Talvez eu devesse voltar a
beber. Não existe um caminho melhor para chegar a mim com vida. Faço esse
apontamento no último dia do ano aqui fora onde há verde, seco, quente. A
gigantesca pedra riscada, uma montanha apontada para o alto, é onde toda trilha
acaba. Vou andando e vou escrevendo, as letras saem tortas e xingo a claridade
da manhã sobre o papel fazendo do que digo pontinhos brancos de quem fecha os
olhos para o sol. A montanha é um presunto pendurado no horizonte. Me dá
vertigem escrever em movimento. Os fogos de artifício disparam desde o começo
do mês e hoje cedo. Estes fogos não têm sentido. Sua combustão, explosão, fulguração
e espanto traem uma ansiedade por um futuro às pressas que ninguém sabe ou prevê.
A bucha de uma ilusão. Um obus contra a cavalaria pesada de destinos já traçados. Contra o Deus recém-nascido, igualmente celebrado. Menos doloroso é imaginar a cidade bombardeada em uma
guerra real que ninguém começou. Isto me deixa em paz. Talvez eu estivesse então bebendo
num abrigo antiaéreo, abraçando meus irmãos, preparando uma reação, em vez de
parada no caminho, a tranca do silêncio na boca, esperando a girândola de 234
tiros acabar o seu espetáculo de felicidade fictícia e programada acima da copa das árvores. Meu cachorro persegue um
filhote de muçurana, morde e o divide em dois. O corpo sem vida fica se sacudindo
e anoto estes apontamentos porque o mundo espera que tudo será melhor no ano
que vem. O ano que vem é apenas amanhã. Olho outra a vez a montanha, uma
caçamba de pedras que o tempo colou ano após ano até ficar na altura desejada. Acima
de todos. O bar fica logo ali adiante. No bar vendem fogos. É com um êxtase
vertiginoso e febril que compro todos os foguetes de cores disponíveis. Um
velho fungando me serve a bebida que pedi. Brinda sozinho o ano novo. O calor
mantém meu corpo inchado, molhado. Volto pra casa subindo o caminho de pedras
soltas ainda sem futuro definido. Podem se esfarelar ou virar uma montanha. Meus pés doem como se caminhasse de joelhos. Tudo é feliz ano novo. Todos são feliz ano novo – e uma funda lata de cinzas.
31.12.13
27.12.13
Pierre ontem à noite
Não falou muito. É sempre assim. Não falamos muito.
Como animais de companhia um do outro.
Ceamos.
Ouvindo a pressão de braços sobre a mesa.
Da mesa nas tábuas do assoalho.
Do bordeaux mareando nas taças.
Pensamentos batendo nas vidraças, costeando intenções.
Uma perna de carneiro bem assada.
Folhas mortas perdendo altura.
Há um grande carvalho no bosque.
Lobos.
E um cofre no gabinete.
Moramos aqui há muito tempo,
desde que nos casamos na Saint-Roch.
Não, senhor, não sei dizer se Pierre tinha inimigos. Ou amigos.
O alfarrabista talvez. Sr. Lioret, ou outro.
Pierre não fala muito.
Mesmo quando escreve. Cartas comerciais, suponho.
Dormia tarde, absorvido pela leitura.
Pelo cachimbo.
Não saberia dizer a que horas nos recolhemos.
Eu sempre me retiro antes.
Não, nenhum ruído estranho.
Eu tenho o sono leve.
Ninguém poderia entrar nesta casa sem que eu ouvisse.
As janelas são altas. Gradeadas.
Uma cozinheira, a lavadeira, dois criados de quarto, um cocheiro.
Pierre me mandou dispensar a todos no mês passado.
Não sei o motivo.
Pierre não fala muito.
E uma boa esposa não deve fazer perguntas.
Deve saber ouvir o marido sem precisar que ele fale.
Só quero enterrá-lo condignamente, ele me disse ontem à noite.
25.12.13
Amor de mãe
Como chove. Espero a chuva passar para lhe comprar meus presentinhos de Natal. Não esquecerei das suas vacas, mamãe. Elas também são filhas do Altíssimo. Mas como o dinheiro anda curto, meus regalos a todas não passarão de 2,99. Não esqueci da sua roçadeira, mas por enquanto acho que só poderei lhe dar um ancinho. Não vejo a hora de poder abraçá-la neste Natal. Ainda não entendo por que a senhora precisa morar tão longe dos seus filhos e netos. Nessa casa tão fria e solitária. A vovó, que Deus a tenha, deve achar que não cuidamos da senhora. Pena que não possa morar conosco, a senhora sabe que aqui é tão pequeno. Não cabe mais uma cama, que dizer vacas. Falando nisso, o Aliomar manda beijos, os meninos também. Na verdade o Norinho está febril há dias e acho que não passaremos o Natal com a senhora. É tão triste isso, nossa família desunida nesta data tão bonita. Eu mesma me sinto fraca sem meus biotônicos. Afora isso, temos muita saudade e lhe desejamos um Feliz Natal. Da sua filha que te ama
Odete
Laura, minha filha, a roçadeira eu já comprei. Deixe o espírito da sua vó em paz que onde ela está já não acha mais nada. E não se preocupe comigo: eu odeio Natal. As vacas estão bem e desejam a todos um Feliz Natal.
Com amor da sua mãe
P.S. Tem notícias da Odete, aquela vagabunda da sua irmã?
Com amor da sua mãe
O tempo e o vento
comprei uma Rua da Padaria
nas Casas Bahia
de tanta nostalgia per il mare della Bastia
por 3 vezes com juros de 0.99 ao mês
adicionei à lista de casamento da
minha ex
o Tempo e o Vento pra ela
esquecer de mim
um aparelho de pressão pra hora
de dizer sim
& um exaustor axial pra
refrescar água mineral
a estante BRV foi só pra eu me
pendurar com você
na mesinha Vamol de patinar velhos poemas com sol
24.12.13
Pasolini
Sexo, consolo da miséria!
Sexo, consolo da miséria!
A puta é a soberana, seu trono,
uma ruína, sua terra, um pedaço
gramado de merda, seu cetro,
uma bolsinha de verniz vermelha:
uivando pela noite, suja e feroz
como as mães do passado,
ela defende seus domínios e sua vida.
Os cafetões sempre por perto,
inchados e abatidos com seus bigodes
brindisinos ou eslavos, são
os chefes, os regentes: combinam
no escuro o preço de cem liras,
piscando em silêncio, trocando
palavras secretas: o mundo, excluído, cala-se
diante dos que o excluíram,
carcaças silenciosas de aves de rapina.
Mas do lixo do mundo, nasce
um novo mundo: nascem novas leis
onde não há mais lei, nasce uma nova
honra onde a honra está na desonra ...
Nascem o poder e a nobreza,
ferozes, no amontoado de casebres,
nos lugares sem fim onde achamos que
que a cidade termina, mas é onde
recomeça, inimiga, recomeça
milhares de vezes, com pontes
e labirintos, fundações e escavações,
atrás de uma tempestade de arranha-céus
cobrindo horizontes inteiros.
Na facilidade do amor
o miserável se sente homem:
constrói sua fé na vida
e despreza quem vive diferente.
Os filhos se lançam na aventura,
seguros de estar em um mundo
que os teme e ao seu sexo.
Sua piedade está em serem impiedosos,
sua força, na leveza,
sua esperança, em não haver esperança.
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("Sesso, consolazione della miseria!", trad. Maira Parula, dez. 2013.)
22.12.13
Mario Peixoto
Eu já conhecia alguns poemas esparsos de Mario Peixoto, autor do filme "Limite", obra-prima do cinema brasileiro. Porém só há alguns meses comprei num sebo "poemas de permeio com o mar", livro publicado pela Aeroplano em 2002. Como quem me conhece sabe, sou fã de carteirinha de Mario Peixoto. Pois bem, na pág. 189, onde se lê o poema intitulado "Poema Inquieto (A chama e a vela)", o organizador da coletânea coloca um asterisco na palavra "laceado" e abre uma nota de rodapé dizendo "Não registrado no Aurélio". De fato o Aurélio não a registra. Mas, bolas, desde quando uma palavra não registrada em qualquer que seja o dicionário não existe? É poesia, e poetas ou romancistas podem inventar o que quiser. Qualquer um pode inventar a palavra que quiser. Além do mais, foi um erro grosseiro, pois a palavra na verdade existe, é o particípio de "lacear", que significa afrouxar. É de doer. Um dia esse povo ainda publica Grande Sertão:Veredas com as malditas notas. Edição comentada é outra conversa. Algumas obras precisam deste recurso, principalmente as antigas, cujo vocabulário se perdeu no tempo. Tenho uma edição portuguesa comentada dos Lusíadas que é uma beleza. Meu coração se contenta.
18.12.13
3 poemas de Hemingway
Junto com a juventude
A pele de porco-espinho,
dura e mal curtida,
isto deve ter acabado em algum lugar.
A coruja-da-virgínia empalhada,
pomposa,
de olhos amarelos;
Uma viuvinha num galho torto
coberta de pó.
As pilhas de revistas velhas,
as gavetas com as cartas do garoto
e o verso de amor
devem ter acabado em algum lugar.
O Tribune de ontem foi-se embora
junto com a juventude
e a canoa em pedaços na praia
no ano do grande temporal
quando o hotel pegou fogo
em Seney, Michigan.
Montparnasse
Nunca há suicídios de pessoas que conhecemos no nosso quarteirão
Suicídios que deram certo;
Um garoto chinês se mata e morto fica.
(e continuam colocando sua correspondência na caixa postal)
Um garoto norueguês se mata e morto fica.
(ninguém sabe onde o outro garoto norueguês foi parar)
Uma modelo é encontrada morta
sozinha na cama e morta fica.
(o que deu um trabalho quase insuportável ao concierge)
Azeite de oliva, clara de ovos, mostarda e água, espuma de sabão
e sonda estomacal salvam as pessoas que conhecemos.
Todas as tardes podemos encontrar alguém que se conhece num café.
Nunca confie em um homem branco,
Nunca mate um judeu,
Nunca assine um contrato,
Nunca alugue um banco na igreja.
Não se aliste no exército,
Nem se case com muitas mulheres,
Nunca escreva para revistas,
Nem coce sua urticária.
Sempre cubra o vaso com papel,
Não acredite em guerras,
Mantenha-se limpo e arrumado,
Nunca se case com prostitutas.
Nunca pague um chantagista,
Nunca processe ninguém,
Nunca confie em um editor,
Ou você vai dormir na palha.
Todos os seus amigos vão te deixar
Todos os seus amigos vão morrer
Então, leve uma vida limpa e saudável
E se junte a eles no céu.
(Tradução de Maira Parula, dez. 2013)
Uma outra história para
Eu queria escrever uma
história para sumir
uma história para sumir entre um acorde e outro de viola da gamba
esvaecida
na frente entalhada, fundo plano e baixa tensão
nada me veria sumir
nem o pio da coruja
nem Iracema no ar parado entre uma Iracema e outra
uma
história para descer do andaime da escritura
com as pernas moles do pensamento sobre o vazio
para
sumir do um que se torna dois, quatro e oito
uma história sentada sozinha na esquina dos sentidos
com uma garrafa de mercúrio evolando no ar
nada nos veria sumir entre os restos de papel
17.12.13
Dostoiévski para infantes
Notas de um Tatu
Eu sou doente. Eu sou mau. Sou rancoroso e repulsivo. Ao diabo subterrâneos e subsolos. Acho que humanos também são doentes. Eu os conheço bem, eu sou um tatu. É por baixo que se conhece tudo melhor. Mas não vou falar dos homens. Um tatu decente só fala de si mesmo. Tenho o fígado ruim. Como se carregasse todos os fígados do mundo. Pouco importa. Eu tenho língua. Garras afiadas. E com elas me entendo bem. Não preciso de veterinários. Não poderia pagá-los. E baba não engorda poupanças. Sou da família Dasipodídeos, origem grega. Invadimos a África. Depois as Américas. Vejo gente de longe. E até do meu buraco gente é o que de mais burro existe, além de minhoca, larva e mandioca. Não me amarguro por não ter dentes na frente. Os de trás me servem ao gosto. Meu propósito na vida é usá-los para moer o que quer que seja. Cupins de uma rabeca, monumentos históricos, xícaras de chá com açúcar, o baço insepulto de cavalheiros, damas e sacerdotes católicos. Triturar o consciente e o inconsciente. Cordões umbilicais jogados no lixo. Segredos das bonecas sujas de crianças rotas. Em Portugal chamam-me armadilho. Prefiro. Tatu é tupi. Tupi é tatu. Como me distinguir? Dasipodídeos quer dizer pés peludos. Assusta. Não o suficiente, pois no dia em que me dizimarem, os humanos sufocarão numa nuvem de insetos e o mal de Lázaro varrerá a terra. Subterrâneos e subsolos. Não haverá tempo para remorsos ou vergonha. A toca teria de ser muito grande. Já no meu buraco cabe só eu. Recebo visitas, mas toco todos dali depois do acasalamento. Aglomeração me dá convulsões. Uma falta de ar convicta. Visito outros buracos quando me convocam pelo cheiro ou assobiam de madrugada. Como dizem os homens, tenho uma aeromoça em cada porto, acho que foi assim que meu avô me contou. Vô Dasi nasceu no Marrocos e se entocava no porão do Rick's, um pardieiro de bêbados clandestinos. Quando começou a comer passaportes falsos, o dono tocou nossa família de lá a pontapés e concretou nosso buraco. O tal de Rick acabou virando herói de uma peça jamais encenada. Imigrante na América, meu avô nos contaria isso entre outras coisas muito tempo depois, ele e sua mania de conviver com humanos que jogam sueca. A família sempre nos ensina alguma coisa quando não nos destrói por completo. Não sei quantos anos tenho. Tudo me parece como da primeira vez. Aprendi com os tatus russos que viver demais é falta de educação. Conheci alguns deles quando morei no México. Davam-me pena. A vida é muito cara em São Petersburgo, viviam dizendo. Uns avarentos. Não sei qual a diferença entre um besouro russo e um besouro mexicano, se é isso que eles passavam o dia comendo e não rublos. Tatu que se preze tem nojo de dinheiro. Alimenta-se de histórias e humanidade. De momentos propícios para roê-las, mesmo que se sinta a cada dia mais pesado. E um dia os caridosos de bodas e batizados hão de querer salvar a nossa espécie porque somos importantes para o ecossistema. E conseguirão. Tomarão um copo de leite quente antes de dormir, apaziguados. Eu ainda estarei no meu buraco. No porão, no sótão, na garagem. Subindo as escadas. Livre de subterrâneos e subsolos. Entrarei no quarto e me esconderei nos seus sapatos. A felicidade me subindo do coração à garganta, tilintando seus talheres.
maira
14.12.13
Minha carne
13.12.13
prova de ternura
O corpo sobre a mesa
me diz que posso vomitar
ou pensamentos de morte pensar
fico remando
de uma coisa a outra
o doutor com mãos perfeitas
ia cortando e enchendo travessas
lembravam uma namorada que tive
chegando em casa com o sangue
ainda quente num saco plástico
seu frango ao molho pardo
era uma prova de ternura
faz tempo
8.12.13
A mosca
O poeta é a mosca da cabeça branca
que ataca meus tomateiros
sua pulvurulência branca
de asas membranosas
de boca que pica e suga
a seiva do que não se nomeia
se espalha pelos restos da cultura
formando focos de sobrevivência
perpetuando sua peste
em voos de rinoceronte
apodrecendo feijões
com suas luas estrelas versus rimas
solidão amor coração e morte
flores casa estrada céu e sol
cortinas arco-íris borboletas
chuva lilás lágrimas sorriso (cetim)
ais sim e nuvem muita nuvem
véus ambrosia mel e abelhas
peito saudade amor e dor
paisagens vertigens paraísos
perfume rosas portas janelas
agonia febre mistério
sentimento azul vazio
ondas pássaros amor amar
amar amar e amar
teus olhos teus olhos (bronze)
vento ventania vinho virtude
mundo solidão longe perto fim
e assim num fim que não tem fim
que foi um ser humano como você
a mosca da cabeça branca
injeta sempre suas palavras-vírus
e migra para lavouras não findas
que essas
muito mais que lindas
não ficarão
3.12.13
Se eu te disser
Nasci
no Tijuco, mas poderia ser Bruxelas, no Tijuco de Bruxelas
De algas velhas despedaçadas num canal estreito entre dois mares
Há
dias em que a minha felicidade não passa de um papel úmido
Na
noite de um hotel sujo em que escondo o verso mais completo
Com
a tristeza de águas perdendo o equilíbrio
Da
escuridão da escuridão do dia como aquele dia
Tenho
saudade de tudo perdido nos gastos
Objetos
que leio e me cercam e talvez me servissem
Não
vejo surpresas em coisas que de fato veem a mim
Os
dedos têm algo a confessar e me pergunto se uma noite será o bastante
Para
encher três bacias enferrujadas de manhãs cobertas até o peito
Relembrando
o impacto de um repouso em desordem pelo chão
Sonhando
ao lado de insetos moídos pelo tempo
Eu
nasci no Tijuco e havia papagaios
Havia
o depois
Quase
um tema musical
E a
hora do almoço
O
hoje que corre comigo
Como
as coisas aconteceram
De
passos apertados e uma dor nos quadris
Havia
o Tijuco e o meu cansaço
Suspensos
no convés
Como
um perfume que se repete
Porque
sabe que nunca mais vai voltar
Os
laços de fumaça rodando no travesseiro sob o rosto
Havia
um bicho dentro de mim saltando a bombordo
Daquelas
frases sem sentido e imóveis
Em areias embutidas
Ele
ficará dormindo
Por
onde quer que eu não esteja
Irá
pensando
Ao longe
Se eu
te disser
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