31.8.15

Ela tem vinte anos e é minha mãe


Ela tem vinte anos e é minha mãe.
Entra no armazém, pede feijão, arroz, batatas, ovos e farinha.
Não é tempo de gastar.
Sua aliança de ouro arranhada a fina pulseira
de argolinhas não faz ruído algum quando ela ergue
a mão para ajeitar os cabelos lavados e revoltos.
Minha mãe tem um leve cheiro de sabonete Phebo.
Hoje parece aflita.
Olha as unhas, consulta o relógio.
Olha por cima dos ombros, o beco
vigia a entrada da loja, o pedestre na calçada,
como se temesse estar sendo seguida.
Nervosa, está mais linda do que ontem.
Não, está mais linda do que nunca.
Lábios grossos um batom discreto.
Olhos castanhos sem maquiagem,
olhos de quem se apaixona por suicidas.
Inclina-se para escolher as batatas mais bonitas.
O seu António espera ao seu lado, paciente, cansado,
o saco de papel pardo na mão.
Escolhidas as batatas, ela dá as costas e esfrega
as mãos uma na outra para livrar-se da terra.
Eu tenho vinte anos e trabalho neste armazém
muito antes de ela aprender a beijar  
casar e vir morar nesta rua.
Uma casa de um branco marmóreo
flores selvagens ao pé da  janela sempre fechada,
contou-me seu António.
Ela recebe o troco de minhas mãos trêmulas
e me retribui com um sorriso triste.
Não nos tocamos.
Não trocamos uma palavra.
Amanhã ela voltará aqui para comprar 
algo que esquece todo dia. 
Todo dia é a mesma coisa.
Um balcão nos separa
e sei que nunca seremos amigas.




29.8.15

[Eu vou botar Sérgio Sampaio num blog coletivo de poesia]






Eu vou botar Sérgio Sampaio num blog coletivo de poesia
Eu vou botar o bloco na rua de um blog coletivo de poesia
para todos os poetas sérios que pensam que onde estiveram,
o que escreveram e o que publicaram têm importância 
na formação de um gominho de tangerina

Eu vou botar o bloco de Sérgio Sampaio na rua 

porque o juiz saiu de casa para matar você 
e eu não pude evitar não pude salvar você 
o telefone não completava a ligação
eu queria mijar
meu deus, eu só queria um mijinho
e naquele mundo não havia banheiro
naquele mundo havia quartos muitos quartos
cheios de roupas de fantasia
eu morri de medo
colunas de ferro de medo onde me apoiei
e manchei de ferro a camiseta branca
naquele mundo não havia rotativas rugindo
que fazem o meu corpo arrepiar de prazer
naquele mundo
não publique fotos minhas
nunca lhe dei esse direito
não publique fotos 
da mulher que fui
e não existe mais
não reproduza palavras que eu disse aos 20 anos 
porque não são mais minhas palavras
são sirenes de ambulância da tua memória
eu não sou mais assim
ponha isso na tua cabeça
eu não me conheço mais
eu estou contando as horas
e quem sabe o fim da história






27.8.15

Repare que a cinza cai






aquele garoto que era meu amigo
hoje não é mais

as coisas são no exato momento

em que acontecem

depois o ponteiro salta
cada um é sete por semana

mesmo que não morresse
ele não seria mais meu amigo


enquanto fumo
a poeira brilha na luz
sua face voltada para o sol
evola e se acomoda
sobre todas as coisas
que um dia fui
para o garoto que era meu amigo


uma lembrança não é o retrato fiel

uma lembrança é outra vida


repare que a cinza cai










23.8.15

[hmm]






eu gosto mais daquele jeito
que você nem desconfia

aprendi comigo
e só quero sozinha






21.8.15

quadra 18 - túmulo 312





Luas 

         que 

                lavram 

                               minha terra






(palavras ouvidas em sonho)





20.8.15

Uma escritora de futuro promissor








Ela não era melhor escritora do que eu mas eu achava que era e por isso tinha de matá-la. Ela não era mais bonita do que eu mas todos achavam que era e por isso eu tinha de matá-la. Ela era inédita. Eu também. Até aí estávamos quites mas eu achava que tinha mais chances e não queria dividir meus leitores com ninguém. Demorei muito para ter a coragem de chegar aqui e confessar o que estou confessando que mais dia menos dia eu vou matá-la e ninguém vai ficar sabendo porque ela não tem a mínima importância, vou matá-la e atirar todos os seus originais num esgoto bem longe de casa porque não quero aquela coisa perto de mim para todo mundo ficar dizendo que é literatura quando na verdade não é, isso é que não é, parece mais uma lesma e suas palavras grudam umas nas outras e entram pelos meus olhos e escorrem pelo meu cérebro só pra me convencer de que não devo matá-la porque ela é uma escritora de futuro promissor enquanto eu não tenho futuro algum, ou melhor, meu futuro é agora e já que eu nem ligo pra isso ou aquilo que por acaso ela venha a escrever quando eu não escrevo uma linha há meses e isso sim eu não posso suportar, ela é tão profícua e eu tão prolixa que ninguém me entende e prefere os textos dela que são melhores do que os meus mas eu não acho, eu sei que não são porque de literatura eu entendo, eu estudei muito pra isso, eu perdi noites de sono, eu fiquei sem comer só pra saber o que é isso que todos chamam de literatura, e não vai ser ela que vai me atrapalhar agora, porque antes que ela pisque eu vou matá-la, antes que ela sequer pense em escrever eu vou matá-la, antes que ela assine o meu nome em suas páginas eu vou matá-la e dar por encerrada esta história.



(in Não feche seus olhos esta noite, Rio de Janeiro, ed. Rocco, 2006)









Bilhar 75




Quase 11 horas: Acordo com uma puta dor de cabeça, torcicolo e a unha encravada latejando. O corpo encharcado de suor. Perdi a conta de quantos mosquitos me morderam essa noite. Se eu não bebesse tanto, poderia até me lembrar do nome do corno que me indicou esta pensão. Hospedagem Haway. Que merda de lugar, que merda de cidade. Uma escada de 39 degraus para quem sobe e desce. Um corredor coberto de pó e pontas de cigarro. Paredes verdes pra qualquer lado que se olhe. No final do corredor o quarto da senhoria é uma TV que grita e canta esganiçada. Respiro fundo e todo o cheiro de sebo derretido do planeta se mistura com o de gordura queimada. Acho que vou almoçar. 

11:10: Caralho, cadê o outro pé da porra da sandália? Vou precisar delas pra tomar banho. O chão do box é preto, ladrilhos cheios de meleca. O chuveiro elétrico vaza água por cima. Adeus banho quente. Hoje é o meu primeiro dia de trabalho nas Tintas Marajá e não posso dar pinta de quem veio de uma charneca no cu do meio do mato que é de onde eu vim. Um buraco. Onde não aprendi a ser rei do futebol, rei da coca, rei do samba, rei de nada. O emprego é de auxiliar de balcão, mas só o que faço é carregar tranqueira. O dono é mais sujo do que eu, talvez eu não devesse me preocupar tanto com as aparências. Tintas Marajá, rua Frei Caneca. Rio de Janeiro. Esta cidade é uma bosta, mas na banca da esquina os cartões-postais mostram fotos pra provar que todos estão mentindo quando dizem a verdade. O centro da cidade é sujo, o chão gruda no sapato, o ar fede a fumaça, todo mundo buzina, todo mundo grita, o calor é infernal, os botecos têm cheiro de fritura, cu e cerveja choca, o que você pode chamar de mijo. Mas mesmo assim ontem eu vi um bando de turistas burros fotografando os prédios decrépitos do Rio antigo, todos encardidos e pixados e os gringos clicando: Belíssimo. Vão tomar no cu. 

11:34: Feijão pingado, uma caralhada de arroz e duas almôndegas frias, preço: 8. O dono das Tintas Marajá disse pra eu chegar depois de meio-dia que estaria bom. Ele é que manda. O garfo entorta na hora de cravar a almôndega. Pra arrematar, peço um cafezinho e água da bica. Acho que me contrataram pra eu ficar carregando lata de tinta, da caminhonete para o depósito, do depósito para a caminhonete. Salário mínimo + uns trocados de um bico noturno num posto Petrobras, dá pra levar. Talvez por estar escolada de tanto levar cano de vagabundo, a dona da pensão me perguntou do meu trabalho. Eu disse que trabalhava na Petrobras. Se acreditou ou não, sua expressão azeda não me disse, mas ela me deu o quarto menos sujo da Hospedagem Haway, de frente para uma oficina de lanternagem. Trabalhar na Petrobras é o sonho de todo mundo. Pra mim, me pagando em dia já é lucro, a marca do patrão que se foda. Duas putas entram e pedem uma cerveja no balcão. A morena reclama que está quente e coça a bunda. A meia da perna esquerda tem um fio puxado bem em cima de uma variz que vai do alto da coxa até o tornozelo. Ninguém repara. Eu cato umas moedas no bolso da calça e despejo sobre a mesa. A loura falsa me vê passar sem interesse e as duas soltam uma gargalhada nas minhas costas. Minha camiseta suada gruda no peito e sinto uma ligeira tontura quando acelero o passo pela rua. Atravessado na calçada, um mendigo bêbado com um curativo purulento na perna dorme de boca aberta. A cada ronco saltam moscas. Uma fumaça de ônibus cai sobre nós dois e se dispersa na cidade. Talvez cicatrize. 

Meio-dia em ponto chego no trabalho e um tipinho asqueroso que eu não conhecia se apresenta como gerente da loja. Nunca vi o sujeito antes, eu havia tratado tudo com o dono, que conheci no banheiro de um bilhar da Mem de Sá, todo vomitado e dormindo na boca da privada. Eu ajudei o velho a se limpar e ele me agradeceu com o emprego na sua "firma" umas dez cachaças mais tarde. O gerente então pergunta qual o meu nível escolar. Primeiro grau completo, Supletivo Dallas, Baixada Fluminense. Pela resposta ele viu que eu não era o retardado que esperava que fosse. Caixas e mais caixas de latas de tinta. A caminhonete dispara abarrotada depois que eu carrego tudo. São duas para a loja toda. Uma delas toda comida de ferrugem por dentro. A camiseta branca que comprei no saldão da Riachuelo fica marrom. Antes de eu ir embora, o gerente me diz que meio-expediente é meio-salário. Puta que pariu. Serviço de jumento e pagando uma miséria. Dois pastéis de carne e um caldo de cana depois, me apresso até o posto de gasolina para mais uma noitada calibrando pneus e espumando para-brisa. E o pior é que nem posso ficar reclamando de falta de grana com os caras do posto porque senão o frentista-chefe do meu turno vem com aquela conversa pra me convencer a vender um rim. Diz que arranjaria tudo pra mim com direito a dez por cento do que eu recebesse pela transação. Eu teria que viajar e depois da cirurgia ficaria "afastado" um tempo do Rio. Aquilo não me cheirava bem e comecei a evitar o cara. Ele percebeu e agora só me oferece drogas e viagras. Pensa que sou brocha. Chego no posto e uma fila de carros me espera: calibrar e lavar. Os filhos da puta querem o carro limpinho pro feriadão. 

Sento numa mesa no fundo do bilhar 75 com uma garrafa de cerveja e fico filmando os tacos em movimento. Talvez faça uma fezinha mas não conheço nenhum dos caras e ouvi o garçom dizer que o lugar estava cheio de canas. Estou estourado, só consegui sair do posto à uma hora da manhã quando o movimento caiu. Anoto essas coisas num caderno que trago comigo porque tenho essa mania, vontade de rabiscar pra passar o tempo, ficar sujando as folhas em branco. Conversando sozinho com a caneta, faço desenhos, contas, invento nomes e telefones de ninguém, uma lista de lugares onde já trabalhei, onde morei, nomes das garotas que comi, que não comi, dos filhos da puta que me sacanearam, conversas que já ouvi e não conto a ninguém, pesadelos. Anoto tudo. O pessoal lá de casa me achava maluco e me olhava enviezado. Família. Uma traveca pisca pra mim do balcão e um minuto depois está puxando uma cadeira do meu lado. Ela já está trincada e o silicone das bochechas treme. Os tacos param. Começo a suar. A traveca finge interesse no que escrevo e se estica pra perto de mim enquanto me passa uma bolsinha por baixo da mesa. Pede pra eu guardar que depois pega comigo. Ela implora e se afasta. Os tacos voltam a se mexer. Eu esvazio o copo de cerveja e me fixo no reflexo das bolas sobre a mesa de bilhar. Lá pelas três da manhã o jogo dos canas acaba e eles se mandam. Eu vomito tudo no banheiro, lavo o rosto e vejo pelo espelho sujo que a traveca está atrás de mim, sorrindo. Lembro da bolsinha. Ela agradece e me alisa por cima da calça. Eu desço o ziper e começo a mijar. Ela quer mais e eu deixo. Me convida pra aparecer no ensaio da Unidos do Cabuçu amanhã e vai embora. O garçom guarda a minha gorjeta magra e me passa um folheto de uma Assembleia de Deus. Eu dou as costas e na rua dois camburões passam voando na contramão. Fuzis para o alto. Saio da gafieira quando o dia quer amanhecer e sob os arcos da Lapa uma pivete me negocia o rabo por 50. Vai a merda. Quero me jogar na cama mas a Haway ainda está longe. Vou a pé. Meu caderno dentro da calça arranha minha pele. Na porta da pensão uma mulher me pede 30 em troca de um boquete. Não tem cara de puta. Ela está nervosa e não quer subir. Vamos para trás de uma banca de jornal e ela se ajoelha. Eu viro o rosto pra cima e uma nesga de sol me bate no olho. Ela perde a paciência comigo, fecha minha calça e eu lhe dou uma nota de 10. Um caveirão estaciona na esquina em frente. Subo correndo os 39 degraus e jogo meu caderno no latão de lixo do corredor. Minha barriga sangra. Não me custa nada fechar a porta do quarto.



(2004)







19.8.15

pequenos comas sequenciais induzidos por barbitúricos





Por que não calam a boca?
Por que me dão notícias tristes?
Esse cheiro de carne aberta sobre a terra
de rio fundo
de pequenos comas sequenciais
induzidos por barbitúricos
castelos de mesa de cabeceira
com 32 carneiros de alma e nervos
pense
na Glock engatilhada como
um animal difícil de domar
esse cheiro de ainda somos
de filtro de barro pingando
no armazém do cais do porto
de coisa nenhuma
suas costas suadas
a pele de Pérgamo
de 2 horas e quarenta
os pequenos compromissos
o diário insolúvel
essas coisas aqui escritas
depois de quinze anos
de consideração social
ah sim, a consideração social
de lealdades arrastadas por inércia
batendo no alambrado
de falta de dinheiro para comprar
pilha para o meu papagaio
de só um pouco mais
lá é o mundo, você não precisa ir
de coisa alguma
depois mais nada
de uma prensa de uvas
para quem não tem paciência
com caracteres de chumbo
esse cheiro de vamos ficando
de sinos enferrujados
cronometrando o querer
Por que não calam a boca?
Por que não cobrem os microfones?
se o rio fundo parecia calmo



17.8.15

11.8.15

[as coisas em que toco]





Às janelas abertas

tenho medo de pular


Às coisas em que toco

tenho medo de engolir


À boca que fala muito

tenho medo de beijar


Às avenidas largas

tenho medo de cruzar


Às tuas mãos tão frias

tenho medo de gripar


Sei que é chegada a hora

tenho medo de respirar


A noite dura pedras






4.8.15

[juro]



Nessa sua velha foto

juro que vejo o nosso carrinho 

ainda andando

bem ali embaixo 

atrás daquela moita









Um minuto de fúria editada





Redes antissociais
que feira de humanidades deletérias 
palco da vergonha alheia
dos falsos amigos
de você que um dia amei demais
do intercâmbio oportunista
dos haters
dos ressentidos
dos risadinhas
fui tanto pra você
parece até a vida
que nojo
nojo de mim
tomo vários banhos por dia
me esfrego bem para ver se deixo de ser gente
tirar a craca 
dos beijos que lhe dei
dos intestinos dementes
as conferências
as conferências
as descendências
as fofoquinhas
as miserinhas
que até hoje não me esqueci
não chega a ser triste
repugna
quero minha avó
e a sua dica de um bom filme
um bom livro
do melhor pó
de você que não encontro mais
sua exposição de arte
de figurinhas repetidas
em eterno rodízio 
suas barbuletas
um anjo da guarda ardido
no esparramento de vidas pessoais
suas cartas me davam menos náuseas
a besta intelectual
a besta boçal
os cabeleireiros de versos
que fadiga de aberrações
mas o seu poema me dá esperanças
a boa intenção de suas canções
das coisas que eu preciso ouvir
quero saber o preço de um crime
que tanto tempo faz
e quando morrer
o que nada sou 
ficar sepultada 
em meu canil,
ora, vovó, puta que os pariu.




3.8.15

[Grávida]




Eu tô grávida
e é menina

este furúnculo na coxa
será uma linda moça
da Resistência francesa

Eu tô grávida
e é da cara do pai




1.8.15

[Devo amanhecer em casa]






Mãos nos bolsos do velho casaco preto. Um casaco de lã que Louis quis trocar por meu suéter amarelo ainda nos tempos da faculdade. Chove, Louis, você não acreditaria nessa cena tão ordinária. Louis morava de frente para a maior praia da cidade. Quando amanhecia, sua sala ficava azul. Céu e mar me furando os olhos e a agulha furando Funky Blues na vitrola grudenta de maresia que ninguém desligou. Mãos nos bolsos do casaco preto desta cidade gelada sem mar, o cinza tocando nas paredes. Nada me acorda pela manhã agora. Fome, tenho pouca, Lou. Não como nem depois da meia-noite, como fazíamos. Não me pergunte. Que o jazz já não me consola. O que era uma brincadeira virou clássico. Ninguém me quer por perto. Vendi o sax que você me deu. Cheguei a fazer umas gravaçõezinhas bestas, mas trocaram um monte de notas no estúdio. Ficou branco. Saí quebrando. Você me conhece. Não nasci noutro dia diferente. Fosse hoje, só teria ficado enojado. Don't blame me. Eu nunca decorei. Toco como quem anda de um lado a outro da cela vazia. A pauta é fugir. Mas hoje. Puxa, faz tempo. Bird, Hodges, Carter. Tínhamos o mesmo gosto. Você ainda dá festas tristes, Gatsby do Posto 5? Louis e suas companhias literárias. O que foge da minha lógica. Louis não tinha jeito com as mulheres. Fica fácil se elas caem no seu colo. Vindas direto da areia. Sentadas em poltronas caras. Esperando uma frase original. Um vinho. Um balbucio. O desdém. Minhas mãos frias e secas dentro do casaco. Alguma pergunta por mim? Ruas onde ninguém passa. Um carro. Conto dez minutos e passa outro. Uma luz na esquina. Milagre um bar aberto. Há quanto tempo fui embora, Lou? Cinco, dez, quinze passos. Bares me cansam. Nenhuma música. Olho pela vidraça. Duas cadeiras quentes e silêncio. Se um deles chorava, não pude ver. O mais não preciso explicar. Você nunca teve jeito com as mulheres, mas teve com a minha. Você está cuidando da asma de Zel com jeito? Recomendações à família. Ao apartamento. Não sei quando volto. Não sei se volto. Treze anos é muito tempo para ter coragem de voltar ao buraco de onde saímos por diletantismo. Não coloco mais os dois pés no acaso. São 4:20 e continuo andando. A melhor rua é sempre a próxima. Se der escrevo esta carta. Há uma simetria no lixo. Aqui ainda jogam restos na calçada. Melhor assim, ninguém se importa com a sujeira por que passa. Ainda bebo Black and Tan, como você me ensinou a fazer. Fecho os punhos com força dentro do casaco. Sabe, Lou. Eu não me arrependo de nada. Lou. De nenhuma decisão que tomei. Tive muito tempo para pensar no navio que me trouxe. Só não sei se pensava o certo. Se desistimos cedo demais. Isso ninguém sabe. Não está no repertório. Raspo as unhas na pele porosa e essa levada me acalma. Devo amanhecer em casa. Cinza.