30.3.15

Aurora quer um poema de amor





Aurora

quer um poema de amor


Agora


vou tomar banho


Aurora


quero um poema do teu amor


Agora


preciso cortar o cabelo


Aurora


nem, sente aí vá


Agora


mas minha filha


Aurora


e seus passos airosos


Aurora


de uma braça e meia de chão


Aurora


meu braço de rio salgado


Aurora


sob punhos de rendas


e espadas de têmpera de Toledo


Aurora


meu arruamento


até o cemitério da Boa Sentença


Aurora


meu sítio do Boi-Só


na curva do Quero Porque Quero


Aurora


sou o beco das tuas mercês


tua Sodoma de cem-réis


Aurora


por ti os oito canhões de minhas Argéis


Aurora


posso tomar meu banho


Agora?


por ora por ora





27.3.15

27 e outros dias



você está com sono. 
as palavras veem numa marola atrás da outra. 
você não levanta para pegar a caneta. 
e dorme. 
a água recua. 
na manhã seguinte não lembra. 
só vê espuma. 
você entre as demais bolhas. 


24.3.15

am

19.3.15

Hugo Hodelín Santana




O pó da estrada

Ser humilde pode ser pecado.
Teus sapatos furados farão
com que um zé-ninguém te abandone à zombaria.

Ser humilde pode ser um crime.
Contra o olho que vê e não vê o que vê.

Ser humilde pode ser uma bomba-relógio
nas mãos do delírio.
Uma sabotagem
que não permitirá que passes do lobby
e da incessante recusa de água e da quota de cerveja.

Mesmo que tenhas feito teu melhor poema,
a fome do dia deitará no teu estômago,
como uma mulher carinhosa,
de uma forma cruel e perversa.
Quando só o silêncio for o teu filho e cúmplice.



(trad. Maira Parula, do original "El polvo del camino", 2015.)



15.3.15

Venetian blinds





foi por trás de janelas venezianas 
que vimos tanques cruzando copacabana

foi por trás de janelas venezianas 
que respondemos com minibazucas
e retóricos thunderbolts revell

por trás de janelas venezianas
achamos que tudo seria fácil
o lenço que prendia seus cabelos 

por trás de janelas venezianas
você me disse como escapar
do poder de parada do futuro

foi por trás de janelas venezianas
que depois acenou e sumiu na areia
quatro vezes pelas costas



15.03.15



11.3.15

Roteiro sentimental da luz



Minha coleção começou na primeira vez que seus dedos amassaram meus peitos como em uma bancada de nhoque. Só que meu tabuleiro não era lugar de farinha. Dois golpes curtos. Dois segundos. Os gritos de rotina e meia hora para chegar na estação ferroviária. A nova casa tem um quarto só para colecionáveis. Um armário de aço, uma mesa com rebaixo, banquetas, potes de boca larga. Não procuro peças, elas acontecem. De algum modo sinto até que elas é que me buscam. Não paro para interpretar o que sinto. A preocupação maior é com a correção da coleta, acondicionamento e transporte. Depois de todo esse tempo, consegui uma variação fascinante. De formas, tamanhos e cores. O gesto parado no ar. Ou misturando cores na paleta. Dobrados ou esticados. São acusatórios, súplices, aterrorizados, indolentes, impertinentes. Unhas quebradiças, decoradas, fúngicas, roídas. O faiscar de uma joia. De uma artéria. Dentro de seus potes transparentes, ouço-os tocar "Now He Sings, Now He Sobs". Uma pequena provocação. Chick não é dos meus preferidos, mas entendo a mensagem. Peças brutas querem me convencer de que podem executar estruturas melódicas complexas. O que não me impede de cantar pela casa. Preparar um sanduíche e recostar-me no sofá da sala. Baixo o volume. Cada objeto ali fala comigo. Engana-se quem acha que não nos relacionamos com cada peça que colocamos dentro de casa. Enquanto faço estas anotações, na verdade estou pensando no formato dos vidros de meus perfumes. Fecho os olhos e falo com eles – Creio na alma, até na do cipreste. Um soneto. E fica tudo escuro. O que me lembra lanternas. Apesar de muitas tentativas, não tenho qualquer que me seja útil numa emergência. Preciso de uma lanterna profissional, como a dos técnicos em eletricidade. Uma boa lanterna faz toda a diferença. Tudo é uma questão de luz. O roteiro sentimental da luz. Desde o sol ao abajur de canto. Dedos que acendem faróis. Batem na porta. Na cara de alguém. Entram no corpo. Assinam contratos. Retalham notícias. Contam cédulas. Aplicam 5 gramas de tiopental de sódio. Abrem gavetas. Armários de aço. Tateiam as paredes do seu corredor. Aumentam o volume. E apagam a luz.




           


10.3.15

Abnormal



toda criança é louca
todo adolescente é mala
todo adulto é grana
todo velho é tara

toda árvore é triste
toda palavra figura
toda tristeza existe
toda noite é escura

todo poeta é velho
todo círculo parélio
toda morte é lenta
em que dia caiu 13 de maio de 1980?


6.3.15

A Pôem






Você se lembra do Arnaldo? 

Aquele que tinha um barzinho onde toda gente usava chinelinho descontraído. Daí arrepiávamos e íamos correndo no seu carrão preto para um armazém da avenida Brasil. 

Lembra de você me coçando as costas quando eu alucinava estar deitada nas urtigas das Highlands? 

Você até hoje não reparou que sou mulher. 

Na hora do almoço, ele tem mania de lavar a comida. Não é colocar tudo em pratos limpos não senhor,  é lavar a comida mesmo, com água e sabão. Nunca vi isso. Espero estar olhando para a pessoa certa. O meu mestre. O Livro. 

Um baita pernilongo amassado cai de repente em cima da frase "um recente inquérito", justamente num artigo sobre peçonhas e lugares. 

Estou divagando num lótus completo. A ponta da língua atrás dos dentes superiores. Meus lábios cerrados num sorriso muito sutil. A ideia é meditar, mas divago. Não há sonolência possível com este chão frio. 

Não tem ninguém aqui. O templo está vazio. 

São bonitas as pedras hexagonais do piso, mas poderiam ter polido. Sinto a bunda dormente, a pele ralar. Se essa dormência na bunda servir para canalizar minha energia a centros mais elevados, Shakyamuni não tem do que reclamar.

Uma ave de agouro guia minha mão. 

Este templo já foi hospício. Acompanhei as obras de perto. Fiz questão. Nada foi derrubado. Trocaram as paredes de lado, os banheiros se mudaram para a ala esquerda, o quarto-forte hoje é uma sala de ikebana. 

Minha bunda é um subpronome do caso reto. Dou uma gargalhada sutil. Faz eco. É o prajña. 

Eu queria tanto me deitar nos trilhos com espuma de memória da Imperatriz Leopoldina. Estou dolorida. 

Passo para meio-lótus. 

Arnaldo me deu uma carona para o templo. Ele não dirige mais com chinelinhos descontraídos. Vendeu o bar e fez direito. Advocacia, quero dizer. Passa o dia no fórum do Antônio Carlos, me disse. Esse Antônio Carlos eu não conheci, não é do meu tempo. Avenida Antônio Carlos! Arnaldo está nervoso. Devia passar uns dias comigo no templo para dormitar a bunda. Fincar suas raízes na Índia. Mas sei que não é todo mundo que oferenda a bunda ao mestre. É difícil, concordo. As pedras hexagonais não são polidas. A comida é lavada. A meditação leva uns trinta anos liliputianos. E Arnaldo é do tipo que ajuda mais a si próprio do que aos outros. É o que o mestre chama de hinaiana, que significa veículo pequeno. O carro dele é pequeno mesmo. Um benjoim. Uma lata. Saí com dor nas pernas. Hare Rama. 

Passo para a posição birmanesa. 

Sinto um pouco de alívio nas nádegas. Redobro minhas esperanças. Acho que a meditação pode chegar a qualquer hora. O meu mestre não apareceu hoje. Gosto de ver aquela cara dele em estado de graça. Ele senta reto nas pedras e rala mesmo. Não sente dor, como se o traseiro estivesse em Porto do Capim. Ai de mim. Sou uma iniciante, preciso aprender muito com ele. A vida é feita dessas precárias alegrias. Arnaldo.







Hotel Casablanca, 6 de março




Estou ficando farta de ver caras vintage, rabos vintage, arte vintage, periquitos vintage, hollywoodidades, bizarrices vintage — bondage vintage. Poderia haver aqui umas gotas de nostalgia do futuro. Estou cansada do meu neurônio vintage, esta condutibilidade ao passado vivido e não vivido. Vontade de explodir este blog com uma granada da Crimeia. Por que ser diferente? Se é que havia granada na Crimeia de Todas as Crimeias. Eu já sei mil vezes que seu pai era russo e inteligentíssimo. Que seus ex-maridos foram torturados. Você fala isso sempre com aquela expressão de primeira vez. De grande segredo. Até o marceneiro da rua sabe. Você não viu, mas a história da sua vida ele reduz com uma serra tico-tico sem deixar uma rebarba. Procure quem não sabe. Nas suas fotos em sépia de famílias vintage alheias deve haver alguém. Hoje não é um dia bom. Ontem foi pior. Quando se dorme com um choro engasgado, um choro indeciso entre a traqueia e o esôfago. Tudo que eu quero é aprender a fazer um khachapuri bem gostoso pra você, nem mais nem menos. Mas se você me diz que gosto mais das coisas do que de você, eu quebro ou rasgo o que for para provar que não. Dramático, hum? Magnanesco. Ontem rasguei 2 livros meus — antigos, de poetas antigos mortos antigamente — num momento de alta tensão. Não me arrependo pelos livros. São coisas, posso quebrá-las. São minhas veias, posso rompê-las. Já o cansaço. O cansaço de tudo vem a miúdo. Disfarçado ou à paisana. Fica no canto do quarto me olhando por trás do jornal aberto. Não conheço seu rosto. Um chapéu cobre os olhos. Não poderia ser diferente. O cansaço é um detetive noir. 





5.3.15

Seis poemas




Ao ler seis poemas tenho de tomar bastante cuidado.
Ajeito os óculos na ponte do nariz.
Procuro a distância correta.
Recolho as roupas no varal:
O barco estava bem quente.
Hoje foi um dia cheio de gordura. Imenso.
Como uma pocilga bêbada de açúcar e mel.
Mas no fundo do nada há uma cratera de amêndoas.
Só você não vê.
Esquece dos acentos e toma de falar do pai.
Do pai.
Sempre do seu pai & de um pintor famoso.
Chamo de senhor o meu porco.
A paisagem de granizo.
E a minha loucura se curva mais um pouco na cama.
Acendo um cigarro e os ovos saem pelas ruas.
Nada disso faz sentido nem tempestade.
É claro que você tinha de botar deuses nos poemas.
O que seríamos sem deuses, ambulâncias e ninhos de elefantes?


sob brincos azuis de Oaxaca






Eu não devia te comer,

mas essa lua,

mas esse cunhaque.




[inside poetry joke]






2.3.15

Largo da Gameleira






A solução na vida de um homem está em ele viver de pé, ou deitado.
Sem meio-termo. Como esse pombo.
Pra lá e pra cá enquanto houver dia para destrinchar.
Você acha que não estou te vendo, capitão?


no peitoril da janela mais alta 
do prédio mais alto da sua rua
ainda ontem um terraço no Largo da Gameleira
o pombo aguarda o meu miolo de pão
um pombo abnegado
apóstolo da carreira que abraçou 
-- ser um pombo morto de fome dos arranha-céus
das cidades onde vim parar

sem interesse nos farelos noturnos
dos papéis que formam minha mesa --
uma seleta de poetas capixabas,
o pombo equilibra-se
olha de lado os olhos vermelhos
dos planos que fiz de coca-cola com maçã,
as ferragens do serviço de viver com pouca sorte

eu me equilibro no ombro dolorido 
e estendo na mão um segredo que não digo
o pombo oscila no céu pendurado
esse pombo abnegado
e oscilamos contra a luz
o vento das obras de nosso cais artificial --
algo em nós dois quer conquistar o meio do mundo
o sol quase posto


não me olhe assim, capitão,
como quem vê, 
não combinei nada com você