22.11.08
Aderaldo
não é por ser meu filho, não
mas Aderaldo é burro
acho que emburreceu
no dia em que aceitei
ser madrinha de um elefante
- mãe minha não batiza elefante
fez uns olhinhos de
queijinhos chorosos
e desdaí só abre a boca
para traçar nacos de
minhas goiabadas Thereza Quintella
hoje pede carinho aos cães
eu não me meto porque
não se deve acender fósforos em Cabul
e porque obras de gênio demoram
mas também apodrecem
o pai dele diz que a culpa é minha
por ser vegetariana
e o vegetarianismo
como toda gente sabe
encolhe o cérebro
acho que o pai dele
também é burro
bem faz o Rubens
que não tem TV em casa
tá bom o chá, minha filha?
7.9.08
Que homem extraordinário
se eu crescer no futuro
serei como ela
e casarei com meu pai
-- que homem extraordinário,
dizia o açougueiro da esquina,
irei para a universidade,
os modernistas paulistas
já me escorrendo da boca
com pizza e grapette,
mas não há só isto
ou onde foi isto
há sim uma geladeira
a robert frost
e as folhas de um dicionário
de latim presas por elástico,
escrevo sobre a luz,
com os corpos dos insetos
que vou matando,
de minha caça-níqueis mental
caem um livro de Jung
sobre correção ortográfica
e um pacotinho de amendoim,
a perna que faltava
do Tescatlipoca,
una-su-pierna,
uma perna nobre
e mui pia,
recolhida pela tripulação
de um barco que montei
ontem à noite depois do jantar,
em todo conto de fadas
as mulheres velhas são más,
tenho medo das veias saltadas
que seguram sacolas,
o tempo só passa
nos espelhos e nos
olhos dos outros,
é só não olhar, papai
costumava dizer
entrando pela cozinha,
me trazendo
um carneirinho bem gordo,
pero de algodão
-- que homem extraordinário.
31.7.08
1.5.08
Triste para ela
eu posso duvidar dos meus ouvidos, não de mim. os espíritos são mudos. eu disse, ela não acreditou. esticou uma fileira de sal na porta de casa, pregou na porta do quarto uma estrela de seis raios e debaixo do travesseiro pôs uma tesoura aberta. os espíritos são reflexos da sua alma, insisti. ela virou todos os espelhos. aqui em casa espíritos não têm hora para aparecer. às vezes aparecem no meio de uma dor de cabeça. naquele jeitinho de quinta-feira. cada um ouve o que deve ouvir. triste para ela, quando o ouvir é mais importante do que o vivido. quase não sai de casa. ouve vozes por trás das vozes da TV. e todos os outros ruídos vindos do silêncio. mandou construir 28 degraus até o sótão, como no palácio de Pôncio Pilatos. nunca subi. não gosto de sótãos. não a vejo há quatro dias, embora moremos na mesma casa. talvez seja a minha voz que ela não quer ouvir. como o meu trabalho é escrever, me pediu que procurasse nos tantos livros que li -- aqui senti um tom de desprezo -- umas simpatias para apaziguar os seus nervos. não queria mais ouvir os mortos. foi bem assim. senti um arrepio na hora. mas depois de quatro dias sem vê-la, a convivência aqui está bem melhor e meu humor vem mudando. talvez ela até goste das minhas simpatias para cortar malefício de mortos indesejáveis, para evitar que os mortos falem mal de você, para agradar seu morto da guarda, para o morto não fugir com a sua melhor amiga, para calar a boca de morto de língua solta, para espantar morto de maus bofes, para curar morto destrambelhado, para morto deixar de babar, para morto cheio de xodó, para amansar morto brabo, para morto que tem medo de estar morto, para cortar olho-grande de morto, para entender conversa de morto estrangeiro, para dar um sossega-leão em morto de morte matada e para afastar morto com mania de psicografar. bem, cortei esta última. é tão bom morar de frente pro mar.
24.4.08
Oração a São Francisco
Francisco, fazei com que eu pare de fumar,
mas não me transforma numa porca cruel.
Tende clemência e mais um pouco
das trufas negras da Quaranta Martiri.
7.4.08
O bilhete
Mas ao que pouco se perdoa, pouco ama.
(Lucas 7:47)
São Bartolomeu foi esfolado vivo. São Pedro, crucificado de cabeça para baixo. São Estêvão, apedrejado. Por essas e outras, você não tem mais permissão para tocar em mim. Contenta-te com os calos santos de frei Hermano da Guatemala. Como tu, ele acreditava que a Terra era um ovo. Aproveita e compra uns tomates na feira. Hoje eu não volto. Adão e Eva só passaram 12 horas no Paraíso. Fotografei a porta da tua casa para nunca mais me esquecer. Os olhos são tudo, mesmo numa pessoa. Deixei espaço de sobra na tua memória para você se distrair. Agora estou feliz, se me sento na privada ninguém me vê. Seja feliz também. Porque todo mundo fala sozinho, e você nem precisa ouvir.
7.3.08
uma bicicleta atravessa a ponte
uma bicicleta atravessa a ponte
duas bicicletas atravessam a ponte
três bicicletas atravessam a ponte
daqui não se vê as cabeças que conduzem as rodas
mas a velocidade vira a folha do galho
a quarta bicicleta não demora:
os olhos dos mortos
guardam a cara dos seus assassinos
só por essa ponte passam coisas
o lápis cai e ela apaga a ponte
31.1.08
Mãe
o cabelo molhado
os óculos escuros
um sorvete de bola
a mão segurando a casquinha --
o mar lhe escorrendo pelo braço
até a pulseira de argolinhas
meu irmão nunca mais devolveu a fotografia
15.1.08
Exercício de areia
o mar foi meu barco
só ele me espera
depois da rua
não a morte
não a vida
o mar
o mar foi, meu barco
o mar, foi meu barco
o mar foi meu, barco
só, ele me espera
depois a rua
a morte
a vida
mar
Assinar:
Postagens (Atom)