18.7.24

14.7.24

1 poema de T. S. Eliot





















Manhã à Janela


Há um barulho de louças do café da manhã Subindo das cozinhas que porões abrigam E pelas beiradas pisoteadas da rua Entendo as almas úmidas das criadas Brotando abatidas nos portões das áreas de serviço.

Ondas pardacentas de neblina lançam-me Faces retorcidas do final da rua E arrancam da saia enlameada que passa Um sorriso sem rumo que paira no ar E se dissipa ao longo dos telhados.



T. S. Eliot, do original "Morning at the Window", tradução Maira Parula.





3.7.24

Pacífico



Kyōgen de gaivotas

areias do Pacífico

descanso os olhos

e deixo a onda levar seu corpo



2.7.24

25.6.24

"Redigir um currículo"

 

Para Szymborska a propósito de seu poema "Pisanie życiorysu"


Redigir um currículo.

O ranger das fragmentadoras de papel.





1 poema de Paul Celan

19.6.24

Às

8.5.24

Piert Fabel e o "trobar clus"



 O século XII deixou-nos as canções de Arnaut Daniel e de Raimbaut D'Aurenga. Mas Piert Fabel, com o seu trobar clus ("trovar fechado", i.e., hermético, enigmático), foi o precursor e mestre dos grandes trovadores que influenciaram a literatura do sudeste europeu. Reinventor da abandonada tradição da poesia em prosa, Fabel canta uma ousada relação amorosa homem/mulher, à época, que acaba por levá-lo à morte sob tortura nas prisões da Inquisição. Seu supremo engenho foi quase todo queimado. Apenas oito textos incompletos sobrevivem e chegam inexplicavelmente a nosso tempo e nossos olhos. Um deles reproduzo aqui:




EN TEL AMOR


Mireolhei en ella para com todu forço, qual gostoin ella eran, qual bonitura ella eran.


Envirei pirata en olho dela, de todos melhures maneiros. Nen carroceira, nen canruage, nen passeiande de ten a pié, só en gosto de sello à toa. Der entornei a consoir, gentil lelira caçadereira qui a min de min caças devano, eu, desvaleiro de tan trigonços chabatizmado por min de me. Y eu de min sen me tambein, scudeiro seu ante de antes, despois prostrado perante sus. Desan mentiu, despaço trus.

Que fue banqui sentimentau, mornadei lheiras y trechorei por todu min corasson desto, en desrefiu hei versos tus, mesa marquisa, qui de premiu e conseliu por de frandanças, armau venturas, de darnos rizo, rejucundae dama de siso? Dama resplente, qui de castelho mirado rau de arragrades non fui destarte, non claro puiso.

De voi cantar moderas tristes, pios de voi rescribu carteas de mor en plus, plus tambein cor, qui cestra mode e por tal forme comu ventiro dequel nenínguem sensin labor nin derramor di lagrimejas en tel amor. 




Ezra Pound, no apógrafo "The Unfound Tradition", resgata a memória do trovador Piert Fabel aqui traduzido. Fragmento supostamente escrito em 1954 pelo poeta a lume espento durante sua estada no St. Elizabeth's Hospital na qualidade de "louco incurável mas inofensivo", segundo diagnósticos médicos. 




26.4.24

Las Mercedes


Infelizmente ou não, no meu período de infância, Marialzirinha, como minha mãe se referia à famosa psicanalista de sua infância reatualizada, já não trabalhava mais na clínica de orientação infantil há muito tempo. Por motivos que talvez apenas eu desconheça, a senhora da casa só queria deixar a mente de sua filha nas mãos de Alzirinha, permitam-me a intimidade. Eu, que nunca passaria em nenhum teste de Rorschach na vida adulta, certamente teria me atrapalhado toda no dos Cubos de Kohs, embora sinta que no da Fábula de Duss eu me sairia melhor. E assim, com imenso pesar de minha mãe, que no fundo queria para o meu futuro a felicidade em forma de inserção total na classe média e no mercado de trabalho, ela viu-se obrigada a deixar de lado a minha orientação infantil por Melanies Klein mais abalizadas e dispendiosas do que ela, porque para a neuropediatria do Engenho de Dentro eu não iria de jeito nenhum, dizia assim, muito menos para o Hospicio de las Mercedes do outro lado da fronteira. O tempo foi passando e a família acabou convencendo minha mãe de que eu era uma menina perfeitamente normal. Pericário, dendritos e axônios. Ela ficava me olhando de banda na hora da costura. Quando eu erguia a cabeça, voltava aos panos. Mais tarde até me interessei por seguir o ramo da psiquiatria. Matriculei-me. Pouco tempo depois cheguei a esboçar uma especialidade que criei e apresentaria à banca: a Psicopirotecnia. É complicado explicar aqui e agora, sentada no último comboio do dia, mas meu estudo chegou a 800 páginas. Entre os colegas consegui uns poucos entusiastas e muitos maledicentes. Larguei tudo no terceiro ano. Sabia que para obter sucesso eu teria que, no mínimo, fundar uma sociedade de psicanálise qualquer num fim de mundo que fosse. Abandonei o sucesso e me aferrei ao fim de mundo. No fim das contas, acho que saí ganhando.



16.4.24

13.4.24

30.3.24

26.3.24

A borda



Eu nadava bem, mas sabia que estava demente. 

Só não sabia se os outros tinham esta percepção de mim. 

A família. Meus rivais nas raias. 

As mãos que me cumprimentavam. 

Eu sabia disfarçar, lendo e nadando, lendo e nadando. Muito. 

E o principal: a expressão serena. Tanto. 

Quando seguia para treinos ou competições, 

já tinha me esquecido de por que havia saído de casa. 

Um motorista discreto me socorria nestas horas. 

O meu treinador na porta do clube. 

E principalmente a água. 

Bastava mergulhar e me lembrava de tudo. 

Aposto que você nunca teve a sensação de lembrar-se de tudo 

que aconteceu na sua vida em 100 metros de nado borboleta. 

Mais que uma sensação. 

A realidade. 

A biografia completa. 

E sempre a mesma, perfeitamente narrada. 

Todos os momentos encaixados por uma ondulação cronológica precisa 

a cada fase propulsiva de braçada e pernada. 

Ao subir no pódio para receber a medalha, 

não lembrava de mais nada. 

Acabado o ciclo de inspiração e não inspiração dentro da água, 

eu me via de novo sem sincronismo, 

sem lembranças, sem ar entre elas. 

Voltava para casa na velocidade errada. 

A medalha largada no banco do carro. 


 

23.3.24

13.2.24

3.2.24

Medo

25.1.24

23.1.24

16.1.24

A poesia de Dora Vasconcellos

 


Guardei teu murmúrio em mim

         As palavras mortas nas cartas
         Guardei das montanhas o poder

         A transparência do tempo
         Plantei a violeta no silêncio
         Dos meus olhos

         Guardei a eternidade da súplica
         A tristeza do refrão
         Guardei a tarde na areia

         Sobrevivi à palavra dolorida
         À narrativa sem enredo
         À fábula sem desenhos

         Perdi tuas ausências
         Meu hábito de olhar de longe
         A própria vontade de ter

         Perdi as curvas do crepúsculo
         O outro lado da ponte
         Os minutos rio abaixo

         Perdi a resistência
         Do guerreiro
         Perdi a hora do vento

         Ao te perder
         Voltei a mim lentamente
         Todas as lembranças
         São companheiras do tempo.

*

Dora Vasconcellos, "I have treasured your murmur". Poeta e diplomata, Dora foi letrista de Heitor Villa-Lobos. Três livros publicados. (Trad. Maira Parula)



15.1.24

Hope Piece

 

Imagine there's no heaven.

Imagine there's no countries.

Imagine no possessions.

Imagine all the people.

Dig a hole in your garden to put them in.



(On Lennon's Imagine & Ono's Cloud Piece)



11.1.24

Annie Ernaux


Senti uma violenta vontade de cagar. Corri até o banheiro, 
do outro lado do corredor, e me agachei na privada, de frente para a porta. Eu podia ver o piso de ladrilhos entre minhas coxas. Empurrei com todas as minhas forças. Aquilo disparou como uma granada, num jato de água que espargiu até a porta. Vi um pequeno banhista pender de meu sexo na ponta de um cordão vermelho. Nunca imaginei ter aquilo dentro de mim. Eu teria que andar com ele até o meu quarto. Peguei-o com a mão — era estranhamente pesado — e avancei pelo corredor apertando-o entre as coxas. Eu era uma besta-fera.


Annie Ernaux em L’événement, 2000. (Trad. Maira Parula)



2.1.24

They Like Delicate Poetry



 

They like Delicate Poetry.

Only Delicate Poetry. 

Almost a delicacy. 

An urinary hesitancy.

And they expect that from a poetess. 

Always the Poetess.

Who are "They"?

Who erected such Byzántioi?

Who cooks the remains for the losers?

Shush

I have a novelty for itch of you:

our Poetess is right here 

waiting for yous.

I am two

inside her bawdy.

And She is not jubilant.

Now,

all you got to do is come down 

twenty-five steps then turn left. 

Maybe I'm on the right side. Wrong. Mute. 

Maybe this basement is silent too. 

Certainly much more gloomy than deep dark. 

Facilis descensus Averno.

Be care 

if I care. 

Otherwise how could Poetess grab them. 

Who are "Them" anyway 

men? 

women? 

somefang?

odder delicate poets?

the Gilga meshes? 

dronedaries? 

Donald Ducks?

AI psychos?

otakus? 

C'mon 

this shit is getting me weeeeary 

my Kershaw jaws quiver 

bleeding all over the cold floor 

the Great Rome of triumphal aches. 

You may slip in Poetess' blob blob blood 

and I wont forget that Ever. 

Maybe I'm right beyond my drawl wrongness after all.

See? 

I havent finished off the poem yet. 

Now you have to descend filthy-two steps. 

The longer you take, the more I write. 

Oh, not me, no. 

The up-and-coming poetess inside my clenched hands. 

Would you save her? 

Or me, 

her Pthree-sixty-five,

her petrified cotton-head,

the Great Bert All Brushed.

Course not. 

I know From. 

Beginning told me:

There is a time to predate spoken language.

There is a time to cannibalize written language. 

O lord, now I can sniff out 

the First You coming right twart me.

I can hear. 

Here now at last.

Young, large and fresh. Mesopotamian.

Anticathartic.

The blade stops quivering, my ladies daddies.

Every line a victory.

Every cut a Thebes.

Applause, paws!

Poem is ready.



30.12.23

I Will Tarantine You

 

Oh well, New Year is at my door


with boots made for kickin’ me, for sure


but I just found a brand new box of matches, yeah


to tarantine everything out of it for a while

23.12.23

1 poema de Raymond Carver


É agosto e faz seis meses

que não leio um livro,

exceto um tal de A retirada de Moscou

de Caulaincourt.

Mesmo assim, estou feliz

andando de carro com meu irmão

e bebendo uns tragos de Old Crow.

Não temos nenhum lugar em mente para ir,

apenas seguimos em frente.

Se eu fechasse os olhos por um minuto,

estaria perdido, se bem que

eu me deitaria com prazer e dormiria para sempre

na beira desta estrada.

Meu irmão me cutuca. 

A qualquer momento, algo vai acontecer.


Raymond Carver, do original "Drinking While Driving". (Tradução Maira Parula)



29.11.23

10.11.23

6.11.23

Allegro insopportabile

 

18:35 é a mais bela cor de Veneza. Nem um minuto a mais, nem um minuto a menos para contemplar aquele irreprodutível azul. 

18:38 um fulminante vaporetto bêbado divide nossa gôndola ao meio. 

18:42 irrespirantes, escalamos a arquitetura palazzina feito ratos. 

22:13 ao naufragar no poema-canal, eu cogitaria todo um novo mundo de formas:  Basta um só verso-rebocador belíssimo para empurrar outros vinte paquidermes.

9:10 à janela da chambre venitiènne penso alto, Não sei por que falam tão mal das águas fétidas de Veneza se deviam elas também ser patrimônio da humanidade por abrigarem no fundo de um lodaçal ticiano as bactérias descendentes da microbiota intestinal de Vivaldi. A ruminar um tiramisù, você não dá ouvidos a minhas considerações sentimentais. Vou tomar meu décimo banho e coloco La caccia para ouvirmos.



Salvatore Quasimodo


Todos estão sozinhos no coração da terra,

apunhalados por um raio de sol:

e de repente a noite.

Salvatore Quasimodo, "Ed è subito sera". (Trad. Maira)

16.10.23

Áte

 

Áte


A humanidade e suas hediondas ninharias.

O que não me impede de seguir a rua e abraçar louise glock na bolsa.

Sugeri a Casimiro que retirasse a crase daquela tarde

À sombra das bananeiras,

Debaixo dos laranjais!

Ofendeu-se.

Saí do trabalho às três da manhã. Esgotada.

Resgate de corpos não tem hora para acabar.

Romper com o meu aidós era a única coisa que eu poderia fazer para salvar-me.

A exclusiva Rubbing House de Madame Haydée ainda estava aberta.

Como combinado, Madame agendou para mim o maior clitóris do seu coro.

Eu estava faminta. Trêmula de morte.

Sem muita demora, engoli e engolida fui até o dia clarear.

A Obcecação acolheu-me inteira em sua rede.

Aliviada, fui embora com um gosto de framboesa na fúria dolorida.

Mal podia caminhar.

Lá fora, o odor de putrefação era um lótus intocado.



13.10.23

Louise Glück





Sereia


Virei criminosa no dia em que me apaixonei.

Antes disso eu era garçonete.

Eu não queria ir para Chicago com você. Eu queria me casar com você, queria que tua mulher sofresse. Queria que a vida dela fosse uma comédia Em que todos os personagens são tristes. Será que uma pessoa boa Pensa desse jeito? Eu mereço Crédito pela minha coragem —
Sentei-me no escuro da tua varanda. Tudo estava claro para mim: Se tua mulher não te deixasse partir Isso provava que ela não te amava. Se te amasse Não iria querer que fosses feliz?

Acho que agora Se eu sentisse menos poderia ser uma pessoa melhor. Eu fui Uma boa garçonete. Conseguia equilibrar oito drinques. Eu costumava te contar meus sonhos. Ontem à noite vi uma mulher sentada num ônibus escuro
No sonho ela chora, o ônibus está indo embora. Ela acena com a mão; com a outra acaricia Uma caixa de ovos cheia de bebês. O sonho não resgata a donzela.


(trad. Maira Parula, "Siren")