23.11.17

Não deixa eu saber



Não deixa eu saber que existes 

e estás atrás de mim por onde quer que eu vá. 

Tenho poucas lembranças mas em uma delas tu te acoitas. 

Com teu vocabulário certeiro 

teu raciocínio coeso 

tua fome de saber 

o codinome miserável que me destes 

e não ouso repetir porque seria pior. 

Não houve revolução e és avó. 

A Nova Ordem é ordem. 

O Novo Mundo é mundo. 

O Novo Tempo é tempo. 

Ando pelas ruas a olhar para trás do mesmo jeito. 

Não deixa eu te localizar nas sombras do meu medo. 

Não faze de ti um alvo. 

Eu sabia atirar melhor porque sabes. 

Eu sabia escrever melhor porque ensinaste. 

Não deixa eu fazer de ti meu último panfleto. 

Quando eu olhar tua foto no visor, 

reza para eu não lembrar do codinome. 

Para eu não lembrar do teu amor.




19.11.17

Incognita



Não acreditaram quando eu disse que não era sua mãe. Os três empalideceram ao ouvirem minha voz. Não acreditaram nas minhas juras, nos meus documentos, nos repetidos exames de DNA. Queriam a mãe de volta mesmo que na réplica de uma completa estranha. Eu. Nas fotografias e quadros espalhados pela casa dos três irmãos, uma mulher venerada. Na sala de estar, na sala de jantar, no salão de música, nos nichos entre um cômodo e outro, na capela da fazenda. Diziam a quem aparecesse que eu era a mãe em meus menores gestos. Na caligrafia, nos fios de cabelo fora da ordem. Não querendo constranger-me no papel, queriam que eu me sentisse livre para movimentar-me, falar e agir no meu natural, que quanto mais espontânea, quanto mais eu mesma, mais eu era a outra. Após meses de insistência, por-favores e no final súplicas, ficaram felizes quando me viram enfim instalada e habitando o quarto da mãe, nas ensolaradas terras da família. Permitiram que eu continuasse trabalhando em meu ofício, vestindo minhas próprias roupas e perfumando-me com o que agradasse meus sentidos. Minha única obrigação era ser eu 24 horas por dia, sem mudar um milímetro. Andar como sempre andei, levar o garfo à boca da forma que sempre levei, perder-me nas nuvens do céu como sempre me perdi. Falar com a minha voz meus pensamentos, verter minhas dores com as minhas lágrimas. Eles sempre estariam ao meu lado para ouvir e consolar-me. Respeitavam meus longos momentos de solidão, minhas estadias no isolamento, meu silêncio. Nesses episódios, a saudade deles só fazia aumentar. E mais tarde, o prazer do reencontro queimava o corpo dos três como um êxtase. Após quatro anos comecei a adoecer por qualquer motivo. Médicos, panaceias, acompanhantes, espiritismos. Quando me recuperei, levaram-me para conhecer o mundo. Terra cognita. Terra incognita. Comiam, riam e brindavam de olhos presos na mãe que eu lhes dera. A Terra Reconquistada. E assim foram me vendo envelhecer como envelheceria a mãe tão prematuramente morta. Enchiam-me de atenção e cuidados, contavam minhas rugas, faziam cálculos. No último Natal presentearam-me com uma cadeira de rodas motorizada, uma caixa de cadernos em branco franceses para minhas anotações e uma nova acompanhante multilíngue para eu não me esquecer dos idiomas que dominava. Sabiam que eu já não podia trabalhar com o mesmo afinco e energia, mas que minhas dores de cabeça e vertigem ainda permaneciam como sinais vivos e incólumes de minha atividade cerebral minutos antes de escrever qualquer coisa. Eu os via pelo espelho reunidos ao meu lado. Pálidos e emocionados. Eles não envelheciam. Eram os mesmos filhos como os conheci naquele fim de tarde em que parei no posto da estrada para verificar os freios e tomar um café que me espantasse o sono.






13.11.17

Gandaia




Revista Gandaia, n. 6, 1981. Capa: na foto Cid Moreira: Poesia e BoSSalidade. 
Rio de Janeiro.  Editores: Cesar Cardoso, Lino Machado, Maira Parula, 
Paulo Custódio (Paco) e Rubens Figueiredo.
Projeto gráfico dos editores com colaboração de Reinaldo Figueiredo. 
Poesia, arte, entrevistas.







Houve um tempo em que








Houve um tempo em que eu misturava sexo com manga rosa e gozava só de acender. Houve um tempo em que eu me apaixonava bastava um gesto e a moto fazia 120 por hora. Houve um tempo em que eu lia Shakespeare, ouvia Kid Abelha com Black Sabbath e ninguém tinha nada com isso. Houve um tempo em que eu tinha medo das drogas porque me disseram que Hendrix e Joplin morreram disso. Houve um tempo em que eu tentei mudar a sociedade com uma metralhadora mas queria chegar em casa cedo. Houve um tempo em que eu percebi que podia trocar a arma pela palavra mas a luta já havia acabado. Houve um tempo em que eu colocava no piloto automático Guevara, Pessoa, Drummond, Baudelaire, Artaud, Glauber, Torquato, Oswald, Nietzsche, Foucault, Maiakovski, Kerouac, Lautréamont, Camus, Poe, Lawrence, Virginia Woolf, Borges, Ionesco, Bukowski, os amigos mais loucos e os cortes de cabelo mais estranhos. Houve um tempo em que eu só era fotografada com um copo na mão e o mundo girava na minha cabeça sem claustrofobia. Houve um tempo em que eu descobri que as mulheres num canto de boate são mais do que amigas. Houve um tempo em que eu trabalhava porque precisava, depois porque gostava, depois porque não sabia fazer outra coisa. Houve um tempo em que o pôr do sol começou a ser chamado de Arpoador e a partir daí tudo ficou normal. 




(in Não feche seus olhos esta noite, 2006, ed. Rocco, RJ)











12.11.17

Escrever é um autoflagelo



poemas inflados de gás
são para dias de espetáculo
escrever é um autoflagelo
amputar-se na trincheira do indizível
anular o ego para desbloquear a percepção –
carroça sem cavalos –
cozinhar  limpar  remendar
notas  desenhos  partituras
extrair uma bala do tamanho do Mississippi
deixar passar o macabro comboio de bandeiras
guardar laranjas e caramelos
aceitar
palavras que não casam – vivem juntas
tirar-lhes um retrato e pôr no papel
o cérebro – alto-mar  enfim se esvazia
mas nunca as envia
metade de uma parte
entre chapas de identificação do peito






5.11.17

Eles matam poetas



Ninguém me acha aqui.
Quando helicópteros passam no céu,
nem preciso baixar a cabeça.
Ninguém me acha aqui.
Janelas e portas fechadas,
cinco cães de guarda me envolvem,
cinco punhais de aço sobre a mesa.
Ninguém me acha aqui.
Telefone fora do ar
escondido na própria pele,
não ouço a ninguém.
No entanto o fim do oxigênio circula minhas palavras.

Toda crítica literária é bullying.