14.3.18

Estranhos no paraíso



Enquanto meio morta você lê Diário de Inverno num e-reader, um livro que pegou para ler na semana passada e parou na parte em que ele descreve os lugares onde morou e agora você volta e lembra também de suas inúmeras mudanças e histórias de cada casa, que talvez pudesse deitar essas histórias no papel e você se impressiona que ele colocou a idade que tinha em relação a cada espaço quando você nunca pensou nisso, na sua idade propriamente, mas no ano das mudanças e no que motivou cada uma delas e por que saiu e por que nunca mais voltou porque você nunca volta atrás, e enquanto os detalhes de cada lugar se abriam a sua frente e você os visualizava como um filme, você entende que não lembraria dos seus detalhes porque sua memória é fraca e você fez o possível para que ela assim ficasse porque não queria lembrar das coisas boas porque foram boas e das ruins porque foram ruins, enquanto lê você lembra sim que ouviu falar desse autor uns vinte anos atrás se não lhe falha a memória e você devia estar de mudança ou num momento muito feliz, desesperado ou importante da sua vida para se preocupar com diários alheios, e lembra que quem lhe falou do autor foi uma amiga tão deslumbrada com ele que lhe falava de forma enjoativa por horas seguidas e você chegou a ter dor de cabeça e aquela angústia que acontece quando uma pessoa fala demais e não diz nada que você possa aproveitar para um raciocínio ou para um sonho e a angústia só faz aumentar e jogar você num abismo sem significados e diante desse abismo você não quis conhecer o autor mesmo que outras dez, vinte, trinta pessoas viessem a lhe falar dele e depois todos os jornais, o mundo inteiro, e você pegou repulsa por aquela unanimidade porque não confia no que o mundo inteiro gosta, não se acha dentro desse mundo de concordâncias, mas veja só, dez anos depois do discurso vazio de sua amiga você foi ler o sujeito e gostou, gostou sem deslumbramento, gostou com moderação, mesmo que essa sua aparente frieza levasse você a ler todos os livros dele em sequência porque você devia estar vendo ali naquele homem que escrevia aquelas coisas que ele estava escrevendo para lhe dizer alguma coisa, você via ali uma lírica nos fatos descritos, não nos fatos de fato mas na forma de contá-los, os sentimentos perceptíveis como se você estivesse olhando na cara dele, bebendo uísque com ele, e você entendeu que o que você gostava nele não era o que agradava todo mundo, era uma coisa que só você percebia, um segredo que ele passava só para você, um presente que ele lhe dava e você soube entender isso mas não revelou a ninguém, não revelou a sua amiga que se provou anos depois uma boa filha da puta, uma pessoa sem caráter, tão filha da puta que você se perguntou se o escritor tinha noção de que escrevia para um público onde havia milhares de filhos da puta também enfiados ali entre pessoas de algum caráter e esses filhos da puta adoravam do mesmo jeito o que ele escrevia, você imaginava isso, os filhos da puta sendo seus fãs, você se esforçando para contar uma história, você se rasgando, se expondo para o prazer estético de um filho da puta como numa cerimônia de SM, mas de alguma forma você sabia que isso não importa para quem escreve porque todo escritor é uma espécie de autista, e depois você pode sempre se vingar disso no próprio leitor, apavorá-lo, fazê-lo suar, influenciar a sua mente a tal ponto que ele vai fazer as leituras mais absurdas do que você escreveu e não disse, transformá-lo num assassino potencial de coisas físicas e não físicas, você pode destruir uma pessoa com uma sequência de palavras bem colocadas, e se formos otimistas talvez dessa pessoa combalida saia uma coisa melhor, pelo menos uma coisa nova que você vê como inesperada e recebe seu prêmio, os aplausos de uma plateia por menor que seja onde ali estarão leitores de algum caráter, leitores perdidos, os desesperados, e os filhos da puta já formados ou em gestação pelo que você escreveu, e a sua vingança estará completa mesmo que não tenha consciência disso porque você é uma espécie de autista e sua missão de autista está cumprida até o próximo livro que estarei na fila para comprar junto com minha amiga que certamente me falará de novos autores com renovada ansiedade entre um gole e outro de caffè latte.