29.5.19

The Journey to Kafiristan






Você perdeu a língua, Annemarie? Não abriu a boca desde que deixamos Teerã.

Sim... eu perdi a língua.

Você não quer acordar desse seu estupor?

Não, Ella. Eu não quero.

Você está doente. Eu nem sei por que trouxe você comigo nesta viagem.

Eu posso lhe dizer por quê. Porque você quer fazer uma carreira. E porque quer exercer o comando sobre mim também. Você adora o poder, não é? Deu-se muito bem com os alemães em Teerã, não foi? Eu só prezo a impotência. Uma impotência como o amor.

Então se esconda sob roupas dos pés à cabeça como todas as mulheres daqui. O elogio da impotência!

Ella? Você é dona de si mesma?





(Cena do filme Die Reise nach Kafiristan -- The Journey to Kafiristan, 2001. Baseado na história real da escritora Annemarie Schwarzenbach e da etnóloga Ella Maillart e sua viagem ao Vale do Kafiristão em 1939, após a ascensão do nazismo e pouco antes da eclosão da Segunda Guerra. Tradução Maira Parula.)






27.5.19

Onde estivesse



Por algum motivo eu inchava.

Por algum motivo eu sabia que inchava o que estava inchando e não caberia mais ali dentro.

Serio cuspido ou asfixiado pela corda presa que minhas mãos moles mal alcançavam.

Eu crescia sem parar, não me reconhecia mais.

Eu sou isso. E o depois. É o que eu sou.

Era hediondo.

Tinha espasmos, abalos de fuga, girava, batia nas paredes para descolar-me.

O que fui não voltava a ser como antes.

Por algum motivo comecei a ouvir. Ruídos. Dentro de mim e lá de fora.

A perceber na escuridão sua claridade embaçada. Movediças.

Por algum motivo eu sabia que muito além eu saberia o que estava fazendo aquilo comigo.

E com isso senti circular-me por dentro um frio ruim que me obrigaria a defender-me 

quando eu parasse de crescer, e onde estivesse.

Onde estivesse. 






22.5.19

Che non fa ne defecare ne stimola la diuresi



“A menina que gostava de cheirar cocô” era uma canção muito antiga do folklore das coxilhas dos pampas. Minha vó cantava, a avó da minha avó, e assim retrospectivamente. Não sei se devo contá-la aqui, há pessoas que leem durante as refeições, algumas acabaram de se deliciar com um divino washoku, outras leem enquanto defecam: mas, sejamos neorrealistas, cadê, sejamos neorrealistas. A história não tem qualquer relevância canônica especial, na verdade é uma singela canção de ninar campesina. Por inúmeros relatos de família que ouvi, e após intensa pesquisa com a população local e bibliografia labiríntica consultada, apurei que a canção tem sua origem aproximada no baixo medievo bizantino e atravessou os séculos, com pequenas alterações tonais, até o período napoleônico, chegando aos pampas do hemisfério sul com as imigrações do século XIX. No período de antanho, de nossos antepassados muito antepassados, sabemos que povoados inteiros e suas vielas, e até cidades de grande importância comercial e cultural, cheiravam à merda, comme à Paris. Nos tempos atuais, esta situação civilizatória seria impensável, inimaginável, apesar dos transbordantes esgotos abertos que ainda hoje perduram em vias secundárias ou nos centros de poder de Ningbo à Flórida, Toronto a Estocolmo, sem que os conselhos municipais, uns malversadores, tomem medidas para o reaproveitamento fecal inteligente. Mas não vim aqui para falar de políticas públicas. O fato é que hoje, e muito antes de hoje, embora seja visível e notória a sugestão de violência e outras perversões truculentas nos versos não tão inocentes da maioria das canções e histórias infantis, a inofensiva merda defecada ainda não é bem-vista na poesia e na literatura em geral. Não temos uma coproliteratura estabelecida. E vejam como são espantosas as pessoas. A merda sai de dentro de nós, é parte de nosso sopro vital, como outras seivas corporais que, au contraire, costumam ser decantadas e liricizadas à exaustão. No entanto, a merda é intransferível, é o único bem que ainda não nos roubaram. Um exemplo singular de como o nosso próprio fedor salva nossa identidade, nossa psique já tão sufocada e esgotada por ambientes superpopulosos. Nosso cocô mereceria mais atenção por parte não só das instituições e academia, mas sobretudo da arte ficcional, hoje tão asséptica e perfumada che non fa ne defecare ne stimola la diuresi, no máximo orientada apenas para cenas cansativas de sucessivos derramamentos de sangue, mortes, um clichê. Sim, porque o público que não suporta o próprio odor natural do seu corpo não vai querer ver um filme que tematiza duas horas o cocô, nem comprar um livro que fala de cocô em 200 páginas de papel couché, não vai comprar um livro encadernado a cocô, ouvir uma playlist fecalista, como na história de nossa menina ancestral que gostava de cheirar cocô e, o mais importante, de cheirar a cocô, para que os adultos dela não se aproximassem para fazer-lhe algum mal, erigindo o cocô como uma barreira que a separava de uma realidade externa atroz e ameaçadora. E que ameigado o refrão da cantiga que eu ouvia em pequena: "Cocô, meu cocozim, tri-li-lim tri-li-lim." Pena que os versinhos mais educativos e pseudo-repugnantes da cantiga de infância tenham escapado de minha memória. Foram valiosos os ensinamentos de minha vó naquelas noites antes de dormir com meus ursinhos babados, ambas de bunda bem lavada. Porque minha vó, apesar de entender os motivos justos de autodefesa da menininha do folklore, costumava dizer que “uma alma de cu lavado é a primeira a entrar no céu”, provavelmente porque a bíblia chegou nas coxilhas dos pampas em mulas jesuítas para acabar com o sucesso pagão da lenda da menina que idolatrava fezes. Diferentes da menina sábia, hoje as pessoas rebuçam suas emanações corporais como podem – desodorantes, talcos, eau de cologne, odorizantes de vasos sanitários 30 horas, aromaterapia para ansiedades e camuflar o odor cediço de regos úmidos  –, correndo um risco de vida enorme com essas práticas químicas radicais supostamente higiênicas e culturalmente influenciadas pelo TOC do hemisfério norte. Raciocinemos, gente asseada e perfumada atrai humanos perigosos a milhas de distância. De gente suja ninguém chega perto, o que diminuiria as estatísticas de violência, aumentando a expectativa de vida. Faço estas anotações rápidas numa cafeteria toda odorizada de uma livraria, eu mesma já tomei quatro banhos hoje. Chego a pensar que sou uma suicida em potencial. Mea maxima culpa. Preciso perseverar. "Você devia é me agradecer por eu estar contribuindo para a sua segurança urbana vital, e ao mesmo tempo para a sua saúde: não quer cagar, coma menos. Sempre evoco o cheiro de merda quando entro numa dieta sacrificial para perder o gosto por um filé sangrento e toda sorte de gorduras ruins", comento com o barista desocupado para quem leio minhas anotações. Faço questão de observar a ele que seis cardiologistas de diferentes linhas, os quais consultei ao longo da pesquisa que é a minha vida, aplaudiram minha estratégia, quatro deles levaram minha ideia aos seus pares em convenções internacionais da classe. Apiedo-me dos que se perdem no deserto e precisam limpar o reto com areia em vez de apenas recolher e armazenar o seu produto interno bruto para a eventualidade de um infortúnio, uma rebelião tuaregue, uma Odissey Dawn. Apiedo-me dos que têm de aturar uma visita indesejável por horas, mesmo dias. A visita indesejável não se apercebe de sua indesejabilidade e fica atrapalhando nosso sossego porque somos cheirosos, a casa é cheirosa, a comida é cheirosa, os drinques perfumados, e isso a seduz. Se começássemos a falar de cocô, se cheirássemos a cocô e do mesmo modo tudo que nos cerca, teríamos a nossa paz restaurada num estalar de peidos. Reconheço que artistas plásticos desconstrutores, e até alguns pobres poetas malditos fracassados, já obraram em suas telas e escreveram sobre o tema que exponho. Mas foi insuficiente. O impacto minguou-se e o preconceito resistiu como um uakitite. A desconstrução fecalista revolucionária foi rechaçada, desdenhada, pasteurizada em humor barato, desmonetizada e esquecida, porque no final o Das Kapital do Bom Ar sempre prevalece. Enfatizo: não basta defecar e apertar a descarga. Temos que exercer a inteligência anal plena, falar sobre a merda, abrir nossos corações, olhá-la, acolhê-la. Curto-circuitar narcisismos tolos e tirânicos. Precisamos nos perguntar diariamente, “Por que sou um shit hater?” Olhar no espelho e fazer a pergunta que nos obrigaram a calar desde as nossas primeiras fraldas sujas, a pergunta iluminadora da menininha sobrevivente: "Por que diabos, tri-li-lim, devo odiar meu cocozim?"



21.5.19

Chaouen




Eu vou saber por terceiros
Você vai saber por terceiros
dentro da sua pasta de couro
no balcão do aeroporto
o celular vai tocar
e você vai saber
no meio dos papéis de sua tese
de suas aulas de linguagem de sinais
você vai saber
numa rede social
no meio de um falafel com cerveja
na beira da praia do arraial
você vai saber de mim
e limpará a areia dos pés
com a toalha de sua nova amiga
eu vou saber
no segundo trago de kif em chaouen
sem precisar de sinais eletrônicos
eu vou saber
no meio de uma viela azul
entre árvores da uta el-hamman
eu vou saber por um terceiro
que não saberá na minha língua
dizer de você o que eu já sei



18.5.19

Até não sobrar ninguém



Esqueço das pessoas uma por uma até não sobrar ninguém
os barcos saem aos poucos da marina desde cedo
alguns a passeio outros ao trabalho
das primeiras horas da manhã
eu os acompanho um por um 
o vento na mudança das cores do movimento da água
a velocidade que imprimem os mais apressados
como toda gaivota se apressa em torno deles
o sol miúdo se expande e entra nas casas
não me cansam estas manhãs inteiras ancoradas na varanda
vê-las passar de barco sem me levar no convés mas no calado
o sol está alto agora e bate no sorriso que meu rosto me faz
uma mulher que não estava ali se interpõe entre nós
meus olhos e o que vejo ficam atrás dela
os barcos a marina
no lugar do mar ela coloca um sorriso na boca
e sinto frio
um frio que não estava ali
passo por uma porta e o ar fica preso comigo
entre paredes e móveis
um prato branco sobre a mesa talheres
sente para comer, a mulher instrui
descubro uma janela aberta
ela mostra do outro lado um muro
a mulher não senta para comer
não tem um prato na sua frente
não tem um sorriso na sua frente
não tem uma imagem nas paredes
a comida não é boa nem ruim
umas frases soltas atravessam meu pensamento
não sei de quem são
para onde vão
elas passam outras as seguem
o caminho seco
o ruído que me inquieta
o peito que me aperta
a dor de cabeça
remédios fazem sangrar mais
atrás das frases vêm imagens
minha mãe ou o que sobrou dela
podem destruir meus manuscritos
o que sobrou dela não é aquela mulher
que não come nem sorri
me leva para lá e para cá
fala em outra língua da minha língua
talvez não seja para eu entender
“a fumaça do meu sacrifício não ascenderá aos céus”
lembro de uma passagem
agarro o binóculo em meu colo
lá embaixo é o mundo, você não precisa ir
entardece
o vento está de volta
e os barcos regressam de mais um dia
nunca se atrasam



14.5.19

Todos os caminhos estão abertos







Todos os caminhos estão abertos


Estou mal ou não estou mal

Annemarie lê Morte na Pérsia
e afundo na sonoridade de sua
língua incógnita de folhas azuis
afluentes do Dranse ao Rhône

aponto a Rollei 621 
para o seu mergulho no Lahr
e sua emersão como deserto
hiperventilamos
Oshun, Ifá, Obatalá, Chango, Yemayá
Oshun, Ifá, Obatalá, Chango, Yemayá

estou mal e não estou mal
giro o foco para uma e outra

na cerração do tombadilho
o Ankara apita três vezes
no terceiro inoculo a basílica
e comprimo o botão de disparo













5.5.19

Tudo isto é fado




Sabia o ponto certo a atingir quando batia a cabeça na parede. A amiga experiente havia ensinado: oito anos de internações, formada em hospício. Currículo -- esquizofrênica bleuleriana, faxineira de pátios, auxiliar de enfermagem, enfermeira do Ambulatório Sargento Getúlio, assistente da psiquiatria -- seu último posto até a colônia vir abaixo pelo fogo. A amiga conseguiu fugir antes que as labaredas consumissem pavilhões, celas e maquinário hospitalar. Hoje mora no Algarve. Atravessou o Atlântico e a água salgada curou-a. Algumas rezas e dois ebós na encruzilhada antes da viagem. Parece feliz. Bem casada. Gordos vencimentos em terapia cognitivo-comportamental lusa. Fadista nos fins de semana. Aconselha L, esta que vos fala, sempre que preciso e flerto com parapeitos de quinze andares sem nunca ter coragem de abraçar o céu. A amiga diz que esta história de trampolim é drástica demais. Sujeira demais. Os empregados do prédio vão te catar e lavar e ainda xingando tuas gerações. Não mereces. Foi quando ela me deu a palestra da cabeça na parede. Pediu-me exames de imagem do cérebro. Precisava achar o ponto X a ser batido. Duas doses diárias. Pouca força. Mais precisão. Ela calculava dois anos para o resultado ótimo. Uns levam mais tempo, outros menos. Acostumei-me. Ao lado do tratamento, a terapia. Ela só escutava. Por que é que a gente vive pelos cantos? Chega da rua e já se esconde como se pedaços do corpo se esvaíssem aos bueiros. Não quero nenhuma lembrança de mim solta por aí. Na cabeça de ninguém. Nos cadernos. Álbuns de fotografia. Na escrita do espelho embaçado do banheiro. Onde quer que tenha dito ou escrito uma palavra. Por isso apago, rasgo, digo opostos. Para que não fique uma marca, um sinal de ferrete. Entro no ônibus e logo sento -- menos tempo de pé, menos sou vista. Catatonia. Só me movimento no escuro. Gambá. De pé, ergo os olhos e procuro o céu. Uma ave noturna canta pra mim. Na cama, me distraio arrancando pedacinhos da borracha do lápis. Coço o ouvido com a ponta e talvez deixe algo escrito lá que irá embora comigo. Durmo de mãos dadas com o cachorro. Falo esse pouco e parece que é muito. Minha amiga suspira trêmula na linha. Do outro lado do Atlântico se despede e ouço suas inervações antes que desligue: "Os telefones parecem que estão vivos."