29.5.13

vou seguir a sua boca no meu ombro




vou seguir a sua boca no meu ombro
palato, dentes, lábios e língua
vou seguir a sua boca pelas ruas
as que não precisam de nós duas
vou seguir porque não dá para esquecer
o que ela abre fecha molha e gira
sem precisar de você






27.5.13

de amanhã para ontem


Matar ou ser morto. Tudo se resumia a isso. Às 13:30 o ponto na Drogaria Colombo. Comprar um Melhoral e receber por baixo do balcão o material. O uniforme imaculadamente limpo. Depois correr pela feira entre carrinhos e velhas e batatas-doces. Mostrar a caderneta na porta do colégio. Subir as escadas fugindo das inspetoras. Do ouvido de cada parede. Tira o pé de cima da mesa. Fecha a boca pra comer. Não pega carona com estranho. Não aceite bebida de ninguém. O 1o exercício juvenil na Serra: carabina de pressão, acertar a 20 metros a tampa do poste de luz, sem quebrar a lâmpada, depois sem abrir os olhos. Acertar a três metros a cabeça de um marimbondo em pleno voo. Um tiro só. Missão cumprida. Matar ou ser morto. Os tanques no forte da praia. E passe Sun Tan no corpo. Anselmo me deu minha primeira arma de verdade, e eu nem sabia o nome dele. Refugo do exército, como o primeiro beijo de elevador. Pendurada em matemática e lendo Drummond. A chuva batendo no asfalto. Os carros atropelando a água. Pobreza, injustiça, miséria. Um cinema novo. Cristo na cruz e a Shoá em fotos nas bancas de revista. Falar pelos cantos e ouvir rock. Não confiar em ninguém. Café com leite, feijão e arroz. Salário contado. Um sonho recheado de creme. Expulsar uma tênia de quatro horas dentro da privada. O Jornal Nacional. Traduzir De Bello Gallico mas aprender com Maquiavel. Sem tempo para o medo. A paixão por Valéria: se você dorme com homem também, você é uma homossexual  fajuta. Não sabe o que quer. O Comitê Central está gagá: essa classe média radicalizada mal chega e já quer  pegar  em armas. O poema de Brecht, o teatro de Brecht. Norma e o namorado maoísta pelados na cordilheira dos Andes. Ou você fala  ou eu te arrebento. Queimar documentos. Matar. Ser morto na TV preto e branco. Fotografado pela esquerda e pela direita do Fusca. Ser puta na rua da Relação daria menos trabalho. Travesti na rua Taylor. Pichar o muro dos Marinho e levar um tiro. Passou perto. Domingo Sun Tan no corpo. You've Got a Friend  no radinho com areia. Uma tarde no Cine Jóia. Eu por você faço tudo. Viajar de amanhã para ontem. Matar ou ser morto. Tudo se resume a isso. Marx que se foda. 



25.5.13

Ombrellones de Mildred, Kansas






OMBRELLONES DE MILDRED, KANSAS.

Uma causa e nenhuma sombrinha, uma causa e água o baste, uma causa e um choque do vagão gertrundista, a um sinal do Buda, molha Baco, o saco meu pequeno saco de astúcias, uma cintura cinza e sem fita, isso significa me imita, a perda de uma grande perda a imitação.



(réplica a Mildred's Umbrella, de Ms. Stein)




24.5.13

Estilística, minha primeira aula




A rasura do estilo individual em poli-individual, uma técnica epifânica reativa ao que se passa no mundo contemporaneísta, se espalha e se perde no mundo dos livros pouco a pouco sem que as palavras permaneçam as mesmas – felizmente para nós a língua é uma água-viva -- embora espelhem a mesma vida achatada, onde os personagens que o habitam não passam de borboletas trêmulas ou elefantes no antiquário. Os adictos em literatura, na teia contingencial dos mercados, saguis arbóreos do conhecimento, se expõem nas livrarias, nas editoras, nas redes sociais, em blogs, histerizando um simulacro e exigindo um espaço no território da dominação, onde os negócios chafurdam no lodo da memória ao lado do desassossego passivo e fraco dos agenciadores da palavra escrita. Os leitores, por sua vez, vampiros da esperança num momento de ocaso das ideologias, querem novidades (de preferência para socá-las numa teoria de tudo, que me perdoem os físicos), buscam novos trapezistas do processo narrativo -- não importando se são de idem ou ibidem os malabares -- para que lhes sobreviva o arremedo de cultura que reforçará os pilares de suas estantes domésticas, já roídas pelo analfabetismo filosófico imanente. E ainda perguntam qual o papel da literatura em feiras literárias, convenções acadêmicas, mesas de debates, programas de TV, rodas de pôquer, sensualizando por embaralhamento conceitos de literatura engagée versus literatura blasé. A pandêmica criticose universitária de sempre. Qual o compromisso atual da literatura,  perguntam, mascando chicletes e gomas das Lojas Americanas contaminados de interpretite. Como se para autores e leitores não bastasse o  fogo, a potência de fricção. Não. Têm de recortar o espaço e estabilizá-lo. Homogeneizar, fazer papinha, conteudinagens. Não bastam o assomo poético da página criada/lida, o rastro na geografia do acaso. Repito, não lhes basta o fogo. Ao contrário do que afirmou Kafka,  para nós o importante aqui é que atravessando a luz há restos de palavras.

Discorram sobre o tema em 30 linhas. Têm 2 horas. Boa sorte.






3 poemas de Anna Akhmatova




Alguns vão pelo caminho reto


Alguns vão pelo caminho reto,

outros andam em círculos,
anseiam regressar à casa paterna
e esperar uma amiga do passado.
Porém meu caminho não é reto ou curvo,
levo comigo a desventura,
seguindo até o nunca, o lugar algum,
como um trem sobre o abismo.


Último brinde


Bebo à casa em ruínas,

à vida atroz,
à solidão a dois,
e por ti bebo também.

À mentira de lábios traiçoeiros,

ao frio mortal  dos olhos,
ao mundo cruel e rude,
e a Deus, por não salvar ninguém.

27.06.1934

Palácio Sheremetev


E eu era sua mulher...


Ele adorava três coisas na vida:
pavões reais brancos, 
música ao pôr do sol,
e velhos mapas da América.
Odiava o choro de crianças,
geleia de morango para o chá
e a histeria feminina...

E eu era sua mulher...



(Trad. livre MP,  2013)






Chapéu e bengala à margem do Ouse



tapete
ladrilho
água 
espuma
tapete
ladrilho
terra
grama
pitanga
grama
nêspera
grama
pedra
degrau
pedra
degrau
cimento
lajotinha
madeira
degrau
pedra
pedal
grama
terra
asfalto
concreto
degrau
areia
água
areia
areia
areia
areia
funda
funda
funda
água






23.5.13

Zefiragens








E hoje quando dizes

                                       a  R.V.  


há uma saudade entre nós
que sopramos dentro da xícara quente
para que aprenda a estar quieta

o mundo não mudou
leio em teus olhos
tu mudaste
e hoje quando dizes -- boa noite
a tudo quanto esperei
como se fosse o vento
a apressar nossos relógios
e a fumaça azul do cigarro
já quase nada me falta

encadernada pelo frio das ruas
chegas ao fim do mundo
e andamos mais um pouco



20.5.13

Queda livre



a poeta segura o gato 
o gato não é namorado 
e arranca um botão do seu casaco 
a poeta escreve Bonequinhas do Kremlin
o gato arrasta uma casca de salsichão
a poeta ri do sobrenome 
da mulher
de Lutero: von Bora
o gato vai à janela pegar um pombo
a poeta quando ri escorrega no botão 
o gato despenca 
o pombo voa mais alto
a poeta quer um beijo de cinema 
nem tão obsceno
nem tão doméstico
um peixe seco
na quilha do barco
um deus ocidental
com cilindro de oxigênio

de longe o gato
ronrona a capella





10.5.13

Sem que nada as visse



Em algum lugar do universo há duas luas cegas que não brilham. Duas luas próximas sem sol, e, como olhos que não veem, imaginam o que as cerca e mais além. Quando imaginam, não são outras luas distantes o que veem. Nem suas próprias origens. Para onde vão. Quantas direções tem o espaço.  Ou o que possa enxergar tudo aquilo que enxerga. Aquilo que vê sempre quer ver mais. E mais. O que vê aprende vendo. O que vê sabe o valor do brilho e das cores, e quer também brilhar e ser cor. As duas luas cegas  não sabem que não brilham, não sabem que são cegas, não sabem que são luas, mas por algum motivo sabem que uma está ao lado da outra. Em forma de casa. E se uma delas acha que não sabe da outra, imagina. Aprende imaginando. Uma lua cega imagina se ela é maior ou menor do que a outra. Se é mãe, se é filha. Esfera ou cubo. Qual a mais bonita, a mais cheia de si, e se minguavam ao mesmo tempo. Se havia estrelas. Do lado de qual? E quantas? O que são estrelas? Caracteres de seus nomes? As duas luas imaginárias e cegas que não brilham ficam por lá, suspensas no escuro, imaginando. Criando o universo - como pequenas ilhas. Contando histórias para a terra dormir. O tempo evaporar. Sem precisar ver mais e mais. Sem precisar do claro e do escuro, e de tudo mais que brilha. Foi assim por milhões de anos. As duas luas cegas e tudo que criaram sem que nada as visse ou fosse visto por elas. 



8.5.13

Ceci






2013



4.5.13

Os olhos andam em pares




Tudo que eu acho bonito quero compartilhar. Que alguém ache bonito comigo porque assim estarei sendo bonita também por mostrar algo bonito. Isso foi na segunda-feira.

Comprei um bolo de laranja. Simples. Fôrma redonda com buraco  no meio. Não vou dividir com ninguém e até chego a pensar que esse buraco deveria ter vindo cheio. Falta ali algo que a mim deveria pertencer. Sou assim na terça-feira.

Na quarta, não tenho dilemas. O que é meu é meu, o que é seu é seu. Principalmente se o seu for um pouco meu. Que compartilho o bonito.

O que mais acho feio entre todas as coisas feias eu compartilho. O feio acompanhado da revolta. Um lado meu muito bonito. Pedir vingança em nome da beleza e da justiça. Na quinta-feira eu me purifico e purifico o mundo.

Hoje é sexta e vou sair para ver o que há de bonito e o que há de  feio que o mundo lá fora quer compartilhar comigo. O mundo quer alguém que ache o bonito e o feio que há dentro dele, só assim ele se sente bonito por mostrar o feio e o bonito. Imitando o mundo, escolho um vestido bonito e um sapato feio. Quero os contrastes bem nítidos para me  lembrar de que estou saindo para ver o belo e o feio. Posso voltar para casa com um ou com o outro, mas no fundo sempre espero encontrar o bonito.  Se encontro o feio, eu o retorço até ficar bonito e compartilho com meus olhos, que ficam felizes.

Sonho com coisas ruins e acordo  achando que foram boas. Sábado é um dia de descanso mental. Limpo a casa e cuido do corpo.  Preparo um peixe. Arranco seus olhos das órbitas com uma faca pontuda. Eles saltam na minha mão e os jogo na lixeira. Os convidados chegam na hora e compartilham a viagem que os trouxe até aqui. Eu fico olhando para eles e  sinto um alívio por não comerem os olhos do peixe. Esvaziamos  uma dúzia de garrafas. Empresto um livro. Fecho a porta,  lavo a louça e vou dormir.

Que belo sol! Meus olhos chegam e ardem. Um céu limpo. De um azul-longe. Acho que hoje posso  me dar o direito de fumar um cigarro. É feio. A fumaça queima os olhos. O olho  bom, o olho mau. Um de cada lado. Não os fecho ao mesmo tempo. Domingo é só mais um dia.




1.5.13

E.din




Foi assim, mas para os meus olhos, não. 
Para os meus olhos foi amor à primeira vista. 
Depois aconteceu o dinheiro. 
Tudo que aconteceu foi o dinheiro. 
Pairando nas duas faces das águas: 
imagem e semelhança. 
Um rio informe correndo em abril. 
O número errado do telefone 
que o bêbado disca sem parar antes de dormir. 
Num certo sentido eu era o bêbado. 
No outro, a triste história repetida a garçons invisíveis. 
No começo não contei a ninguém. 
Estava lá o tempo todo e eu olhava 
os bancos, os tapetes, 
a quina das paredes, 
alheia a sua presença hiperboloide
costurada em tudo que havia comprado. 
Eu devia ter adivinhado que 
um pouco mais à frente
já estava comigo 
há muito tempo 
a sua ausência. 
Ele salva a minha vida, 
e larga a porta me deixando para trás. 
Eu continuo buscando, 
ninguém larga um grande amor. 
A porta é de vaivém. 
E assim se fez. 
Não sou a única. 
Não é bom que estejamos sós. 
Sei que não és apenas meu. 
O seu encanto está em dividir-se 
em prazer nas guerras que provoca por sua atenção. 
Nos corpos que se debatem 
sem que ele erga o olhar uma só vez. 
Não matarás ninguém para ficar com ele, 
talvez seja por isso que me veja tão pouco. 
Que economize nos carinhos. 
Que esprema as palavras 
para que lhe devolvam uma só língua. 
Meus pais nem os gansos precisaram 
me avisar de que um dia aconteceria. 
A vida é cerâmica saída do forno. 
Aos poucos eu ia compreendendo 
o leve som do seu movimento à nossa volta. 
O azul, o amarelo, o verde. 
E por que tantas brigas, 
tantas reconciliações, 
os cálices de vinho tinto nas celebrações. 
A cerimônia do chá nas cidades ao lado. 
As famílias. 
Lavrar e guardar. 
A união como quem veste uma roupa. 
O sorriso e a lamentação. 
Quem oferecia o sangue, 
quem oferecia o nanquim. 
Cada rosto emitido por ele. 
Cada passo trilhado até ele 
por ruas com nomes de sentimentos. 
Uma massa de arroz empapado. 
Sua voz meticulosamente metálica 
talhando ali o pensamento. Uma verruga 
que cruza os mares estocando-os em celeiros. 
Rebatendo almas num campo pesado 
para ganhar mais bases. 
Depois de cada partida, 
ele nunca está bêbado. 
Renovado, aproxima-se de mim 
e coloca uma música suave na máquina 
para ouvirmos em casa. Cansada -- eu o beijarei 
até que a última nota escorra pelo mármore.