31.12.12

De um certo ângulo


2013 de um certo ângulo é 1913
e assim sucessivamente 
na última madrugada do ano sonho
que M me apresenta seu bebê freak 
misto de paixão, polvo e cão 
um monstro de acasos cromossômicos
fico sem palavras  
por não tê-las, me acordam 
é D no telefone 
e aí, preparada para muitas marivaudage ano que vem? 
D tem refinamento 
outros amigos dizem ser obsoléta
eu a vejo como um baluarte
da tapeçaria rococó
além disso, é tão bonitinha.
N, mulher de autor premiado, 
não gosta de cinema oriental 
lhe dá spleen 
refestelada na poltrona de chicória
ela quer ação tsunâmica
diálogos bíblicos
voleios em gravidade zero
menos insípidos que as histórias do marido.
C amarrou uma corda de poesia
no pescoço e chutou a cadeira.
V definhou no leito hospitalar
pedindo atenção dos amigos
que tentavam uma RCP
contando piadas.
T se matou por amor
mergulhou na noite
do último andar de um hotel caro
seu corpo velho levando de arrasto
o telhado de um colégio vazio
a família fez garage sale.
B foi guerrilheira e hoje é budista
vai à missa, crê e masturba
o triunfo do comunismo
no psicotrópico do catimbó.
O, eminência parda do sarcasmo intelectual,
procura amantes nas redes sociais
com carinha de coquette.
S fez teatro de vanguarda 
encenou este ano a sua morte
com um vestido de voile psicotecido por Chico Xavier
que a família doou para a Casa dos Artistas
num pacote com livros amarelos de Pirandello.
P se acabou antes de aprender
a escrever poesias de amor.
Tudo isto em 2013
de um certo ângulo 1913.
Não sei se os fogos que vejo no céu
são estrelas ou os olhos dos meus amigos.
Durmo cedo para não ficar triste.
J deve estar ouvindo I'm Still Standing.
Eu já gostei mais de pernil.




27.12.12

Mesa para duas




Jantar hoje Fiorentina 9h não falte.
Não posso.
Por favor... por favor.
Tem uns dez anos essa conversa.
Nem sei se o Fiorentina ainda existe.
Coisas que não vejo mais para mim acabam.
Acabei indo. Banho tomado, dente escovado,
camiseta rasgada nova. Perfume de noite.
O táxi me deixa no Forte.
Alguns passos pela beira da praia
e atravesso a Atlântica.
Lugar cheio.
Não me arrependo porque
em casa estava mais quente.
Ela não se levanta. Eu não sorrio.
Uma tônica na mesa.
Um filé com alface pela metade.
Peço um Gordon's puro.
Estou me mudando.
Quando?
Salvador. Amanhã.
Você odeia Salvador.
Passou.
E por quem passou?
Por favor. Não é hora pra isso.
Ela raspa o prato. Sinto um cheiro de sal.
Você vai ficar bem?
Na mesma.
Esvazio meu copo.
Olho em volta e não a vejo mais.
Ela entrou e sumiu dentro de mim.
Tem certeza?
Não se preocupe. Tenho minhas vitaminas.
Então sorri e dá um tapinha na minha mão.
Eu sorrio também.
Não sei por que fiz isso.



24.12.12

Vegetal



Quando um carro passa acelerado por minha rua enquanto escrevo, é o som de um trem o que escuto. Se estou dentro do trem, o que ouço é o carro acelerando na minha rua enquanto escrevo.  Hoje às 8:08 em ponto teve fim a minha vida de carne. Virei vegetal. Imóvel no meu leito, não terei mais nenhum contato com o mundo externo, pessoas externas, coisas que se mexem. Dei por encerrada ontem minha última atividade e não erguerei um dedo para manter-me de pé. Que me importa. Se quiserem me lavar, que lavem. Que me arrastem daqui e coloquem na rua. Se quiserem me adotar como vegetal de estimação, muito que bem. Não ligo. Alguns dirão covarde, outros nem darão por falta. Há quem faça anotações na margem direita: tomou o caminho mais longo. Eu vegetal não penso no futuro, no que acham de mim, o que fazer amanhã, o que responder, comer, vestir. Não há mais devos. Só eu comigo mesmo. Olhos fechados, nem penso. Que o amigo sincero não se preocupe, nem o pedagógico lamente. Pelo que deixei de fazer, eu até me desculparia, não fosse já um vegetal completo. Tenho 99 moedas em Mi Ranita e umas tantas de ouro no banco. Devem dar para alguma coisa a quem souber aproveitar. São 17:53 em Caracas, 16:53 em Bogotá, 15:53 em Manágua, 14:53 em Denver, 11:54 em Honolulu, porque já passou um minuto. A cada hora o telefone vai tocando menos. Um vegetal ninguém procura. Só evita. Contorna a casa onde o vegetal está lá dentro, vegetando. Improdutivo. O visível com quem ninguém pode contar. Depois fotografam a porta para nunca mais esquecer.








23.12.12

E se ela tivesse algo contra mim?



Eu estava pensando e li.
E se ela tivesse algo contra mim?
Não algo pessoal com o meu nariz.
Ou o quintal de alguma coisa.
Mas algo assim no meu jeito.
O segurar do copo sem beber.
Pegar a tesoura e não cortar.
O papel higiênico e não limpar.
O pinçar de um só medo
no meu núcleo de medos.
Um explicaria todos.
O tempo que fosse.
Eu poderia perguntar a ela.
Aqui mesmo.
Perguntar coisas que Inês nunca.
Mas ela se acomoda na poltrona
em frente. Nenhuma outra.
Como se fosse ouvir
o que não ia ouvir.
Troco meu refil de suicidas
e espero. 
Pelo menos por um tempo.
Atrás dela, a ilusão ótica da lua
encobre a sua cabeça.
Puxo o lençol e fecho 
o livro com o lápis no meio.



16.12.12

3 poemas de Vasko Popa




A caixinha

A caixinha ganha seu primeiro dentinho
E crescem sua pequena altura
sua pequena largura seu pequeno vazio
E todo o resto que ela tem

A caixinha continua crescendo
E o armário que a continha
Agora está dentro dela

E ela cresce mais e mais e mais
Até conter a casa a cidade a terra
E o mundo onde antes estava

A caixinha lembra de sua infância
E pela força da saudade
Torna-se caixinha outra vez

Agora tens na caixinha
O mundo inteiro em miniatura
Podes levá-lo no bolso
Roubá-lo facilmente perdê-lo

Cuida bem da caixinha




O número esquecido

Era uma vez um número
Puro e redondo como o sol
Mas sozinho muito sozinho

E começou a calcular consigo

Ele se dividia se multiplicava
Se subtraía se somava
E sempre acabava sozinho

Deixou de calcular
E se fechou em sua redonda
E ensolarada pureza

Lá fora ficaram ardendo
Os traços de seus cálculos

Que começaram a se perseguir na escuridão
A se dividir em vez de multiplicar
A se subtrair em vez de somar

Como acontece na escuridão

E não havia ninguém a pedir
Que os traços parassem
Ninguém que os apagasse




Últimas notícias sobre a caixinha

A caixinha que contém o mundo
Caiu de amores por si mesma
E concebeu
Outra caixinha

A caixinha da caixinha
Também apaixonou-se por si
E concebeu
Mais uma caixinha

E assim foi sem parar

O mundo da caixinha
Devia estar dentro
Do último rebento da caixinha

Mas nenhuma das caixinhas
Dentro da caixinha que se amava
É a última

Vamos ver se descobres o mundo agora



(Tradução Maira Parula, 2012.)






13.12.12

Edifício Danville


101
Filho da puta! Egoísta! Bêbado! Débil mental! Uma porta bate e os gritos cessam.  Ouço o elevador sacudindo pelo poço e o cheiro de charuto cubano se espalha pelos corredores. Hoje a mulher não dorme.

102
Ao lado é o silêncio. O neto deve estar plantado no boteco da esquina e os avós mochileiros já foram dormir. Amanhã o alarme despertará às seis para o trekking diário dos velhos. O vagabundo continuará desmaiado na frente da TV ligada.

103
A fumaça de gordura frita sobe pelo fosso e invade meu apartamento sem desperdiçar um cômodo. Não demoro a detectar e identificar o prato do dia.  Uma nojenta carne de vaca.  Avanço pela cozinha, me estico no peitoril e jogo uma casca de banana podre na área do 103.  Neste prédio reina a educação pela pedra.  Eles deviam me agradecer de a minha não quebrar-lhes os vidros.

104
Ali mora um casal de amigos meus. Eu é que os avisei de que o imóvel estava para alugar. O que aconteceu há uns três ou quatro meses. Eles nunca me visitam. De vez em quando me convidam para descer e jantar caranguejo porque sabem que sou alérgica. Jogamos canastra. Com as mãos inchadas, sempre demoro a bater.


 201
Lésbicas. Duas. Demorei a entender a dinâmica do entra e sai, pois, ao contrário do que pode parecer, sou muito distraída. Festas de sábado só com mulheres, rindo e saindo pelas caixas de som. Ocupando todo o quadro da janela. Eu não conseguia ler nem dormir. Se tivesse o telefone do coronel, ligava. O coronel aparecia toda tarde de quarta-feira no 201. Uma das moradoras abria a porta. A mesma sempre. Depois abaixava a persiana. Uma hora mais tarde ele ia embora com seus cabelos brancos amassados. Na fronha, o cheque do aluguel. A outra voltava à noitinha. Unhas vermelhas cansadas do trabalho. Morar no Rio sempre sai mais caro do que o combinado.

202
Então foi ela. Semanas atrás desci do táxi bêbada e puxei uns trocados do bolso da calça apertada. Na confusão perdi o que nunca mais encontrei. Ontem ela tocou a campainha me pedindo uma cebola e comentou titilando o piercing da língua que adorava morar naquele prédio porque só tinha doidão. Imagine você que até papelote de cocaína já achei no chão da portaria. Era minha última cebola.

203
Divido este apartamento com um colega de faculdade. Ele quase não para em casa e pisa forte, o que me dá nos nervos. Fora isso, é uma boa companhia. Detesta jogar baralho, como eu. Não leva ninguém para trepar em domicílio, nem pede emprestado meus livros ou fuça minhas coisas. Filósofo amador, traz pizza de pepperoni para temperar nossas conversas até de manhã. Meu estômago me diz que não ficará muito tempo por aqui.


204
A maçaneta da porta é imaculadamente limpa. Por isso nunca confundo as nossas portas. Mãe, pai e filha. Às vezes sinto cheiro de galinheiro quando enfio a chave na minha fechadura.  Nunca se sabe o que acontece atrás de uma porta com maçaneta imaculadamente limpa.

Elevador

Estou lendo a biografia do Strauss.
O das valsas?
Não.
O das calças?
Nããão, sua zebra. O das estruturas.
Ah.

301
Este está vago. Os vizinhos se mudaram depois que o apartamento pegou fogo e eles perderam tudo. Acompanhei o trabalho dos bombeiros. Não havia muita coisa para perder. Achei uma harmônica Hohner debaixo de um colchonete queimado no quarto de empregada. Aprendi a tocá-la em pouco tempo. Originalmente as gaitas eram o castigo para quem perdia torneios de poesia. Acho justo.

302
Você sabe com quem está falando? Eu sou Fulano de Tal! Fulano de Tal!, gritava o famoso contrabaixista antes de comer a mulher de porrada. A polícia chegava em quinze minutos para pôr um fim naquela jam session. Eu nunca ouvira falar no Fulano de Tal!, nem os vizinhos nem a polícia, quem sabe por isso mesmo é que suas brigas com a mulher tinham de começar sempre com uma apresentação do seu CV ao distinto público. Ele tocava em pequenos bares da moda, pesquisei. A mulher pagava colcheias e semicolcheias e não recebia o mesmo tratamento carinhoso que as cordas. Com o casamento nasce o bebop.


303
O filho adolescente tem um topete e canta Elvis no chuveiro. Da coleção de vinis do pai é o preferido. A mãe tem uma voz medonha. O corredor do terceiro andar cheira a mijo de gato. Eles não têm gato. Numa manhã de sábado sou acordada pela campainha disfêmica. A Medonha no olho mágico. Abro a porta e de um jato entra a família inteira na minha sala, assessorada por dois assaltantes. Um deles aponta o cano de um 38 para a minha cabeça. A Medonha grita. O ladrão grita. Todos pro banheiro de empregada. Que é mínimo. O ladrão armado fica na sala ouvindo Clara Nunes enquanto o outro revista meu apartamento. Depois de uma hora eu continuo suando imprensada pelos Medonhos em volta da privada. O ladrão só gosta de Clara Nunes, só ouve Clara Nunes, e eu só tenho um disco de Clara Nunes. Se este garoto cantar Love me Tender aqui, eu acabo com a raça dele. Qual de vocês cheira a mijo de gato?, eu tinha de saber. A Medonha começa a chorar. Calem a boca vocês aí!, disse o Nunes entre uma música e outra. Não tem nada na porra desta casa, vamos vazar, disse o outro. A porta bate. Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela. Alguém nos destranca minutos depois. Um vizinho chamou a polícia. Minhas mochilas cheias de quinquilharias são devolvidas intactas. Perdi um relógio e um isqueiro extra-fino de ouro falso. Os Medonhos voltaram para o 303 sem sequer me dar uma satisfação do mijo de gato. Vou levantar este tema na próxima assembleia geral do condomínio.


304
Filho adulto solteiro mora com mãe divorciada. A solidão da mãe continua igual. Pegou um pug para criar. O pug desce de escada. Não temos elevador de serviço. A boa alimentação é a preocupação básica das mães. Todo dia o filho come uma gema crua de ovo equilibrada numa colher de sopa. Eu brinco com o pug e ela me chama para ver o saxofone do filho. Abre o estojo com orgulho materno e espera que eu abane o rabo. É um belo instrumento. Ele toca? Ah, sim, mas não aqui. Não pra mim. É um prédio muito musical o nosso, penso, fechando o estojo. O pug me encara com tristeza esbugalhada.

401
O quarto andar é o mais sombrio. Talvez porque ninguém passe por lá. Quem vai fica. Entra em uma de suas quatro bocas. Como a poeta que vivia aqui antes de eu vir morar neste edifício. O 401 está fechado há cinco anos. Não tem ninguém lá dentro. A família não vende, não aluga, não empresta. Ninguém viu o corpo da suicida sendo levado. Por isso há uma lenda de que ela ainda está lá. E esta lenda passa de morador para morador. De um edifício para outro. Como os canos de esgoto.

402
O velho aposentado mora sozinho. Abandonado pela família, dizem as escadas. Sofre do coração. Não pode beber, não pode fumar e deve sonhar com a mulher todas as noites. Eu ainda posso beber, posso fumar e às vezes sonho que ele morre dormindo sonhando com a minha mãe.

403
Aqui mora alguém que eu nunca vi, mas sei que existe. Sinto seu perfume lá do meu andar. No elevador que desce vazio. Ouço um choro baixinho e muito longe. Não vou bater em sua porta, embora saiba que é a mim que espera a vida inteira.

404
A síndica. Eu não vou falar da síndica. Transfiro a outrem os poderes de representação desta laia. Quem quiser que me aplique as multas previstas no Regimento Interno.



9.12.12

Cadenza























M.R.L. é doutora em teoria literária e adora minha estante amarelinha. Tem seus momentos prosaicos. A convite do consulado francês, está escrevendo um ensaio sobre a dificuldade dos poetas em dialogar com a crítica contemporânea, ou o inverso. Não lembro. 

Quando ela chega em minha casa, atira todos os seus procedimentos técnicos na poltrona. Um por um. Devagarinho. M.R.L. está há 20 minutos totalmente dentro da minha bout-rimé. Eu é que demoro a gozar.



8.12.12

A natureza do mal




Foi assim que ela resumiu a sua história na delegacia. Afrouxei a gravata e acendi um cigarro. O filme que eu queria ver naquela noite não passaria mais. Em um curto espaço de tempo a gente aprende a esquecer os planos da semana inteira. Paciência. Meu filho afogou meu cachorro na piscina por pura maldade. Meu filho tem cinco anos e, desde que nasceu, me dá trabalho. Meu cachorro era velhinho, a piscina não tem escada, ele não poderia subir. Ele vivia comigo há doze anos, desde pequeno. Um grande companheiro, um amigo. Não sei por que o menino fez isso. Da janela da cozinha eu ficava de olho nele, vigiando qual seria a sua próxima maldade. Matar passarinhos, esmigalhar lagartixas, apertar o pescoço das galinhas, chutar nossos coelhos, tudo pra ele era natural. Da sua natureza. Ele não tem pai. Eu também não. Não é minha culpa. Ele era um bêbado que um dia deu um tiro na cabeça. A vida sem um pai fica difícil. Esta é a palavra certa. Mas com meu cachorro eu não precisava de palavras certas. Tudo se entendia entre nós. O garoto era um estorvo, alguma coisa está faltando na cabeça dele. Alguma coisa que eu não dei. Ou que eu dei para tirar de mim. Ele nasceu com toda a maldade que expulsei de mim. Foi um parto demorado. A cabeça saiu deformada, depois foi pro lugar. Meu cachorro sempre gostou dele. Tratava o garoto como um filhote seu. Ele aprendeu a andar com o cachorro. Comiam juntos na sala. Dormiam juntos. Depois que o menino nasceu, meu cachorro me abandonou. Eu achava engraçado. No começo me deu ciúmes, depois passou. Com um pouco mais de tempo eu sabia que iria gostar do meu filho. Eu só precisava de tempo. Meu filho era uma missão, o senhor entende? Talvez eu não estivesse preparada. A casa é grande. A piscina é funda. Cachorros sabem nadar, meu filho não sabia. Isso ele não aprendeu com o cachorro. Esperou o cachorro ficar velho para matá-lo. O meu filhotinho. Quando o vi boiando na piscina, nossos olhares se fixaram um no outro e vi que ele estava morto. Seus pelos espalhados no azul. A língua roxa. E o maldito garoto observando tudo de longe. Acho que sorria. Não sei dizer. O sol no meu rosto e a raiva por dentro não me deixavam vê-lo direito. Não gosto de luz por isso. Fui na cozinha e peguei dois sorvetes na geladeira. Sentei na beira da piscina e fiquei olhando meu cachorro morto lambendo um sorvete. Eu não iria chorar. Sabia o que ele estava pensando. Dois sorvetes de creme. Nosso sabor preferido. Rezei por ele, para que ficasse ao lado do Senhor. Para o Senhor acolhê-lo. Mostrei o outro sorvete ao menino. Ele sorriu para mim, veio correndo e sentou ao meu lado. Ficamos lá, os dois olhando para o cachorro enquanto o sorvete pingava. O sorvete derretia, mas não eu. Eu tinha uma missão. A missão de toda mãe. A primeira parte eu já havia cumprido. Quando os dois sorvetes acabaram, eu sabia que havia chegado a hora de completá-la. O menino atirou a caixinha na água. Ela ficou boiando no focinho do meu cachorro. Ele lambeu a boca melada e se levantou. Foi Deus que conduziu minhas mãos, doutor. Fique certo que foi Deus.







2.12.12

Acabes con esa molestia de una vez





O certo é que minha única curiosidade neste exato momento é observar até onde este café preto vai parar dentro de você. Como no dia em que vi você chegar. E o abacate fez tum. Meu peito aberto em melancia. A vida pedindo mais um ombro. Um colar, um torcicolo, uma jugular. O pescoço de todo mundo é assim. Com uma diferença de segundos. Não tome isso como uma vontade absoluta, eu mentiria até sem falar. É só para não deixar passar mesmo nada. O que não diminui o valor de sua boca. Seria estupidez da minha parte. Nunca tivemos gostos iguais. Olhos compostos. Qualquer coisa que dissessem modificava a sua vida. Seus pais, os amigos, o século I, o açougueiro. O que diziam os moídos dizia também o seu coração. E o que pode parecer minha amizade toda por você é apenas uma linha de coisas entre as quais estou. Uma vez ou vindo ainda. Aquela bobagem em que caímos na meia hora completa de uma noite. Só faltou datarmos as cartas. Ninguém sabe que lhe escrevi uma carta delicada como esta, que não lhe mandei. Se hábitos são o assunto, bom é ficar calada. Fumando sorrindo e cansada. Sei que um dia serei velha, mas até lá estaremos mortas. Sobraram os poetas que você citou. 








1.12.12

Está provado que só é possível Ne Me Quitte Pas em alemão



Bitte geh nicht fort!
Was ich auch getan,
was ich auch gesagt,
glaube nicht ein Wort!

Denk nicht mehr daran!
Oft sagt man im Streit
Worte, die man dann
später tief bereut.

Dabei wollt mein Herz
ganz dein eigen sein,
denn ich liebe dich,
lieb nur dich allein!

Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!

Bleibe nah bei mir,

gib mir deine Hand!
Ich erzähle dir
von dem fernen Land,

wo man keinen Zorn,

keine Tränen kennt,
keine Macht der Welt
Liebende mehr trennt.

Wo auf weiter Flur
blüht kein Herzeleid,
wo ein Treueschwur
hält für Ewigkeit.

Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!

Bitte geh nicht fort!
Lass mich nicht allein!
Wenn du mich verlässt,
stürzt der Himmel ein.

Lass uns so wie einst
stumm am Fenster stehn,
traumverloren sehn
wie die Nebel drehn.

Bis am Himmelszelt
voll der Mond erscheint
unsre beiden Schatten
liebevoll vereint.

Bitte geh nicht fort!

Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!

Glaube mir ich werd'

deine Sehnsucht stillen,
werd' dir jeden Wunsch
dieser Welt erfüllen,

werde alles tun,
was ich hab versäumt,
um die Frau zu sein,
die du dir erträumt.

Lass mich nicht allein -
ich beschwöre dich -
lass mich nicht allein,
denn ich liebe dich!

Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!
Bitte geh nicht fort!


30.11.12

O corpo



Viro a cabeça & vejo os trilhos. Vermelhos
-- ebulindo no azul aeroplano
uma pequena poça sem ventos.
Olho bem para eles -- Não dirija à noite.
Uma voz de lado.
Do outro, algum tempo ainda.
Na mão contrária, o bilhete da cozinha:
a vida vai ficar pronta num minuto.
Sente & espere.
As janelas acesas.
A garrafa no balde de gelo.
No fundo do copo um banho quente.
A que horas você volta?
Liguei o carro e meu nome foi embora.
Nosso abraço saindo da cidade.
Os trilhos continuam pelo falar:
não se mexa enquanto estiver diluindo.
Onde bate água tem de escurecer.
Acho que chegarei bem em casa.
Meu amor.









24.11.12

yo soy toda mi memoria





Maira, com i sem acento, nasceu em 23 de janeiro de 1917 em Porto Alegre, na República do Charque. Começou a escrever aos 5 anos no colo de Oswald de Andrade, amante fortuito de sua mãe, uma líder sufragista casada e oprimida. Participou da Semana de 22 como revelação mirim e poucos anos depois lançou em edição limitada um caderninho artesanal de poemas infantojuvenis mórbido-eróticos que ela dizia ser a visão do seu "Abaporu". Mário de Andrade enfureceu-se, tomou as dores de Tarsila e expulsou-a do grupo e de São Paulo. Traumatizada já na infância, abandonou a poesia e só voltaria a escrever aos 72 anos. Antes disso, viveu duas décadas entrando e saindo de comas devido a graves ferimentos sofridos na Revolução de 1930 no Rio Grande como locotenente mascote do avô, militar getulista comandante do pelotão que tomou o Arsenal de Guerra, e mais tarde na Segunda Guerra Mundial, quando atuou como tenente enfermeira na retaguarda de combate aliada do Komsomol. "Foi o surfe que me salvou", costuma dizer, emocionada. Formou-se tardiamente em Letras durante a ditadura militar de 1964-1985 e dedicou-se à política, participando da passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, onde era a de número 42.693. Decepcionada com a resistência pequeno-burguesa a regimes de exceção, abandonou a política aos 85 anos, embora flerte gostosinho com o anarquismo. Já no século XXI, publicou um livro de contos e poemas porque uma alma caridosa de uma grande editora se encantou com seus textos e sua dramática história de vida. A caridade da editora parou por aí. Maira teve 13 casamentos -- 8 desquites e 5 divórcios. Hoje vive em concubinato. Acredita no amor, principalmente quando acaba. "Lascio le donne, e studio la matematica." Tem poucos amigos, alguns inimigos e uma plêiade de indiferentes, orgulha-se de todos. "Escrevo e faço muita merda, às vezes ela acerta", diz a poeta. Inquieta, já morou em mais de 30 albergarias pelo mundo. Não possui bens, pois é contra a propriedade privada, mesmo que lhe caiam na cabeça por herança de parente -- dissipa tudo com livros, chocolates e a causa operária. Aos 77 anos largou as drogas, e aos 92, o alcoolismo. Vive de suas traduções numa região arbórea remota, de onde não sai por suas dificuldades psicolocomotivas misantrópicas. Hoje só escreve e publica virtualmente, em sítios de literatura, acha o suporte livro uma limitação à criatividade, e a política editorial, sanguinária e vampiresca, mas pode ser despeito. Não é. Considerada uma lenda, por vezes até pseudônimo, por nunca aparecer em lugar algum. Poucos a conheceram pessoalmente. Outros acham que nem existe. Maira é grata aos seus leitores fiéis e diz que escreve unicamente para eles e pelo dom que os deuses lhe deram de transformar sua loucura em palavras, não em desenhos, onde ela é pior ainda. Centenária secular, Maira não tem arrependimentos, afirma que se tivesse de começar de novo, faria tudo diferente. "Afinal, sou de Aquário, com ascendente em Escorpião, Sagitário, não sei que lá." 

 

 


Puro algodão




Eu estava com insônia e dali a algumas horas teria um dia muito ocupado. Martelar isso não me ajudaria a dormir. A cama e o colchão foram comprados a longo prazo e o dia ocupado à frente tinha algo a ver com isso. Pensei um minuto. São 3:10 da manhã e se não demorar muito talvez eu possa dormir se não pensar muito em demorar a dormir. Não pensar muito não é o meu estilo, o que também pode demorar. Comprei o lençol errado. Este tem listras azuis e brancas, alta concentração de poliéster. Sigo as listras ora pelo azul, ora pelo branco, entrando no azul, dobrando até o branco e saindo no azul novamente. Paro no caminho para beber água. Sento numa pedra. Se aqui faz sol é porque do outro lado do mundo faz lua. Posso esperar quando o que espero é o esperado. Apanho um punhado de areia. Regulo a velocidade de saída dos grãos dentro do meu punho fechado. Pelas minhas mãos duas horas escorrem em dois segundos. Um barco a remo passa na risca seguinte. Alguém me acena de lá e engulo uma fatia do meu bolo de aniversário de quinze anos. Naquele tempo os lençóis eram puro algodão.

  


17.11.12

A botica




lavadeiras  
padeiras
verdureiras  
leiteiras
pederasteiras  
nevoeiras
vespasianas  
poeteiras
eremitas                                                           parnasieiras
barqueiras  
lesbianas
rabelairas  
trekkistas
suicidistas  
modistas 
marximalistas
traduzistas  
tesoureiras
maconhistas  
cozinheiras
filosofimistas
duristas
formalistas  
moleiras
faxineiras  
alprazoleiras
prousteiras  
peixeiras
carteiras  
bilheteiras
professoreiras  
cocaleiras
coraixitas
gideanas  
obreiras
doutoreiras 
azeiteiras



doceiras ou amargueiras
rueiras ou caseiras
minha retina
é uma botica
de cabeceiras








Quando não se quer dizer nada



Não tenho medo de tudo
Assim, só de barata
Aqui em casa não tem barata
Então é como se não tivesse
medo de nada, nada de nada
Passa esse chocolate
Mas, sabe o que é?
Tenho medo dele
Daquele rapaz de cachinhos
Ele é uma esponja
Se eu espirro, 
ele espirra
Se troco as calcinhas,
ele troca as cuecas
Se cumprimento alguém,
ele põe o mãozão na frente
e aperta tanto que o alguém
fica com a mão dele 
e esquece da minha
Eu tenho medo de esponja
De gente esponja
Tudo que eu falo 
parece que foi ele que falou
Tudo que eu escrevo 
ele escreve mudando as palavras 
no que fica a mesma coisa
Melancia à vontade
O dia em que ele se alojar
na minha fossa ileocecal,
ninguém salva
hum, o chocolate tá booom
como sabia que eu gosto com castanha?
Só minha mãe sabia
e ela virou areia na praia da Urca.
Um chocolate é uma coisa tão simples
Não desaparece nem quando se apaga a luz
E se a gente parecesse as únicas pessoas aqui?