10.4.21

 



What a gulf of blood and ink

      extirpates you from me






7.4.21

Peregrina

 

Estou dentro do táxi com meus dois filhos.

Irineu ao lado do motorista. Irene ao meu lado segurando minhas mãos.

Sei para onde me levam.

Hoje é o meu dia de vacinação e Irene não segura. Ela aperta minhas mãos como se eu fosse o cachorro aterrorizado que vai arrojar-se pela janela na primeira oportunidade do freio.

Irene tem belas mãos, sebosas mas belas. Bem torneadas para combinar com as preciosas joias que me pediu no dia do seu casamento e não devolveu.

Minhas mãos são enrugadas, enrugadas como alguém que sorri, enrugadas mas limpas. Desanuviadas.

Vejo a paisagem lá fora, a nuca do motorista e a nuca do meu filho. Se é que podemos chamar de paisagem prédios encardidos, ônibus fumegantes, terrenos de lodo e um tropel de faces desesperadas. O odor do futuro.

Irineu continua com seu velho hábito de limpar o nariz com o indicador durante percursos de táxi. Evito sair com ele. É tão compulsivo que o taxista o encara enojado, o que já é uma lisonja. Irineu arriou a máscara para melhor desfrutar o seu gozo.

Irene não é diferente. Durante as aulas no colégio limpava o nariz nos cabelos náiades da colega a sua frente. Em silêncio astucioso. Fui chamada na diretoria várias vezes. Não sei se continua com esta rotina apesar de toda a educação formal que lhe dei. A psicóloga disse que minha filha estava expiando sua angústia de endoutrinamento. Não encontrei referência a essa moléstia em nenhum manual de psiquismo moderno. Paciência.

O trânsito é lento. O carro segue lá para a puta que pariu da cidade porque perto de casa não há nenhum posto. Irineu e Irene não conversam. Lançam-me olhares eventuais mas fecho os olhos antes que me atinjam. Despisto curiosidades. Não quero arrazoar. Se estou tomando a esperança deles nos remédios, se faço meus  exercícios, se exponho-me ao sol e outras lengas. A torta de brócolis que Irene me deu foi parar sem rodeios na lata de lixo. Ela pensa que me deleito com essas porcarias que nem às moscas seduzem. Liguei para a Txuleta e pedi um javali.

Estou indo me vacinar. Espero escapar com vida. Que pelo menos me inoculem soro no deltoide em vez de ar na veia. Por mim eu não tomava a merda de vacina nenhuma, mas meus filhos -- meus caçadores -- querem que eu viva e sobreviva copiosamente para poderem me infernizar mais. Meus antigos sucessos são sua fonte de nutrição.

Quatro horas depois, entro na casa sossegada e arranco a máscara. Escoro minha felicidade. Que reclusão é esta que estou em flor? Por onde estou, já sou outra. Há um alívio em meu peito, não posso negar. Irineu e Irene me deixarão em paz até o dia da segunda dose. Tomo um banho sequioso apoiada na barra de segurança. Faço dez flexões e na undécima incorporo a Peregrina. Personagem principal de “Enganos do Bosque, Desenganos do Rio”, a alegoria de Sóror Maria do Céu que estou adaptando babilonicamente ex machina para o meu retorno triunfal aos palcos. Escondo-me deste país peregrina.