21.2.10

Al levar della luna




Quando eu já nem lembrava mais de sua imagem e som,
você me aparece explodindo na tela dos meus sonhos.
Tão líquida, que dava para ver o fundo. Estamos felizes.
Sua vivacidade nervosa e o rouco sorriso irônico na
boca me contam algo de muito engraçado que lhe
aconteceu. Eu não acompanho. Apenas sigo seus
gestos. É a solidão mais doce. Uma súbita cinza de
cigarro fora da moldura cai em sua pálpebra. Sem
saber o que procura, você esfrega o olho com os dedos
e borra a pele. A cinza se espalha. Vira uma sombra.
Eu sorrio e falo pela primeira vez,
com a minha voz que não entende o que quero dizer.
Está parecendo uma egípcia. Egípcia? Você pula do meu colo,
corre até o espelho e puf! Acordo quando já não é você
que sonhei há pouco. A mulher está só.
Podemos nos ver novamente,
sempre que o esquecimento quiser.


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7.2.10

O ovo e a vizinha


“Vó, a vizinha tá cheirando o seu ovo!” Elizabeth Soares, dos Almeida, nasceu no Rio de Janeiro em 1968 e morava com a avó no Leme, o apêndice de Copacabana. Morava com a avó porque dos pais pouco sabia. Eram professores e viviam viajando, comentavam baixinho. Ela nunca os viu. Nunca os veria. Como via agora a vizinha cheirando o ovo. A vizinha batera na porta há uns três cafés da manhã e pedira por obséquio um ovo. Só um. E branco. Não uma xícara de açúcar. Uma colher de sal. Um ovo. A cozinha da avó ficava de frente para a cozinha da vizinha. Entre elas um fosso de dez andares. Vinte cozinhas ao todo. De todos os cheiros, vozes e ruídos. Elizabeth viu pela janela sempre aberta a vizinha entrando na cozinha em frente e pousando o ovo sobre a mesa. Não fritou, não cozinhou. Sentou na cadeira e ficou lá a manhã inteira. Olhando o ovo. Estudando. Depois pegando, tateando, girando-o entre os dedos e, largando de novo na mesa, tentou várias vezes colocá-lo de pé. Ovo teimoso. Elizabeth sorriu, lembrando da avó. Turrona. A mulher olhava para o ovo com a devoção dos não famintos. Como um Cristo na cruz. “Vó, a vizinha é doida?” Não, é jornalista. Vive batendo à máquina, nunca ouviu? Jornalista é quem escreve em jornal, Elizabeth lembrou das palavras da avó enquanto catava conchinhas na praia. Será que ela vai escrever sobre o ovo da minha avó no jornal? Que notícias pode trazer um ovo? Dos meus pais desaparecidos? Elizabeth largou o baldinho, deu um mergulho e voltou para a sombra da barraca. A avó comprou dois picolés. Olhando um navio que passava, ela começou a fazer um buraco fundo na areia morna. Um dia iria para longe dali. Outro país. Não sabia como. De navio ou por aquele buraco na areia. A areia da praia costumava ser generosa. Bastava saber cavar. Um dia achou um relógio de ouro. Outra vez um livro de capa dura de um escritor chamado Oscar. O Retrato de Dorian Gray, leu sua avó. Seu pai também se chamava Oscar, ela disse, como se ele estivesse morto. Foi o primeiro livro de Elizabeth. Ela aprendeu a ler só para entender o que Oscar dizia. Mas Oscar ainda era uma boia longe e solitária no oceano. Foram necessários mais vinte anos para entendê-lo. A avó não existia mais e Elizabeth descobriu não gostar do Leme, do país, do ovo. O ovo era o disfarce da vizinha. Não precisou do navio ou do buraco na areia para chegar ao outro lado do Atlântico. Professora de teoria literária e literatura comparada em Oxford, Elizabeth perdeu também o sobrenome. Ganhou dois filhos, Troilus e Cressida.



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