29.10.12

Rio-Frankfurt



Impossível duvidar do pulso que acelera.
Parei para pensar contra mim.
Em quem eu procurava planos
enquanto tinha outras coisas na cabeça?
Levo D no aeroporto.
Não era para acontecer,
nem o contrário.
Devia passar despercebido,
como quando se arranca
uma palavra pelo olho.
D dá um tapinha no relógio.
Está na hora e no tempo.
Desliza a mão por minha
camisa azul-clara abatida.
Quem contou que eu estava ali?
Me beija bem na minha frente.
Foi por educação.
Mas tinha.
Quem tiraria a razão dos seus lábios?
O avião é tudo que poderei contar a você.
Se não acredita em mim,
melhor deixá-lo para trás.
É o final que conta.



23.10.12

A mancha




Você não gosta de berinjela. Não houve um dia na sua vida em que tenha gostado de berinjela. Quando diz berinjela, está querendo dizer berinjela, não jiló. Uma palavra em ordem, tal como está. Sem lógica vaga. E tem mais. Não se trata de uma berinjela. Ou de uma qualidade específica de berinjela. Você não gosta das berinjelas. Nem do plural você gosta. Seja das de Madame Cartet ou do Auberge de la Madone. Muito menos das do Le Prieuré. Você não suporta berinjela nacional ou provençal. E, veja só, não sabe o que fazer com isso. Acha injusto, e perigoso. E se um dia o mundo se acabar em berinjelas e você não conseguir comê-las? Não comerá nunca mais. Definhará. Mofará pelas beiradas como berinjelas da semana que virá. Porque a verdade é que, mais do que não gostar, você tem asco. Um asco lento e insidioso. Que muda o seu rosto. A ponto de ser impossível retratá-lo. Reconhecê-lo. Fotografá-lo. Você tem tanto asco que não o nomeia. Simplesmente diz, Não gosto. Como quando lhe perguntam o que achou da cor de um esmalte. E perguntam tantas coisas a você, mas fiquemos só no esmalte, que nos leva em várias direções. Não gosto. É o que você diz, e por dentro quer vomitar. Por dentro não se vomita, e você não vomita. Você tem asco de tantas coisas que não vai querer ditas aqui. Porque não caberia. Não caberia. Há pudores. Podem pensar mal de você e isto você não quer, mesmo que tudo que faça seja para que pensem mal de você. Podem pensar bem e isto você não quer, porque você vai dizer e vão repetir, vai dizer e vão repetir. Vão repetir tanto que o que disse não será mais seu. Você acredita nisso. E agora está nesse pé. Não consegue chegar ao segundo capítulo do livro que está escrevendo porque jamais consegue chegar ao segundo capítulo de nada. Está se ouvindo? Sempre vem uma coisa a esmagar o dito antes e você não pode continuar. Precisa parar. Porque no que escreveu diante de si vê uma correspondência consigo mesma. Insidiosa. E ela se ajusta a você, cabe na sua forma, e em volta do que disse continua tudo branco. Um buraco em que você não cabe mais. E não pode descrever. E tem de parar. Com um ponto final.



20.10.12

Plissê


Horizontais

1- Óxido de cálcio. 4 - Arremessa. 9 - Pequeno caranguejo aquático. 11 - Erva-doce. 12 - Conjunto de  cerimônias de uma religião (pl.). 14 - Seguias. 15 - Ligar. 17 - Episcopal. 18 - Perversa. 20 - Esvaziar. 22 - Outra vez! 24 - Demoraria. 26 - Rezar. 28 - Nome de homem. 29 - O mesmo que outra. 31 - Pedra do altar. 32 - Gradear com arame.


Yo me acuerdo mal de mi novio. Quase não lembro do meu noivo -- fica melhor assim. Parece muito, mas foi outro dia. Quando quero saber como era, pergunto aos vizinhos. Ou elaboro uma memória de improviso, desberlotando tempo e distância. Ele tomando um cafezinho no sofá da TV. Tomando o segundo cafezinho na cozinha com minha mãe. O terceiro antes de ir embora. Meu pai na porta se despedindo e passando a tranca. Tudo como no manual. Menos o nome de cantor. Meus vizinhos têm os discos. Botam para eu ouvir, achando revelar o som como imagem. São dias quentes, e em dias quentes prefiro associar calor a sorvete, que não combina com música. Nada mais justo. Abro uma X-9 sobre a mesinha de centro. Ganhe dinheiro fazendo plissê. Seis pensamentos foram para você. Porque ya no ha de importarme, casei-me comigo, a quem beijo todas as noites passada a tranca. El Chopin na vitrola. Lua de mel no Ritz. Estamos bem. Queridos pais.


Verticais

1 - A bola vermelha do bilhar. 2 - Nome de homem. 3 - Briga. 5 - Basta! 6 - Rede de índios. 7 - Esteiro de rio (pl.). 8 - Garantir. 10 - Larva em feridas de animais. 13 - Grande saco. 16 - Pouco comum. 19 - Refrescar-se. 21 - Ramagem. 23 - Repete! 25 - Defeito físico ou moral. 27 - Antigo navio de combate. 30 - Sociedade Anônima. 


16.10.12

O Canal
























Ela saiu de novo.
A velocidade dela aumenta quando está mais próxima do sol.
O que é isso?
Kepler. Sonhei com ele esta noite.
Os corpos celestes se movimentam demais pro meu gosto.
Não se preocupe, ela volta.
Você continua frequentando a sua rue de Lille?
Sim, eu não paro de me escrever.
Mudou o estilo pelo menos?
Que ranzinza hoje, não?
Rabiscos, tudo não passa de rabiscos.
Você tem de parar de vigiar essa mulher.
Minha janela dá para o Canal.
E você não sai dela. Fica coagulando água aí.
Ela passa todos os dias, todas as horas,
daqui sou capaz de ver até os ossos.
Que não são poucos. Um alinhamento de canhões.
Têm música pelos lados.
Você devia dormir mais.
É pior.
Até este Canal imundo tem duas saídas para o mar.
É. Onde trombam as águas.
Há quanto tempo ela saiu?
Umas duas horas.
Costuma demorar?
Às vezes. Pela manhã volta mais rápido.
Pretende falar com ela?
Não sei. Acho que não. Nunca direi.
E por quê?  Eu vejo tudo e calo?
Se falar, deixo de pensar.
Se falar, pensará outras coisas.
Já faço isso sem precisar falar com ninguém.
Eu não saberia viver assim.
Você é uma criança que precisa tocar as coisas.
É perigoso não entender o que acontece,
palavras são meio caminho andado.
Palavras são notícias. Não dizem pernas, braços, 
pele, nariz, ombro, orelhas, carne, sangue.
Da mulher do Canal?
Não, do meu corpo. 
Você precisa comer. Está magra demais.
Eu não me moveria se algo não me arrastasse.
Gilbert?
Napoleão, sob a cúpula dos Inválidos.
Precisa de dinheiro?
Não. Me traga um descongestionante nasal.
Ok. Tenho de ir agora.
Está bem.
Fecho a porta?
Sim, por favor.
Até logo então.
Até.









15.10.12

Andre, sem acento













meu nome é andre, sem acento. 
o sobrenome não interessa. 
não gosto de conversa. 
não faço nada para viver. 
eu vivo por aí. 
não me preocupo. 
eu tiro fotos. 
minha pentax é velha, 
sem manutenção. 
talvez eu seja um pouco assim também. 
o que me chama atenção eu clico. 
pode ser feio. pode ser bonito. não me importo. 
sou um amador. podia ser pior. 
gosto de carros. e do amarelo. 
pra mim basta.






14.10.12

El enigma de la mamita



Veja como é pequena. Cabe numa só mão. 
Podes lançá-la com a outra e desalojar teu inimigo do seu refúgio. 
Ele poderá ficar vivo, morto, ou algo muito pior. 
Vivo, se for esperto. Morto, se tiver sorte. 
A granada parecia quente demais para segurar 
e meu pai entregou-a a mim 
minutos depois de tirá-la do bolso do casaco 
onde guardava também seus bilhetes do Sweepstake. 
Não era a primeira vez que me mostrava seus conhecimentos. 
Seus aperitivos visuais. 
Desde cedo me ensinou a entrar em casa sem ser percebido. 
Como aquele que não quis voltar. 
A falar com alguém sem ser ouvido. 
Mais tarde veio o sexo educativo com showgirls de sensações. 
Eu sou eu e a imaginação tortuosa de todos, 
ele me disse pelo telefone no dia seguinte. 
Ninguém precisa de livros. 
O que se aprende com papéis porosos e umas gotas de tinta? 
Não vejo papai com frequência. 
Ele mora no Quarto 23 de um hotel cem quilômetros distante de nossa casa. 
Um quarto que nunca visitei. 
Imagino tarântulas, pensamentos invisíveis, pistolas atômicas, 
um tabuleiro de mahjong para prever a posição dos corpos de seus inimigos. 
Quem sabe um irmão secreto. Uma cidade submarina. 
Um quadro de modelos vivos, Mamita e eu contra a parede. 
Ela não me conta do passado dos dois juntos. 
Por que papai tem oitenta anos e parece quarenta. 
Mamita fez quarenta ano passado e já usa dentes postiços de um protético francês. 
Penso em coisas sinistras. Maldições hereditárias. 
Não consigo evitar. 
Se eles são mesmo meus pais. 
Se este é mesmo o meu país. 
Se esta é a minha cidade. 
Se esta é a minha natureza. 
Frente a frente com o estojo de seringas, 
meus instintos primários me trazem calafrios. 
Não os sigo nem eles me orientam. 
Diferente do meu pai, não vejo engenhosidade 
nos caprichos da demonstração de força. 
Talvez eu seja uma pedra. 
Um banco de madeira onde todo mundo se senta para contar histórias. 
Talvez a casa de Mamita seja um laboratório e este laboratório, o meu lar. 
Papai, um detetive. Mamita, uma paranormal. 
Ele me prepara para a guerra. Ela, para o desconhecido. 
Coisas de um romance. 
Ou o próprio.



10.10.12

Da próxima vez escondo melhor meus animais






I

No chiqueiro, os porcos gordos são os primeiros a serem procurados pelos comedores de porcos. Os comedores de porcos gordos procuram uma receita alheia pronta na gaveta e na hora de servir só acrescentam a folhinha de manjericão. Há quem prefira ervilhas. Ou esmagar bem a carne. Uma ideia de tomilho. Uma sugestão de pecorino ralado. O editor põe a mesa. Escolhe seus dez porcos gordos para a revista dos comedores de porcos. Os porcos magros têm fome e sede, mas comedores de porcos não se interessam por energia bruta. Querem energia metabolizável. Ver no espelho um bando de cisnes. O editor reserva os porcos magros para o peso ideal de abate. Porcos magros disputam os farelos de mamona com os verbos no futuro. Nada, com efeito, era mais real. Alguns amigos teimam comigo o contrário. Abrem o piano até os joelhos e apontam para o decassílabo heroico. Eu continuo pensando nos porcos gordos. Na revista dos comedores de porcos. Na página 21 que aproxima os corações solitários. E também na imortalidade da alma porca. Faço as contas do sangue derramado. Sem sair da minha posição. Sem me mexer na cadeira. O que tem o dom da cura. A demência pela modéstia parafraseada. Eu era  criança quando desisti da guerra. E se hoje penso nos porcos gordos, uma palavra sua pode mudar isso. Não a repetida. Não a que está agora em foco. Mas aquela possivelmente um nada. Um bicho-da-seda fugindo para o sul enquanto fecho a revista e conserto a goteira no teto. 

II


Vinte anos no mesmo assunto e não conseguia vendê-lo. 

O pano de prato do coveiro. 
Fez até roteiro. O corpo central do edifício. 
Após alguns braços de mulher, desistiu. 
Hoje estala os dedos e Vamos tomar um café às cinco e meia? 
Eu hesito porque ele escarra na rua e seca os dedos estalados no casaco. 
Quer comprar meus porcos gordos. 
Coloco o pão à direita e a faca à esquerda. 
Tiro da boca o que já mastiguei e entrego a ele. Parece limpo. 
Ele bebe à minha saúde, à minha lhaneza, à minha amizade. 
Mais tarde penso muito sobre este encontro e separo um tempo para os doces. 
Os meus porcos a essa altura viraram língua escrita. 
Ferdinando é um ladrão. 
Da próxima vez escondo melhor meus animais.









9.10.12

2 poemas de Abous Nuwas


No banho turco


No banho turco, o que as calças escondem é revelado.
Tudo fica visível. Um banquete para os olhos.
Belos traseiros, torsos esguios,
E rapazes sussurrando fórmulas pias
uns para os outros:
Deus é grande! Louvado seja Deus!

Que palácio dos prazeres é o banho turco!
Mesmo quando os meninos trazem as toalhas
e estragam um pouco a festa.








O verdadeiro Jihad



O ventre da donzela

E o traseiro do jovem


Uma única lança perfura a ambos.





Este é o verdadeiro Jihad


e no dia do Juízo Final


sereis recompensados.











Abous Nuwas, Poesia Báquica, séc. VIII.


(trad. livre Maira Parula,  2012.)









6.10.12

Dentro, se puder quase em torno






Não quero pensar nisso.  E pensa. 

Três variantes ao mesmo tempo.


O lugar que o olho procura.


Uma fila de camelos 

entardece até o Merzouga.

Terra deitada na água.

Você acha que sim. Por tão pouco.

Não quer continuar.  E penso.


Parte dele é uma palavra.


Um respiradouro.


Um talho na pedra.


Você espreme os caracteres


entre duas linhas horizontais 


imaginárias e deixa escoar.

A música passando

pelos furos do cinto.

Abre um Abou Nawas

sobre o lençol de algodão.

O olho faz silêncio de quem 

pede um cigarro e some.