9.8.09

O gato de Doris Lessing


Sou Patricia Highsmith, o gato de Doris Lessing. Aos sete anos eu já sabia ler, escrever e contar. Aprendi por imitação. Depois da disciplina e das regras de decoro e civilidade cristã. Retrair a urina dentro d’água, por exemplo. Tudo se aprende e decora, inclusive o pensamento. Hoje sei pensar. Por imitação. Minha vida não daria oito páginas escritas à mão e trocadas por rum numa prisão de paroxítonas. Tenho um temperamento burlesco allegro e sei fazer leitura labial dos afetos humanos em seu teatro mecânico. Desde que soube que os adventistas do sétimo dia vivem nove anos mais do que os comuns, vivo em estado quase vegetativo, pois o segredo da juventude é desacelerar as mitocôndrias. Doris, ao contrário, faz longas caminhadas e toma doses diárias de resveratrol em taças transbordantes de vinho tinto. Eu não contei a ela que isto não vai adiantar, saúde não é questão de faxina do LDL. Mas também não contei muitas outras coisas, não seria natural. Ela nem imagina que, além de ler, escrever e contar, eu sei controlar meu estresse oxidativo. Uma nonagenária com inervação excitatória e a bolsa sempre repleta de comprimidos de ginkgo biloba não aceita certas coisas com facilidade. Prefiro que pense que divirto seus convidados ilustres e me contento com meus êxodos gástricos enquanto lambo minhas patas de almofada. Na verdade poucas coisas na vida me aborrecem, entre elas uma certa sensação cansativa de me ver usado como uma espécie de guia do leitor. Sempre que me deito sobre uma pilha de livros e meus olhos se perdem ao sabor do tédio nos rodapés interrompidos da sala, alguém aparece para puxar o primeiro livro da pilha e começar a ler. Não sei interpretar essa reação humana. Talvez gostem de livros mornos, receiem que eu vá babá-los ou atribuam à minha escolha casual de um livro para me recostar um oracular critério de escolha que lhes falta. É duro ser gato de escritores. Ser interpretado a cada movimento, a cada olhar. Sentada à escrivaninha, Doris olha nos meus olhos e escreve, escreve, escreve. Inspira-se na minha sonolência. Chego a pensar que é por este motivo que tanta gente hoje perdeu o gosto pela literatura. Ela faz dormir. Decerto foi por isso que criaram a expressão livro de cabeceira. Ninguém deveria confiar em escritor que tem gato. Eu não confio há um bom tempo, desde que Doris recebeu o Nobel e nem mencionou a minha participação em sua prolífica obra. Após essa decepção, em que nem vi a cor dos milhões de coroas suecas, comecei a evitar todo tipo de contato visual entre nós. Quando ela se acomoda na cadeira todas as manhãs para escrever, eu já estou de costas, fingindo interesse nas borboletas idiotas da paisagem ou roncando com meus botões. Ela então me acaricia com ternura, como se eu não soubesse de sua real intenção, remexe nos objetos sobre a mesa, tosse três vezes e demora, demora séculos para escrever uma primeira frase. E não escreve. Olha fixamente para o rabo recolhido do seu agente sentimental e ele não lhe inspira uma lembrança, uma imagem, uma associação, nem mesmo uma confissão. Nada. Um rabo sem logos. Ela suspira. Vai ser um longo dia, Doris. Douce est la vengeance.

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2.8.09

Amendoim torradinho




Susana Marli mora no 807 da Senador Vergueiro, fundos, e tem todos os vinis da Sylvinha Telles. Seu apartamento tem uma sala que não vamos conhecer e um quarto em que não vamos entrar porque se entrássemos veríamos que além de ter todos os discos da Sylvinha, ela também é a cara da Sylvinha. Uma cara que você não iria entender assim como Susana Marli não entende por que o samba-canção foi parar na bossa nova. Susana Marli entende por que ela foi parar no 807 da Senador Vergueiro, fundos. Ninguém precisou lhe explicar. Mas com a bossa nova é diferente. A primeira vez foi quando ela viu Sylvinha jogada na calçada sobre o plástico do camelô. O rosto encardido na capa. E julgou estar vendo a própria imagem no espelho. Amor em Hi-Fi. O seu reflexo se multiplicando, acompanhando as pedras do chão. Amor de Gente Moça. Carícia. Quem é essa mulher nesses discos velhos? Por que tem a minha cara? Por que se faz de mim? Eu não posso ficar nesse chão imundo onde todo mundo escarra. Com olhos de meio-fio. E assim começou a coleção de discos de Susana Marli no 807 da Senador Vergueiro, fundos. Andando por todas as ruas do centro da cidade e depois da zona sul a norte leste e oeste, ela não deixou um rosto de Sylvinha Telles pegando pó de asfalto em barracas, caixotes de supermercado, lonas de plástico sebentas. Tudo que tinham para vender ela comprava. Depois de meses de procura, convencida de que não havia mais um único vinil de Sylvinha sendo vendido nas ruas do Rio de Janeiro, Susana Marli sossegou nos fundos do 807 da Senador Vergueiro e começou a ouvir boleros, sambas-canção e bossa nova. Umas músicas estranhas que a arranhavam entre dois mundos, porque não era isso que toda gente costumava cantar ou que ouvia na televisão. Ela mesma não se importava com música, coisa boba que passa. Trocava de canal sempre que a cantoria começava. Mas com Sylvinha foi diferente. Foi a noite. Foi o mar. Sylvinha parecia tanto com ela que Susana Marli começou a se vestir como Sylvinha. Se pentear como Sylvinha. Deixar crescer as sobrancelhas de Sylvinha. E no final de todas as faixas já estava cantando como Sylvinha. Ninguém ergueu os olhos quando Susana Marli entrou na Biblioteca Nacional e pediu para ler os jornais cariocas dos anos 50 e 60. Ali estava ela, nas fotos dos jornais. Fui eu, eu sei. A normalista, a assistente de palhaço, o amendoim torradinho. Sylvinha Telles sou eu. Eu fiz mal em fugir. Eu fiz mal em sair. Do que eu tinha em você. Hoje eu volto vencida. A pedir pra ficar. Meu lugar é aqui. Faz de conta que eu nunca saí.