fogo, carnificinas, escalpos e árvores de enforcados, Waco construía a sua igreja com as tábuas do saloon, enquanto Maddox negociava a paz sepulcral com as almas penadas dos sioux para que retornassem a sua reserva e com as almas ianques para que voltassem à Inglaterra, terra ancestral de onde nunca deveriam ter saído. A salvação de Waco foi garantida tábua por tábua até que a madeira durasse. Em uma mesa branca no cemitério, Maddox garantiu a paz fumando em um rifle de 15 tiros com os líderes sioux e ianque. Na véspera do dia de Ação de Graças, Wichita Sky amanhece afinal livre das assombrações e as primeiras diligências e carroças voltam a circular. Waco acredita que foi a igreja que os salvou. Maddox silencia e não o desmente, pois a vida lhe ensinou o valor de uma amizade sincera e verdadeira, apesar da diferença de altura. Os dois desistem da boiada mexicana e compram um rancho bucólico no Oregon, onde fabricam uísque até o fim dos seus dias, embalados por sinfonias pastorais de caubóis-cantores entre um crepúsculo e outro.



20.5.09

Gertrude Stein: uma rotina




Miss Stein acorda todo dia às 10h e bebe um pouco de café, de má vontade. A possibilidade de ficar nervosa sempre a deixa nervosa e ela acha que o café a deixará mais nervosa ainda, mas foram recomendações médicas. Miss Toklas, sua companheira, acorda às 6 e começa a circular pela casa, faxinando. Certa vez quebrou um belo espelho veneziano e chorou. Stein deu uma gargalhada e disse: "Ora, que importa? Objetos existem para serem consumidos, como bolos, livros e gente." Toda manhã Toklas dá banho, penteia e escova os dentes do poodle francês das duas, Basket. O cachorro tem sua própria escova.

Stein tem uma banheira gigantesca, feita especialmente para ela. Uma escada precisou ser retirada da casa para instalá-la. Após o banho, ela veste um roupão de lã enorme e escreve um pouco, embora prefira escrever do lado de fora da casa, após vestir-se. Na casa de campo em Bilignin há montanhas e vacas e Stein gosta de ficar olhando montanhas e vacas enquanto escreve. As duas costumam sair no Ford até encontrar um lugar inspirador. Então Stein senta num banquinho portátil com seu lápis e bloco, enquanto Toklas, munida de coragem, coloca uma vaca no campo de visão de Stein. Se a vaca não combina com o estado de ânimo de Stein, as duas voltam para o carro e procuram outra vaca. Quando a grande senhora está inspirada, ela escreve rápido por uns 15 minutos. Mas em geral ela só fica sentada lá, olhando para as vacas.

Stein sempre se encarrega de dirigir o automóvel. Toklas fica no banco traseiro, gritando e sacolejando, pois todo mundo sabe que Stein é a pior motorista da história da engenharia automobilística. Entra nas curvas rápido demais, não usa a mão para sinalizar, dirige na contramão, não respeita sinais de trânsito da mesma forma que não respeita os de pontuação, e nunca buzina. Apesar disso, nunca sofreram um acidente.


(em edição de 13.10.1934 da New Yorker, trad. MP)



12.5.09

Dinorá




Dinorá nunca saberia quem a matou. Não saberia a que horas exatamente o assassino entrou em sua casa e esperou pelo momento certo para fazê-la exalar o último suspiro. Dinorá foi comer uma fatia de bolo na cozinha e a faca que deixou sobre a mesa em meio aos farelos cortou a sua barriga de leste a oeste. O marido dormia. As crianças dormiam. As brasas na lareira já não iluminavam a sala. Mas Dinorá era gulosa. Tinha fomes noturnas. Medo do escuro. Medo de passar fome no escuro. O assassino também provou o bolo. O perito encontrou fragmentos de glúten na arcada dentária de Dinorá, pegadas enlameadas na porta da cozinha, farelos na mesa, no chão, nos dedos da mão direita de Dinorá, no corredor e na porta da frente. O marido e os filhos de Dinorá não comeram o resto do bolo. Não comeriam nunca mais bolos no que restou de suas vidas. A polícia nunca saberia quem a matou. Dinorá foi enterrada em 28 de agosto de 1909 com uma cerimônia simples na catedral de Yorkshire, o melhor bolo de sua terra.