30.11.12

O corpo



Viro a cabeça & vejo os trilhos. Vermelhos
-- ebulindo no azul aeroplano
uma pequena poça sem ventos.
Olho bem para eles -- Não dirija à noite.
Uma voz de lado.
Do outro, algum tempo ainda.
Na mão contrária, o bilhete da cozinha:
a vida vai ficar pronta num minuto.
Sente & espere.
As janelas acesas.
A garrafa no balde de gelo.
No fundo do copo um banho quente.
A que horas você volta?
Liguei o carro e meu nome foi embora.
Nosso abraço saindo da cidade.
Os trilhos continuam pelo falar:
não se mexa enquanto estiver diluindo.
Onde bate água tem de escurecer.
Acho que chegarei bem em casa.
Meu amor.









24.11.12

yo soy toda mi memoria





Maira, com i sem acento, nasceu em 23 de janeiro de 1917 em Porto Alegre, na República do Charque. Começou a escrever aos 5 anos no colo de Oswald de Andrade, amante fortuito de sua mãe, uma líder sufragista casada e oprimida. Participou da Semana de 22 como revelação mirim e poucos anos depois lançou em edição limitada um caderninho artesanal de poemas infantojuvenis mórbido-eróticos que ela dizia ser a visão do seu "Abaporu". Mário de Andrade enfureceu-se, tomou as dores de Tarsila e expulsou-a do grupo e de São Paulo. Traumatizada já na infância, abandonou a poesia e só voltaria a escrever aos 72 anos. Antes disso, viveu duas décadas entrando e saindo de comas devido a graves ferimentos sofridos na Revolução de 1930 no Rio Grande como locotenente mascote do avô, militar getulista comandante do pelotão que tomou o Arsenal de Guerra, e mais tarde na Segunda Guerra Mundial, quando atuou como tenente enfermeira na retaguarda de combate aliada do Komsomol. "Foi o surfe que me salvou", costuma dizer, emocionada. Formou-se tardiamente em Letras durante a ditadura militar de 1964-1985 e dedicou-se à política, participando da passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, onde era a de número 42.693. Decepcionada com a resistência pequeno-burguesa a regimes de exceção, abandonou a política aos 85 anos, embora flerte gostosinho com o anarquismo. Já no século XXI, publicou um livro de contos e poemas porque uma alma caridosa de uma grande editora se encantou com seus textos e sua dramática história de vida. A caridade da editora parou por aí. Maira teve 13 casamentos -- 8 desquites e 5 divórcios. Hoje vive em concubinato. Acredita no amor, principalmente quando acaba. "Lascio le donne, e studio la matematica." Tem poucos amigos, alguns inimigos e uma plêiade de indiferentes, orgulha-se de todos. "Escrevo e faço muita merda, às vezes ela acerta", diz a poeta. Inquieta, já morou em mais de 30 albergarias pelo mundo. Não possui bens, pois é contra a propriedade privada, mesmo que lhe caiam na cabeça por herança de parente -- dissipa tudo com livros, chocolates e a causa operária. Aos 77 anos largou as drogas, e aos 92, o alcoolismo. Vive de suas traduções numa região arbórea remota, de onde não sai por suas dificuldades psicolocomotivas misantrópicas. Hoje só escreve e publica virtualmente, em sítios de literatura, acha o suporte livro uma limitação à criatividade, e a política editorial, sanguinária e vampiresca, mas pode ser despeito. Não é. Considerada uma lenda, por vezes até pseudônimo, por nunca aparecer em lugar algum. Poucos a conheceram pessoalmente. Outros acham que nem existe. Maira é grata aos seus leitores fiéis e diz que escreve unicamente para eles e pelo dom que os deuses lhe deram de transformar sua loucura em palavras, não em desenhos, onde ela é pior ainda. Centenária secular, Maira não tem arrependimentos, afirma que se tivesse de começar de novo, faria tudo diferente. "Afinal, sou de Aquário, com ascendente em Escorpião, Sagitário, não sei que lá." 

 

 


Puro algodão




Eu estava com insônia e dali a algumas horas teria um dia muito ocupado. Martelar isso não me ajudaria a dormir. A cama e o colchão foram comprados a longo prazo e o dia ocupado à frente tinha algo a ver com isso. Pensei um minuto. São 3:10 da manhã e se não demorar muito talvez eu possa dormir se não pensar muito em demorar a dormir. Não pensar muito não é o meu estilo, o que também pode demorar. Comprei o lençol errado. Este tem listras azuis e brancas, alta concentração de poliéster. Sigo as listras ora pelo azul, ora pelo branco, entrando no azul, dobrando até o branco e saindo no azul novamente. Paro no caminho para beber água. Sento numa pedra. Se aqui faz sol é porque do outro lado do mundo faz lua. Posso esperar quando o que espero é o esperado. Apanho um punhado de areia. Regulo a velocidade de saída dos grãos dentro do meu punho fechado. Pelas minhas mãos duas horas escorrem em dois segundos. Um barco a remo passa na risca seguinte. Alguém me acena de lá e engulo uma fatia do meu bolo de aniversário de quinze anos. Naquele tempo os lençóis eram puro algodão.

  


17.11.12

A botica




lavadeiras  
padeiras
verdureiras  
leiteiras
pederasteiras  
nevoeiras
vespasianas  
poeteiras
eremitas                                                           parnasieiras
barqueiras  
lesbianas
rabelairas  
trekkistas
suicidistas  
modistas 
marximalistas
traduzistas  
tesoureiras
maconhistas  
cozinheiras
filosofimistas
duristas
formalistas  
moleiras
faxineiras  
alprazoleiras
prousteiras  
peixeiras
carteiras  
bilheteiras
professoreiras  
cocaleiras
coraixitas
gideanas  
obreiras
doutoreiras 
azeiteiras



doceiras ou amargueiras
rueiras ou caseiras
minha retina
é uma botica
de cabeceiras








Quando não se quer dizer nada



Não tenho medo de tudo
Assim, só de barata
Aqui em casa não tem barata
Então é como se não tivesse
medo de nada, nada de nada
Passa esse chocolate
Mas, sabe o que é?
Tenho medo dele
Daquele rapaz de cachinhos
Ele é uma esponja
Se eu espirro, 
ele espirra
Se troco as calcinhas,
ele troca as cuecas
Se cumprimento alguém,
ele põe o mãozão na frente
e aperta tanto que o alguém
fica com a mão dele 
e esquece da minha
Eu tenho medo de esponja
De gente esponja
Tudo que eu falo 
parece que foi ele que falou
Tudo que eu escrevo 
ele escreve mudando as palavras 
no que fica a mesma coisa
Melancia à vontade
O dia em que ele se alojar
na minha fossa ileocecal,
ninguém salva
hum, o chocolate tá booom
como sabia que eu gosto com castanha?
Só minha mãe sabia
e ela virou areia na praia da Urca.
Um chocolate é uma coisa tão simples
Não desaparece nem quando se apaga a luz
E se a gente parecesse as únicas pessoas aqui?





16.11.12

Uma coisinha estúpida que é amar você



Jogue água

Passe sabão

Esfregue

Esfregue

Esfregue

Depois enxágue

Enxágue

Enxágue

Depois passe o rodo

Passe um pano

Esfregue para enxugar

Esfregue

Esfregue

Esfregue




Aprendi com Baudelaire



























(em Não feche seus olhos esta noite, Ed. Rocco)


12.11.12

Unha festa no xardín

























Non podría ter un día máis perfecto para unha festa no xardín.
A lua cheia sem uma nuvem. Os homens nos grupos de busca.
O barco se aproximando de Tipasa.
Vai explodir em 15’ 14”.
Daí ela pensa no futuro e nas amígdalas.
O que causa o futuro?
Como acabar de vez com ele?
Unha anestesia xeral pola mañá.
Um minuto antes de os espondeus se transformarem em patas,
ela me pede que verta o Canto 47 para o grego. Sem decantar.

Τι έχει σκοτώσει το μυαλό άθικτο
Αυτός ο ήχος προήλθε από το σκοτάδι
Μπορείτε να ακολουθήσετε το μονοπάτι στην κόλαση

Não é “o que matou”, é “o morto”. Olha, eu não completei o curso e também você pediu sem decantar. O honorável Brer Rabbit era cropofílico, não vai abrir o túmulo pela traição de uma merdinha à toa. Napoleônico não é o meu modelo de vida. Você acha?, ela suspira. Vê a maré baixar e já não consegue dizer uma palavra. A língua grossa de pelos. As velas tremulam em minha mesa esperando não sufocar. Impacientes hoje. Interpreto seus grunhidos tão conhecidos: Me sinto tão só. De uma solidão entalhada na natureza. De uma corrente com bola de ferro. Ela recosta, suas garras imortais raspando o verniz da arca. Logo estará falando da infância nos pântanos de Calcutá, atravessará uma porta e quando voltar será o presente de novo. Uma mulher. Um verão quente em Pequim. Eu descanso os ouvidos. Estamos salvos. Ela não quer a minha morte, acha que eu não preciso morrer porque de certa forma já estou morto. Mas sou capaz de farejar a sua fome. A maldição sob os pensamentos mais leves. O fogo subterrâneo da palha. Não me pergunto sua idade. Para mim tem seis meses, o dia em que a conheci. Sem tempo, sem amigos, sem perguntas. Todas já lhe viraram as costas. Andamos juntos os dois. Faço o que ela pede, manda ou roga. Não imponho condições, nem ajusto parágrafos em minha mente. Inútil dizer por quê. O boi avança cego para o matadouro. Ou para as estrelas. E um dia começa a cantar.