24.3.16

[a passageira de miami]





A Passageira de Miami é um poema policial
fecundado por um abricó
nem um, nem outro
nenhum dos dois
neutro
coisas nem boas, nem más
indiferentes
ainda trissilábico em Plauto
de modo algum
absolutamente não
inspirado na língua arcaica
o que não sabe que ignora
o que sabe que ignora
o que está em estado de não querer
nerto
músculo pequeno
numa noite escura
para que ninguém
para que nenhum
para que nenhuma coisa
venha sempre no começo da frase
olhos dentro da parede automática
eu não me queixo com os anjos
aperto o isqueiro a gás
até ele explodir na minha mão
ofereço o peito um pouco abaixo
da garganta aberta
a passagem do sopro
pelo moscow subway desativado
você tosse outra noite longa
morta entre os mortos
por minha garganta dilacerada
a passagem do ar abate meus inimigos
a morte tem seu lugar certo no corpo







21.3.16

As pulgas de Minerva




É na minha morte que coabitarei contigo. 

Ela se incha de cerveja, 
diz que não vai a manifestação nenhuma.
Que morram todos. 
Sente saudade do meu cinismo.
Que quando sou comunista, perco o humor.
Ela me dá tédio.
Mulheres despolitizadas me dão tédio.
Os escritores moralistas.
Chego a ter pena desses fracassados. 
As pulgas de Minerva. 
Descobri uma ex que frequenta páginas fascistas, digo.
O que eu tenho com isso? Não sou nada.
Aquele eterno olhar de rehab barroca.
A coluna em espiral.
Dancing with herself.
A humanidade ainda respira o tempo da crucificação.
Pelo abdômen.
Peço um Jack.
Voltei a beber semana passada.
Todos são bandidos.
Você não é?
Ela fecha a cara.
A visão digna que cada um tem de si.
O corpo exposto na alta piazza del Campidoglio.
Começo a rir sozinha virada para as luzes da rua.
Eu preciso maltratá-los.
Devia ter nascido um animal de afresco grotesco.
Vingar-me.
Ou.
Envelhecer aos pés da minha dona, chorando.
Pedindo mais um pouco de ração, uma cama seca.
Sem poder levantar as traseiras.
Boto a bandeira vermelha na bolsa.
Mordo o gelo sem parar.
A porta da boate em frente começa a vomitar.
A chuva é doce quando saímos.





12.3.16

Há algo de suicida em ser homem ou mulher





Eu nasci homem. Se é que isso importa no fim das contas. Fisiologicamente homem. Mas mentalmente não me pergunte. Eu não saberia responder. Assuntos de homem não me interessam. Assuntos de mulher não me interessam. Todos os assuntos me são desprovidos de gênero. Quem olha para mim diz que sou mulher. Eu me convenço disso. Olho no espelho e vejo uma mulher. Olho meu corpo e sinto uma mulher. Eu nasci mulher. Se é que isso me importe. Não sei definir o sexo de uma mosca, uma lagartixa, como poderia definir o meu se minha sexualidade é um jogo de encaixe? As mesmas peças fazendo modelos diferentes. Palácios transparentes. Eu me deixo falar sem ouvir. A materialidade da minha voz sobrevoa o cais do porto e mergulha para pegar o peixe que nem viu, mas sabe que ali está por instinto. Pelo ar que brande as cordas. A voz come as palavras. Voracidade e doçura. Não sou homem nem mulher. E como tudo isso parece longe. Eu poderia dizê-los e ocupar páginas. Mas tem uma hora em que a trilha acaba e minhas mãos param sobre o teclado. Largam a caneta. Pousam o copo. Esticam as pernas. Me deito e sinto o meu corpo. Embora a cabeça mande. Obedeça. Você é o que a voz lhe dirá. A voz terna, a voz dura. A voz nenhuma. O gesto feminino da mão de um homem. O suor masculino de mãos femininas em silêncio. É uma chuva pesada que torna tudo invisível, incorpóreo. As pedras da rua não estão mais ali. Querem que eu defina. Não posso. Querem que eu use a palavra certa. Ninguém sabe. Não sou a guardiã dos meus pensamentos. Essa porta pesada não tem tranca. E há muito barulho lá dentro. De homens e mulheres em um fim de festa. Eu não posso levar todos para minha casa. Só um de cada vez. A cada minuto. O ponto de ônibus está cheio e farei muitas viagens. Em túneis sem luz. Em curvas de abismos. De mão única. Nesse ônibus vão homens e mulheres sonolentos e cansados. Eles nasceram homens. Elas nasceram mulheres. Eu aperto o acelerador até o fim. Olhe o sol se pondo. Mal sabendo que terá de se pôr muitas vezes, que será obrigado a se pôr muitas vezes para uma natureza que se usa de vez em quando para acreditar e jogar fora. E como uma mulher deve se pôr perante si mesma? Como um homem deve se pôr perante si mesmo? Há poltronas sem número. Corpos sem identificação. Mas eles confiam no espelho. E o que todos veem é o espelho. Eu nasci espelho. Fisiologicamente espelho. Mentalmente espelho. No retrovisor tudo o que os outros me dizem que sou. Mas eu já estou longe. Olho sem ver e escovo os dentes. Que não se importam. São dentes. Uma boca. Dois olhos materialmente iguais a todos os outros. Forçados a interpretar, a julgar, a esquecer, a não deixar que o café esfrie. O corpo esfrie. Há algo de suicida em ser homem ou mulher. 







10.3.16

Tenho um princípio de gripe e quatro caixas de alprazolam




Tenho um princípio de gripe e quatro caixas de alprazolam. São seis horas da manhã, a camiseta e a calcinha grampeando o meu corpo sobre uma cadeira giratória que me prende a circulação. Trabalho sentada, você pode ver o meu problema, ter de me levantar para andar vez  por outra quando estou completamente concentrada, não rola. Acordo com o maxilar dolorido, devo trincá-lo durante o sono ou então beijei demais ontem, escolha. Não sei por que você se preocupa tanto com o seu romance. Ou melhor, sei, você é poeta e a editora quer um romance. Você é poeta e a editora quer um romance, isso pode estar começando errado. Junte tudo que é seu, ache um fio condutor, encha de cotidianidades entre uma unidade e outra, ligando-as como cimento. O personagem é você e alguns inimigos, um amor perdido, você na rolagem de sentimentos antigos e recém-descobertos enquanto anda por aqui e ali, descreva o seu quarto mil vezes, dilate as palavras, fale até do café quente que desce pela garganta, dos maços de cigarros amassados no chão. Duzentas páginas está bom. Era para eu falar de mim. Isso não tem o menor significado, escrevo porque preciso falar com você depois das palavras duras que trocamos semana passada. Escrevo para marcar território. Você não aparece mais nos meus sonhos. Eu posso xerocar os Diários de Sylvia Plath pra você. Sylvia Plath está esgotada. Você não vai querer pagar 400 paus por uma Plath velha e rabiscada. Estão fazendo uma obra atrás de mim. É tanto barulho que parece que constroem um Parthenon. Gritos e marteladas na bigorna, veja o meu humor como está. O cérebro sendo punçado, é assim que me sinto. Para variar, responda-me. O homem chegou à Lua sim. Você não costumava duvidar de tudo quando nos conhecemos. Uma alma com dúvida é uma alma, porra não sei como dizer sem chatear você. Estou tirando fotos de prédios. Reservo um dia da semana para isso. Prédios em ruínas. Não é um projeto, é uma vontade. Sabe aquelas caixas de lenços de papel na mesa dos psiquiatras? É para chorar. Eu olho e me dá vontade de chorar só para secar as lágrimas com eles. Acho que fazem de propósito. Olha eu duvidando de tudo como você. Decidi não fazer mais exames de rotina. Vamos ver o que acontece. Tem uma mulher que fica me mandando fotos de suas costas chicoteadas. Eu nem a conheço, deve achar que me excito. Ou que sou imbecil, porque as marcas são todas falsas, pintadas. O amor é um tipo de imagem. São correntes de troca mútua baseadas num primado. Você vê o que quer ver. O que pode ver. Se a imagem do seu pensamento não estiver ali, pode ser que não interesse. É como viver dentro de uma música. Falar debaixo d'água. Quando fumo kif desando para filosofias de peixaria. Jabuti sabe lê, não sabe escrevê, trepa no pau, não sabe descê, lê, lê. Por que você fica arrumando inquérito comigo? Eu nem uso essa expressão, veja só. Você diz que sou uma pessoa presa num quarto cheio de ovos. Ninguém chega a mim, e eu não consigo sair, sem quebrá-los. Nem parece que nasceste no Largo da Viração. Todo escritor é um vigarista. De conto-do-vigário. Me venderam uma passagem ao Marrocos pelo dobro do preço, alegando que sairia quase de graça. Quando fui pagar, já estava dentro do avião. Era tarde. Quase o esfaqueei com minha kukri durante uma sessão de chá de menta e muita madame tranquila à sombra de uma figueira. Tudo que entrar no balde pode fumar. Tudo que entrar no balde pode escrever. O resto é o cheiro doce da evaporação. A literatura e a arte contemporâneas são o aformoseamento de desinteligências, me apaixonei no ato, sabe? Por nada. Por frases. Por poesias óticas. A poesia é um coador. E viva a praça São Salvador. Vivam as poetas que me mandam poemas e depois pedem de volta, como se eu os possuísse, como se pudesse comê-los. Escreva um romance. Você não apareceu no sindicato na segunda-feira. Está com medo de ser vista? De perder o emprego? De ser arrivista? Não tema, lê-lê. As moscas nem podem mais tirar uma soneca, porque a merda é tanta. Conceito, percepto, afecto. Fica difícil, não é? Minha cadeira precisa de outro pé. 









6.3.16

unplugged







I wish you were here unplugged








5.3.16

O vento tem barulho de praia




o vento tem barulho de praia, ele disse

os monomotores, eu disse

os monomotores

o crack do biscoito polvilho

o pano aberto da barraca

palmeiras secas e hélices de helicópteros


fui acariciar suas costas

e minha mão afundou na areia










3.3.16

A lot can happen in one ear






Pronto.
Café bebido.
Banho tomado.
Cheque assinado.
Chaves na mão.
Vestida para matar.
Porque a lot can happen in one ear.
E tudo desaparece no primeiro gole de gim.

As ondas não vão parar quando você for embora.

Na bandeja de prata sobre a mesa, um bule com chá de bateria.
Sirva-se.
Fique à vontade.