28.8.13

27.8.13

Pillow talk 1


























Tu comia Gainsbourg ou Sartre? Lógico que o Sartre. Amarrava o velho numa cama Luís XVI e dava uns tapas. Serge eu deixava esticado no chão, um tapete de pele para eu pisar naquela cara c'est la vie qui veut ça. Hemingway eu mandava afiar minha coleção de facas para aprender a não sujar as paredes de miolos. Beauvoir seria minha dentista. Bishop ficaria na cozinha o dia inteiro fazendo ovos moles sem um relógio para calcular o tempo de cozimento. Emily eu colocava de joelhos para rezar Shakespeare de cor à luz do lampião, se errasse começaria tudo de novo. Pound seria a atração principal num picadeiro. Botava encarando um elefante e dizendo um único verso meu, "Digo que te amo para decifrar-te". Pessoa eu pendurava nas costas e saía correndo. Ginsberg e Kerouac, nus e algemados num baú sem maconha, eu jogava em alto-mar e só libertaria se compusessem uma ode ao Pantalassa. Rilke, não sei o que faria com Rilke. Borges lavaria o chão das gráficas do Vaticano. Emerson comeria hóstias até empolar-se. Taí, eu não comeria a Szymborska. Contaria uma piada. Marianne Moore seria meu cisne alfa. Um bondage com Auden. Uma adesividade com Whitman. Com Goethe não daria liga. Para Eliot compraria pantufas. Charlotte eu mandava plantar batatas de paróquia e me deitava nas urzes com a outra Brontë, Emily. Camões, ah coitado. Gil Vicente nas pós-liminares me dizendo, "Senhora, eu me contento", não é lindo? Cummings, de Buffalo Bill, lógico. Chaucer ganhava o meu Nobel, por escrever "yonder" em vez de acolá, e me chamar de "alderlevest". Descasque Dorothy Parker e encontrará uma inimiga, sim, acho que eu dormiria com Dorothy.






23.8.13

Material de construção



Saio do carro, acendo um cigarro
e jogo o maço para cima.
Cara ou morte? Cara.
Entro na loja e vejo modelos de portas sem casa. 
Cada uma tem seu espírito.
Talvez abra um deles para comprar.
Espíritos de correr.
Espíritos pivotantes.
Com fecho e chave -- estes.
Que espaços fecharão?
Onde eu ficar ninguém deve entrar.
Nada deve sair.
Empurra o princípio. Puxa o fim.
Articulados. Venezianos.
Com miolo de vidro. 
Costa de superfície.
Acústicos.
Antipânico --
deslizo os dedos pelas barras.
O frio do metal me acalma.
Pergunto se há amortecimento 
de abertura e retardo de fechamento.
O vendedor joga seu maço no balcão, 
me estende o catálogo e se afasta. 
Cara ou gangrena?


20.8.13

Três peças curtas




 (Fecha os olhos)

diazepam
carbamato
codeína



(Toma-lhes as mãos)

diazepam + carbamato + codeína



(Docemente)

(diazepam + carbamato)codeína



19.8.13

15.8.13

gosto de ver você doentinha



gosto de ver você doentinha
não muito não, pouco
dessas gripes de molezas e descansos
meles e chazinhos
arrepios e suores
sem brigas só carinhos
de três cobertores por cima
vick e limão
um filme bobo na TV sem som
para adormecermos no teu colo
ouvindo Tea for the Tillerman
inteirinho que é todo bom
enquanto o vento esconde o sol
e  planamos até Ocho Ríos
onde passarinhos destampam as manhãs
paramos de trabalhar
e eu volto pra você




10.8.13

Rua Barão de Ipanema




Vejo 24 vultos da minha janela. "No campo de concentração de Majdanek, Kobyla chutava mulheres e crianças com uma bota cheia de ferragens." Meu tio chega da rua e põe Maysa na vitrola. Entra no banheiro e vai fazer a barba. Deixa a porta aberta. Eu fecho a
revista dos anos 1960 e o sigo pelo corredor do apartamento. O que é que foi, Fu Manchu?, ele diz, porque tenho os olhos rasgados. O papa é judeu?, eu pergunto na ponta dos pés para vê-lo no reflexo do espelho. Não, que ideia. O papa é católico, como nós. Os judeus têm um papa?, eu insisto. Não, quer dizer, sei lá. Por que essa preocupação agora? É que se os judeus tivessem um papa nada disso teria acontecido, não é? Nada disso, o quê?, ele quer saber. O genocídio. Ah. E onde você aprendeu esta palavra, posso saber? Na revista. Uma gota de sangue escorre do rosto dele e se mistura com a espuma do creme de barba. Você foi à praia hoje?, ele muda de assunto. Não, não fez sol, eu digo, sentando na tampa da privada. Teu pai chega quando de viagem? Não sei, a mãe deve saber. Onde ela foi? Saiu. Foi na Colombo comprar um remédio. Vovô era italiano? Hum-hum. Ué, mas ele não nasceu na Argentina? Foi, mas era imigrante. Ele veio da Itália com os pais e nasceu no navio que parou na Argentina, depois veio pro Brasil. Então ele conhecia o papa? Chega dessa conversa de papa, o que deu em você? Olha, o disco acabou. Vai lá na sala e bota o outro lado pra mim, tá bom? Tá bom. Em vez de virar o disco, eu o guardo na capa e pego outro. Dolores Duran. Meu tio entra na sala e eu me agarro no seu pescoço com cheiro de loção pós-barba da Atkinsons. Ele me ergue do chão e do seu colo olhamos para o mar. Na beira da praia uma mulher corre ao lado de dois cachorros. Sozinha. Quer dar uma volta na praia? Mas está chovendo, eu digo, virando meus olhos rasgados para ele. E o carro velho do seu tio serve pra quê? Nós dois rimos e a mulher na praia some entre os prédios.



7.8.13

A pesca



Levo Yue para passear de barco no Zhujiang.
Volto sozinho e compro um peixe.

O pai de Yue me leva para passear de barco no Zhujiang.
Ele volta sozinho e vende os peixes.


Na China, só Li Bai é imortal.



2.8.13

3 poemas de Malcolm Lowry



Um lamento - junho 1944

Nossa casa está morta

Queimou até o chão
Em uma manhã de junho
Com o vento da enseada.
O fogo que lambeu
Nosso leito conjugal
Deixou uma garrafa de gim.
Negra sob a lua
Nossa casa tombou.
Vamos erguê-la outra vez
Mas o lar acabou.
E o mundo arde.


O ex-poeta

As toras flutuam na água. Árvores

se curvam, é verde lá, a sombra.
Uma criança passeia no campo,
há uma serraria, através da janela.
Conheci um poeta que veio com esta:
o amor não acabou, só as palavras de amor,
disse ele. Acabaram-se as palavras
Que teriam descrito aquele navio.
Cores vermelho-chumbo nunca sobressaem
no pôr do sol lívido do Cabo.
Eu disse que isso era bom também.
Ele sorriu, respondendo: um dia
vou deixar este lugar como as palavras me deixaram.






Sem tempo de parar para pensar


A única esperança é o próximo gole.
Se te apetece podes dar um passeio.
Sem tempo de parar para pensar,
A única esperança é o próximo gole.
Inútil titubear no limite,
Pior que inútil é falar.
A única esperança é o próximo gole.
Se te apetece, podes dar um passeio.



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(Em The Collected Poetry of Malcolm Lowry, UBC Press, 1992, Canadá. 
A primeira imagem é da cabana dos Lowry na praia de Dollarton, 
norte de Vancouver. A cabana incendiada. 
Trad. livre Maira Parula, 2013.)