29.4.13

1 poema de Paul Auster





21.

Os ratos despertam no teu sono
e imitam o avanço
da penúria. Minha voz se volta
à fome que dá à luz,
copulando com pedras
salientes de paredões vermelhos: o coração
rói, mas não entende
sua pilhagem, a língua esfolada
raspa. Jazemos
na mais profunda medula da terra, e ouvimos
o sopro dos anjos.
Nossos ossos drenados.
Onde quer que a noite fale,
filhos por nascer espreitam o vazio
entre as estrelas.


21.   
Rats wake in your sleep
and mime the progress
of want. My voice turns back
to the hunger it gives birth to,
coupling with stones
that jut from red walls:  the heart
gnaws, but cannot  know
its plunder;  the flayed  tongue
rasps.  We lie
in earth's deepest marrow,  and listen
to the breath of angels.
Our bones have been drained.
Wherever  night has spoken,
unborn sons prowl the void
between stars.





(Em Unearth, poema de 1974 publicado originalmente com 33 cantos. Houve várias republicações, onde alguns cantos eram retirados pelo autor. Este canto é o de número 28 na versão original; 18 na posterior coletânea Disappearences: Selected Poems, de 1988; e 21 na versão Collected Poems, de 2004, de onde saiu a versão traduzida e publicada no Brasil em 2013. Neste Canto 21, Auster aborda o dilema da geração pós-holocausto: a incapacidade de compreender a dimensão monstruosa do ocorrido e, portanto, a quase impossibilidade de uma empatia, embora o poeta aqui procure uma identificação pós-fato com as vítimas do holocausto (= "o vazio entre as estrelas", stars uma referência à estrela de Davi, sendo assim equivocada a tradução "o vácuo entre os astros" da edição brasileira, que contém outros equívocos). A quem deseja se aventurar na compreensão e tradução da poesia de Paul Auster, recomendo o livro de Andreas Hau, The Implosion of Negativity. The Poetry and Early Prose of Paul Auster,  2010.  Canto 21, tradução livre de Maira Parula, 2013.)




26.4.13

Café de esquina




coco-de-vassoura coco-catulé coco-babão coco-de-iri
olha pra mim e vê se eu tenho cara de quem fica segurando coco.
abre o de caixinha.
a noite me cai do corpo lentamente 
um dia vão publicar toda a tua Luva Completa 
espera só. não acredita?  
pela Gallimard, Flammarion. 
é, a Louvre Complete. 
vejamos mais. que tal a Pléiade...
reclina a cabeça nas ondas
pois é, uma edição francesa não é a Oceania,
mas que influencia, influencia
e o vento nos galhos diz
uma imprensa, que coisa feliz.
um país que tem a enciclopédia do abajur,
já imaginou? Ceci bom.
se até a Meireles achou-se Moisés.
mate-me agora as flores depois
"mate-me agora e pague depois", sentiu aqui?
essa dor que anda em mim,
"esse Dior que anda em mim"
tão de leve que é nada
que linda a arte no Belo Horizonte do provável
falar do sublime sem ser sublime
muito menos bustrofédico.
se o poema ficar uma merda,
você se penitencia no próximo,
tipo não há você sem mim
e eu não existo sem você.
quando está nua, ninguém imagina
o que esconde sob a pele
o cara era um suarabáctico e, acredite,
hoje o chamam de ignorante, usar um
"iguinorante" não tem nada de errado,  ora.
ai que dever, cumprir um prazer
não entendi esse coco.
tá azedo. não quero.
qual é o telefone do Fernando?




25.4.13

Aligia



B tem uma gazza chamada Aligia
uma gazza é uma pega
se você ensinar, 
ela fala o que você fala
ela fala o que eu falo?
fala o que você fala
e por que eu ia querer
Aligia que fala o que eu falo?
quem fala o que você fala
não lhe dá trabalho,
falou a ragazza dona da gazza
chamada Aligia que fala o que ela fala
enquanto fritávamos ovos do Bandeira
na traseira da picape com areia
fazendo umas riminhas 
para não quebrar da cabeça 
o mel de Porto das Galinhas
ainda que mal lhe pareça
saiba quem tem mania de inventar
coisas que a gente ainda vai inventar
 Currais Novos não fica na beira do mar
nem na Lanterna dos Afogados
é pedra feita em casa
no Canyon dos Apertados






Bentwood





Os bares de antigamente tinham cadeiras Bentwood 
que o meu casaco preto cobria até os pés 
C me falava de Lenin 
H me falava de Trotsky 
L me apresentou à cachaça mineira 
o ridículo a discussão a adesão 
as três fases dos grandes movimentos 
dos grandes amores que esquentavam 
as cadeiras Bentwood dos bares de antigamente
















19.4.13

O mundo quer ser poeta







eu me escondo atrás de palavras bonitas
eu me escondo atrás de palavras feias
me escondo com sorrisos
me escondo com lágrimas
eu me escondo no mar tranquilo
ou sob a maior das ondas
eu me escondo
me escondo no banheiro
quando minha mãe vem me bater
e bato um bolo de aniversário
para o meu filho a cada ano
que ele vem me ver
eu me escondo na casa de repouso
que esconde ser um asilo
as pessoas escondem que sou velha
dizendo idosa disfarce de respeito
no jardim lá fora tem árvores velhas
no jardim lá fora tem árvores novas
eu me escondo delas com meus brinquedos
e do cansaço com os mesmos sorvetes
dos meus netos eu não me escondo
porque eles já se escondem de mim
todos se escondem atrás de palavras bonitas
que escondem palavras feias
o mundo quer ser poeta






14.4.13

Dias longos e dias de haicai





Ela chegou bufando do Jockey Club e colocou as pernas pra cima 

Havia despejado as economias no quinto páreo e perdeu tudo 


Tirou as botas e as calças vermelhas 


Disse que o vermelho lhe dava azar e me pediu mil paus com olhinhos rasos d'água


Ia recuperar tudo no pôquer aquela noite, eu ia ver 


Tomou um banho, vestiu amarelo e ficou plantada na porta esperando 


Dei-lhe 500 


Era uma artista de talento 


Aos 20 anos pintava para a revolução 


Aos 30, para comprar pó 


Aos 40 tenta o destino nos jogos de azar 


Todos os anos vai a Las Vegas 


Perde umas 4 telas nas roletas 


Odeia caça-níqueis 


Diz que Mônaco perdeu o glamour e trabalha com cartas marcadas 


Ela divide o apartamento comigo enquanto traduzo poemas de Li Shangyin 


Fã de Maiakovski e Rimbaud, desdenha poetas de gabinete


Mistura tintas de dia, embaralha cartas à noite 


Antes de ela sair preparo um drinque pra nós e desejo boa sorte 


Há dias longos e dias de haicai 


Volto pro meu quarto e fecho a última estrofe.








12.4.13

lambanças de Rimbaud






pertinho da janela
na letra p
para quê
tanto bem isso
tanto bem aquilo
tanto faz
a letra f 
pequenina
do freio
à beira do rio 
telefone
lambanças 
de Rimbaud
num livro corso
disfarçado de amor
serei feliz
e aquele que me diz
pertinho da janela
para quê
a letra p







10.4.13

1 poema de Toyo Shibata



A resposta

O vento no meu ouvido
"Está na hora de ir
para o outro mundo.
Agora. O que acha?"
A voz suave como se afagasse um gato

Então respondi de pronto
"Vou ficar aqui
mais um pouco.
Tenho coisas a fazer."

O vento
de rosto preocupado
parou e foi para casa.



(A poeta japonesa começou a escrever aos 92 anos, publicou seu primeiro livro aos 98 e um ano depois era best-seller,  com mais de 1,6 milhão de exemplares vendidos. Faleceu em 2013, aos 101. Trad.  Maira Parula,  2013)







6.4.13

1 poema de Al Purdy






O poeta morto


Modificou-me na placenta
o irmão morto antes de mim
construindo um lugar no útero
ao saber que eu estava por vir:
escreveu palavras nas paredes de carne
pintando uma mulher dentro da mulher
sussurrando uma débil canção de ninar
que ressoa em meu coração cego ainda

Os outros eram lenhadores
pugilistas do agreste e agricultores
suas mulheres mansas e meigas
deles nada sobrevive
apenas uma imagem dentro da imagem
um fogão, uma chaleira fervendo
-- o que mais explicaria a mim mesmo
de onde essa música vem?

E agora em minhas andanças:
no deslumbre lírico de Alhambra
onde mouros construíram poemas de pedra
um rosto pálido de homem espreita
-- a sombra na caverna de Platão
lembra o pequeno morto
-- e no pálido azul de Samarcanda
as palavras lhe vêm lentamente
-- eu me lembro da música do sangue
na Rua dos Ourives


Dorme suavemente espírito da terra
enquanto dias e noites dão-se as mãos
e tudo se torna uma coisa só
espere calmamente irmão
mas sem contar que isso aconteça
que um grande brado anuncie a ressurreição
espere apenas um frágil murmúrio
de pássaros se aninhando e bosques brotando
a contar suas histórias passageiras
e saberá de onde vieram as palavras


(Al Purdy, em Beyond Remembering, 2000. Trad. livre MP)




5.4.13

"Pega no seu livro" (ponto de Xangô)




PEGA NO SEU LIVRO ELE VAI LENDO
PEGA NA PENA PRA ESCREVER
[refrão]
XANGÔ , KAÔ
SARAVÁ NA UMBANDA SEU ALAFÍ , SEU AGODÔ.

4.4.13

Como é bom pela metade




Como é bom pela metade
Como é bom

Como é bom pelo meio
Como é

Em algum lugar que há
Um macaco pentear
Lavar a lo(u)ça da moça
Como é bom
Em Paris ou em Moscou
To kiss the brow
Do Amazonas ou do Neva
Por Marina Tsvetaieva


3.4.13

Mais longe que o olho






A segunda gaveta da esquerda é a dos botões. Posso pegá-los até no escuro. O gaveteiro tem 30 unidades distribuídas em 5 colunas de 6. Abertura horizontal. Com fendas frontais. Sem emendas. Gaveteiro de farmácia, antigo, anos 1940, refugo da guerra. Ninguém se apresentou no leilão. Eu arrematei. Condições de preservação razoáveis, verniz descascado, algumas empenas e arranhões superficiais na madeira. Mas as gavetas estão ali, trinta, seus puxadores torneados intactos. Não sei por que ninguém quis. É dessas coisas que não se explica. Talvez porque o gaveteiro passou tanto do tempo, que o tempo não vai mais embora.  Não dá mais sombra.  O certo é que estivesse predestinado a mim. À minha cabeceira. Como se eu quisesse guardar ali o que não caberia na minha cabeça. Lixei, pintei. Duas mãos. Deixei secar, que é a melhor parte de tudo. O cheiro da tinta esvanecendo a cada minuto até não sobrar nada. Cheiro bom some depressa. Cheiro ruim só faz aumentar. Não tenho uma gaveta preferida, já que não me fixo na importância do que está lá dentro guardado. Nem sempre o guardado é o que se procura. Às vezes se guarda para não ver. Tem só de estar ali para esquecer. Jogar fora é um risco que você não quer. Lembrança longe aumenta. Começa a imaginar coisas se intocada. Úteis ou inúteis. Não guardo coisas arrancadas ao mar, por exemplo. Dão azar. Cartas de amor, queimei. Que descuido.  Sobrou um bilhetinho de intenso rubor: "C'est une bossa nova que j'ai dansée avec toi." Moedas, ah, sim, moedas. A história contada em aço, pela força da batida. Falo no gaveteiro agora porque espero um telefonema e todos almoçam. Entre paredes de ladrilho, seus olhares não vão mais longe que o olho. Ninguém me vê quando me fecho.