30.12.21

Fundo de areia

 

Experimento:

O abrupto esvaziamento tuborretal sempre me provoca um desequilíbrio glutoneuronal. A sensação é de tumores humorais aquosos calcificando-se na minha haste plêurica mestra. Tudo aconteceu depois do amanhã, às 37 horas da escuridão. Eu estava espectando o domo vazio dos planetas sobreviventes pela chama do isqueiro e vi o que sentia. O Nada mais inteiriço e caudaloso de minha pequena existência celêumica. Duvidei até de que havia nascido. Não comunicam essas coisas. Não do jeito como 7 e 5 podem ser 12, 2, 35, 1.4 e outros procedimentos matemacirúrgicos mais complexos, os obscuros certamente jamais serão disseminados neste éon. Nunca pedi parágrafos, mas a máquina me dá. Algo deve ter me afetado depois disso. Estou sem alimentar-me desde então. Substituo por uma sequência de baterias hemoplasmáticas dos meus ancestrais, reservadas para estas contingências desde Eu Já Esperava Por Isso.

 

A claridade natural aqui dura uns 30 minutos, pois temos uma anã branca expressa e muito comprimida do que os primitivos chamavam de sol. Este sol engoliu a terra e tive sorte de poder ter escapado com meus dispositivos de sobrevivência e algumas avarias físicas. São uns dois mil habitando comigo uma rocha oceânica que o astro não viu despencar, porque naquela altura tinha olhos. Meio cegos, mas olhos. Na súbita hora da helioglutonaria, a rocha foi cuspida universo afora e cá estamos. A anã branca que restou é mais cega ainda, mas oferece migalhas de calor e luz quando gira célere pelas trevas celestes do universo-agora como somos. Vivo numa caverna como os outros. Não podemos chamar este torrão de planeta. O mar transformamos em água confiável e o oxigênio castiço dá para todos, por enquanto. Respiramos por turnos. Plantamos o que lembramos. Alguns acham que estamos num fragmento da Grécia, pelas características geológicas. A maioria não crê nisso. A Grécia não havia mais quando o sol explodiu. Difícil conviver com helenossaudosismos encruados. Grandes eventos sempre deixam um rastro de loucura na mente acabadiça. Se não tomarmos cuidado, esses poucos Nós Sobreviventes de nostalgia espectral começarão tudo de novo. Romas, Cristos, inquisições, navegações para conquistar as cavernas uns dos outros. E o pior. A América — hoje um NO2 à toa. A humanidade não costuma ver o que está na sua cara. Cega como sóis. Tão destrutiva quanto. Mas infelizmente precisamos uns dos outros nesta lasca de vida que nos coube. Há um certo amor no fundo dessa areia.





 

8.11.21

The aphrodisiac squirt

 




The aphrodisiac squirt

Straight from my coochie hole to your étagère à livres





L'interpretazione dei sogni

24.10.21

Holy Steps

  


Steps in the Garden.

I quickly throw the key of Eden down the privy.

Two bullets in the drum.

I kneel down.

I pray.

O Lord.

And wait.

The first I reserve for Thee:

Ego Te multiplicabo et faciam Te in multitudinem populorum.




23.10.21

Egito

 

Já nos despedimos desde o começo. O seu corpo pequeno vigiado por outro grande. E um dia na rua você descobre que há outros corpos pequenos como o seu. Mas você não os quer por perto. Eles andam em bando aos gritos e olham para você atendendo a um rancor antigo. Um rancor que não é o seu. Você tem medo. Treme. Quer voltar para a casa que dizem ser a sua – para o conforto de corpos grandes reconhecíveis. Lá são gritos que já conhece. Você é uma criança – dizem também. Mas como posso ser o que mais temo? E daí você precisa provar que não é criança. Que não se quer por perto. E cresce depressa. A gram pressa. Surpreendendo os corpos grandes da casa, que vigiam o seu novo corpo ainda mais. E um dia você descobre que não quer ser como eles. Por que continuo temendo ser o que sou? E não quer ser mais corpo nenhum. O corpo dói-se todo por dentro. Quanto maior, mais forte a dor. A coita de suportá-lo, carregá-lo para todo lado. Então você se anestesia. O toque de mãos suaves faz você esquecer-se da dor por alguns aquis e alis. Mas a dor volta. A dor não se despede. É perpétua. Você odeia o seu corpo e procura esquecê-lo pensando. Eu não sou esse corpo, eu sou o que está dentro da minha mente. Espírito – dizem. Você os manda à merda, silente. Não acredita nisso. O fastio de dar nomes a todas as coisas. Encasulá-las. Angústia – dizem. Depressão – crocitam. Você quer que as sentenças se fodam, junto com as línguas que as pronunciam. Dobra a dose e dormesca. Por um momento não vê a dor. Não vê o corpo. Não vê mãos suaves. Está no Egito. No que parece o Egito dentro da sua casa, que não parece alhures nenhum. Amanhã o corpo se reapresentará e com ele a dor. A dor não se despede nunca. O corpo... ah, sim, este você pode despedir.  


 


21.10.21

Mormaço

 

– É um biscoito amanteigado que Olga Breno entrega a Raul Schnoor para  ele comer. Você reparou?

 

– Sim. Levei anos para perceber o detalhe.

 

– Biscoitos amanteigados num barco à deriva.

 

– Olga corta o dedo ao arrancar a folha de alumínio da lata. O indicador?

 

– Penso que sim. Mas cortou-se com a faca ao descascar uma laranja. Olga limpa o sangue na água salgada.

 

– Que laranja? Nada disso. A faquinha corta a folha interna de alumínio da lata e depois Olga puxa a folha e se fere. O que eu sei é que o corte no dedo não estava no roteiro. Aconteceu.

 

– Não estava? Impossível.

 

– Não.

 

– Um neto de Raul me falou que estava sim. E tem importância a Mulher 1 olhando para a sua ferida. Seu desespero com o próprio agir fracassado.

 

– E o Mario? Que disse?

 

– Nenhum comentário.

 

– Eu soube que Olga revelou que foi real. Ela se cortou mesmo.

 

– De propósito? Por orientação do diretor? Ou saiu da cabeça dela?

 

– Aí já não sei. Mas não creio. Ela não tomaria esta liberdade. Pode ter sido acidental. Mario era rígido com o passo a passo. E Olga, muito obediente a ele.

 

– Talvez, mas no caso ele não iria cortar e refazer a cena com tudo engatilhado. Mais trabalho, tempo, despesa. Luz do dia desperdiçada.

 

– Sim. Deixou rodar e acabou acrescentando mais peso ao infortúnio. Você sente o corte na sua pele. Uma agonia.

 

– De fato. Sabe que vi tantas vezes esse filme que frequentemente me pego de ombros caídos como Raul manuseando dois gravetos para não pensar em nada. Ou lembrar-me. Entregue. Imóvel.

 

– Cinema à deriva. O salto no vazio. Gosto disso. Mar. Anonimato. Imagem-pensamento...

 

– Eu também. Essa estética de TV, enredos prognosticáveis, temas repisados, falas por cima de falas, um ruído ensurdecedor quando não sussurros, caras e bocas higienizados, atuações robóticas, um capinzal de moral e doutrinas, não suporto mais. Nem assisto.

 

– ...duelo de olhares ressentidos à beira do túmulo de uma mulher-amante. A frase conclusiva de violenta beleza inesperada.

 

– Sim. “E se eu lhe disser que ela é morfética?”

 

– Todo linguagem poética. Trêmula. Oceano atemporal.

 

– Será que os biscoitos vieram da Bhering do primo de Mario, onde Olga, ou melhor, Alzira, trabalhava?...

 

– Falta pouco tempo para o filme completar 100 anos.

 

– Por aqui não haverá outro que o supere.

 

– Tão cedo. E Mario morreu na merda. Teso.

 

– Mundéu.

 

– Vamos fazer os pedidos agora?

 

– Pra mim um cálice de aguardente. Doze graus. Isso lá é temperatura de primavera?

 

– Que horas são?

 

– Tarde. Uma hora.

 

– Menos uma. Menos uma.

 

 

 

14.10.21

De um momento para o outro


Poucas são as coisas minhas que não as comprei. Cabeça, tronco e membros. Por todo o resto paguei. Caro. Muito caro. Ataúde. Catacumba. A navalha. A navalha roubei da gaveta ministerial do sólido filho da puta do meu pae, aquela massa desconjuntada de artérias, negócios e reprovações. Em dias raros comprei barato. Quase de graça. Vento. Chicletes de troco. Revistas velhas. A sombra da mãe à janela imaginando a minha natureza e o que me levaria aos meus próprios limites. Aí a coisa já exigiu mais despesa. Eu teria de caprichar no ataúde para ela sofrer menos. Voltar a relacionar-me com amigos afastados pouco antes do último arremate para que as despedidas fossem concorridas e a mãe visse como foi amado o que por muito tempo guardara em suas mãos. Comprei perfumes caros para tornar o ambiente menos viciado em olhos inflamados e gânglios de desprezo. Uma bata discreta. Um cache-nez para o pescoço. No bilhete, recomendei horas ao sol de novecentos graus antes de descerem minha cápsula nos arredores da cidade. Há um certo frio em campos cultivados e espectadores. Prometi que voltaria se melhorasse. Daqui a um século, de um momento para o outro. Pena que não os veria jamais. Se pudesse escolher, procuraria um pardieiro bem mais distante de todos os seres que conheci cordialmente. Cerimônia concluída, passeio pela represa ali perto. Sem planos para o futuro. Me perco de vista. Agora sim, impenetrável corpo inteiro. Volátil. Arrebatado. Tudo grátis. E uma nuvem de poeira.




30.9.21

Ondas

 

Pelo microscópio de varredura até o pó de Luis de Camoens 

vede! 

está de máscara. 

Acendo um cigarro do meu maço de Cumbre Vieja 

a passeio num matagal de redondilhas mínimas.  

Marinheiro 

Marinheira 

Quero ver 

Você no mar 

Decidamse, Ondas, que partes mhas devo desmembrar para ser dos.

Eu, quem não suporta mais a convenção dos signos. 

Falar de si na primeira pessoa que já não sou por lyure vontade. 

Cobrirme de cômodas no frio. Porque sim.

Frígida língua fixando pregos no pensar. 



27.9.21

a propósito de Κικέρων

 

                                                           a propósito de Κικέρων



sedutora de linfas e Quasimodos

vi logo que era poeta

pedi-lhe um verso carmelita

comprou-me um sacolé de manga

mordi-lhe a língua bêbada

e mergulhei ali

ensanguentado licor




29.8.21

Escreva

 

Eu não estava preparada para uma vida atrás das grades em minha própria casa. Quando tudo começou e na estrada de terra seca não passava mais ninguém, o vento apagando todo rastro que eu poderia seguir no dia em que tudo aquilo tivesse um fim, havia coisas que eu precisava fazer que não dependiam de mim.

Estas são as piores.

Coisas que precisariam ser consertadas em meu corpo. Que uma outra vida teria de fazer o serviço por mim. E de repente não havia ninguém. Era como se ao levantar-me de uma cadeira de rodas para gritar socorro, a janela fosse uma escotilha lacrada, me faltassem forças para abri-la e acabasse indo ao chão sem conseguir nem mesmo rastejar para o convés deserto de um navio deixado para trás.

Não tem tanto tempo assim que você foi embora, mas sua presença durou uma era. Sempre tomando conta de tudo para mim, para nós, para a casa. Esta cidade que somos. Eu já não sabia mais andar por minhas próprias pernas. Pagar contas, comprar comida, conversar com estranhos, receber amigos. Agir era transportar-me pelo quarto, olhar pelas vidraças. Olhar para dentro. Rabiscar no papel. Adormecer.

Você só dizia, Escreva.

E eu escrevia. Prisioneira da mesa, do papel, do lápis, do alfabeto.

Até que um dia você quis a sua solidão só para você. Sem depoentes. Fez as malas e se foi. O vento não demorou em rasurar suas pegadas. Eu não poderia mais segui-las.

O que fazer com esta mesa? O papel, o lápis, o alfabeto. O meu corpo. Esta cidade que são.

Há oito ou dez palavras novas que todo mundo aprende a cada inédita calamidade. É para isso que servem desgraças e hecatombes. Para aumentar o vocabulário da humanidade.

 

 

 

23.7.21

Non-stop

 

Reduz a velocidade porque a estrada vai acabar  para o seu bairro começar na próxima curva. E ali o ar é mais puro frio. E ela pode respirar pela cabeça das estrelas. Difícil suportar. A cólera empedrada vai se desfazendo à medida que os pneus deslizam entre árvores. Inspira fundo ao chegar no posto pouco depois da entrada. Nada. Pisca os faróis e estaciona. A cerveja à espera na mesa. Todos conhecem sua rotina. Sua rotina conhece a de todos. Do marido, dos amigos. Faz a mímica de beijos atirados. Puxa a cadeira e senta. Todos já se fartaram. Tinham fome. Quem chega de uma viagem de quatro horas non-stop não tem fome. A maré do sangue precisa baixar. Dá um gole na cerveja. “Em Cabo Frio, todo mundo sabe que você foi rebocada.” Não entende do que estão falando. Acha que ouviu essa mesma frase num filme antigo de combustão espontânea. Apostaria que ninguém ali o viu. O jardim de vozes embaralha seus sentidos. Não consegue concentrar-se em nada do que dizem. Não ouve mais. Não opina. Não se interessa. Apenas uma lápide de cortesias emoldura seu rosto. Os olhos fixos na rua deserta lá fora. Nenhum automóvel costeia o posto para abastecer. O seu deserto químico. Não quer voltar para o carro e ligar o motor. Como justificar depois? Na bolsa não resta um frasco. Ri quando todos riem. Fica séria quando ficam sérios. Merda. Ninguém para. No desfecho do segundo copo da cerveja intragável, um automóvel enfim contorna as bombas e para na aditivada. O frentista aperta o gatilho e ela vai até a janela de um salto. O parapeito só para si. O cheiro da gasolina liberta-se do reservatório subterrâneo e o oxigênio se cala. Ela inspira fundo outra vez e aos poucos o cheiro de puro plâncton a acalma. Tudo muito simples. Muito basso ostinato. Nada mais tem esse poder. Nem drogas, nem perfumes, mantras, os antolhos de bons livros, um bom banho, um bom marido, um bom filho que a obriga a ser mãe quando queria ser filha para sempre. Só o aroma da gasolina vibrando pelo ar como “When I am laid in earth”. Sente-se aquecida agora. Naquele parapeito só para si. Como se escrevesse uma coisa pensando em outra. Quando saem do restaurante do posto, ela vê uma pequena poça de combustível escorrendo para o meio-fio. Agora. Tudo poderia dar certo. Ela para ao lado da poça. Acende um fósforo, coloca o cigarro na boca e olha para o marido com malícia. Na cabeça medíocre do homem ela está com saudade e ele se aproxima. Agora. Ela o abraça para ficarem um só. Agora. Não. E assopra a chama do palito: a Paradise within me, happier farr. O prazer mais íntimo não se divide com troianos.     

 


 

10.7.21

Mädchen in Uniform

 

É, foi sim 

A professora de matemática foi meu Mädchen in Uniform 

Nos rochedos atrás do pátio 

A sua sala privativa depois das horas 

Nas galerias tristonhas do liceu onde se confundiam os homens e o mundo 

Nos banheiros femininos em que nos fumávamos pelo sangue 

As casas noturnas de bairros distantes passando lentamente 

Quando o marido viajava atrás de seus bezerros de ouro 

No fundo de todas as coisas 

Falávamos línguas diferentes 

Eu era uma desgraça operacional 

Para entender ao meu lado 

Que por (5t – 9 = 16) ela queria dizer Sim

Que (5x + 6y = 1) era Não

E (t4 – 8z = x) significava Quero te ver agora. 

Com o tempo as sentenças ganharam fluência e não havia brigas 

E irredutíveis nessas conversas só nossas 

Não sei o que lhe deu ao me ver sentada na última fileira 

primeiro dia do curso 

Quem sabe o que não sou mais capaz de ver em mim 

Há entretantos no entretanto 

Hoje a saudade é uma fisionomia 

Páginas avançam sem contar essa história a ninguém 

E não contam 

O que determinado momento da vida corpo 

É toda essa enormidade consciente até o fim 

Contar 

Seria como morrer 

Laceramento 

Torquemadas chamariam de παράφιλία o que era 

Uma vertigem de ferro a queimar tout doucement






8.7.21

4.7.21

Longas Dores

 

Olá, Brasil. Olá, eu nesse mundo. Como posso contar uma história se a minha vida está uma merda e a ninguém muito menos interessa. Mas vamos lá. João saía muito cedo de casa todo dia. O gelo da manhã cobrindo o veludo verde da vegetação. Levava na mochila jaqueta de camuflagem, facão para bater o mato, balaclava para o ar frio, um frasco de aminofilina, uma cebola com Taurus e luvas de proteção. Trabalhava no sítio do Poço Vossa Vontade. Digamos que fosse Joana que levava a mochila. Dentro, o uniforme de cozinheira, um vidro de xarope. Só Joana sabia fazer os pratos preferidos do patrão no Rio de Janeiro --- a porta delirante de uma casa vazia, como gostam de definir poetas estrangeiros as cidades que visitam sem sair do automóvel. O patrão de Joana, um compositor que todos chamavam de o maestro. O famoso sr. Jon. Famoso sim. Muito famoso. Joana levava cafezinho todas as vezes que ele pedia lá do piano na sala. Uns quarenta cafezinhos por dia mais as refeições da família inteira e os cuidados com os filhos pequenos e dengosos do maestro que ficavam isolados no segundo andar para não atrapalhar as canções. Joana tinha bronquite. Não podia tossir para não interromper a inspiração e sobressaltar as notas que saíam do piano por mãos assedilhadas. Joana só sabia que o piano era bonito. Deve ter saído caro. Tudo era caro naquela casa. A comida simples, a música complicada. Ela não a entendia mas, como o arrulho dos pombos na praça e o estalo da madeira no braseiro, até que dava para distraí-la durante o corte da cebola. Sempre durante o corte. Para achar o olho. Joana nunca teve alguém que lhe dissesse você está bem? de verdade. Olho no olho. O olho na cebola. Eram grandes composições. Vendiam muito. Joana foi com eles para Nova York amarrada junto com o piano na mudança da família. Conheceu a maior cidade do mundo no caminho entre o apartamento e o supermercado. Posso dizer aqui que ela não conheceu a estátua da liberdade, uma liberdade de cimento e aço parada não trabalha, não serve para nada, Joana ria. A mala de Joana para a viagem era pequena. Com mais uniformes, toucas e aventais, um item limpo para cada dia de trabalho. E o maldito piano tocando sem parar aquela música que saía de dentro dele. Dé, me vê café, o compositor gritava. O nome dela era Joana, mas o compositor gostava de rimar. Achava bonito. Dé odiava ser chamada de Dé, apelido do seu primeiro padrasto, um matador de aluguel graças a deus morto pela polícia quando Dé, me vê café, tinha treze anos. Sua mãe logo o substituiu por outro que também gostava de cebola. O olho da cebola. Só Joana sabia ver o olho da cebola. Ela fazia o olho da cebola chorar. Joana tinha ê nojo! dos padrastos. Foram muitos. Tinha ê nojo! do compositor. De sua cabeleira branca sebosa, dos charutos fedorentos. Das palavras difíceis que usava com os amigos e das fáceis que dirigia a ela, o mesmo que chamá-la de toupeira. “De poucas palavras nasceram muitas obras”, o seu Jon não devia conhecer este sermão. Pela manhã ela precisava escancarar todas as janelas para expulsar o odor pestilento de fumaça e álcool. Eram muitas janelas. O prédio, muito alto. O apartamento lá no topo. Onde se pode fazer uma escolha. Se alguém caísse, não ia sobrar nada. Ela ria. Imaginando coisas, soluções, receitas. E tossia. Vontade de passar o facão de mato naquela catarreira. Você está bem, Joana?, a patroa disse trombuda porque acordou com a sua tosse. Não era um está bem de verdade. Não é nada não, respondeu, mas preciso sair para comprar café. Que acabou. O seu Jon vai ficar brabo. Ele só toma café daquela marca. Note-se que eu não tenho a menor ideia de como vai acabar esta história porque estou com pena de Joana, estou com pena de mim, e é um pouco desesperado ter pena dos personagens, ter pena de nós mesmos. Pactuar com eles. Desagrega o desenvolvimento da narrativa, da vida. Talvez seja por isso que eu a quero Joana nem é personagem, penso comigo. Sou eu de novo e nem tenho gosto. E a jogo aqui no papel como um corpo no ar. Não a conheço pelo vidro da janela. Não vai dar tempo. Mas conheço o compositor. E Joana abre as janelas e por elas eu posso entrar voejando, embora não precise disso para saber como ela vive no seu quartinho de serviço. Temos algo em comum, um pequeno arame cruzado, eu também habitei quartinhos de serviço por um bom tempo. Ficar o mais longe possível da família era o meu emprego não remunerado. Não tenho problemas com estreituras. Durmo em qualquer pedaço de chão ou terra onde caio embriagada afofando travesseiros de tijolo. Mas Joana não achou o café preferido do compositor em nenhum lugar daquela cidade de merda. Andou horas por avenidas e ruas estranhas de povaréu esquisito meio morto com línguas enroladas e não achou a porra do café. Acabou se perdendo. Ligou para a patroa cara de laranja chupada e ela foi apanhá-la em outro bairro. Sem o café. Joana chorou no carro. A mulher do maestro de Joana disse não tem problema, mas pare de chorar, está bem? Outra vez ela ouviu está bem sem um você, ela sentiu. O compositor irritou-se mas resolveu esperar e falsificou simpatia. Um dia Dé vai achar café, né, Dé? Não achou. O piano ficou mudo. O homem começou a passar mais tempo na rua e voltava para casa sempre grogue sem nem olhar para o piano, o charuto estourado na boca. Uma noite de porre é uma canção a menos. Joana achou que era por saudade do café. Quase vício. Sentiu culpa e prazer. Os dois sentimentos engalfinhados pioraram sua bronquite. Ela tossia cada vez mais. Isso tudo no verão. Ia dar um fim naquela bronquite com um Taurus. Dias depois o compositor a despediu com dez notas de cem dólares e uma passagem de volta para o Brasil. O maestro de Joana se acabou em pouco tempo. Cansaço, que é o câncer assim de repente. Ela soube pelo jornal em que morre muita gente e chorou. Depois riu. Não tossiu. A bronquite estava curada. Ligou o rádio e a música dele estava ali dentro. Uma música que ela viu nascer. Foram muitas homenagens. Joana casou. Foram poucos convidados. Um cuitelinho na varanda. Hoje tem dois filhos. Um se chama Jon. O menino com olhos de cebola. Seu marido detesta café. Não tem tempo para música. Parece que vai dar certo. O Senhor fez em mim maravilhas, Santo é o Seu nome. Moram numa casinha distante em Longas Dores construída sobre o nada. Eu moraria nesta casinha. Acho que Joana hoje está bem. Não preciso perguntar.



 

 

 

29.6.21






                                   

Tenho ciúmes dos tweets que você lê. Tão distraidamente.




(repurposing ana c)



Online de batom


Enquanto às 8 da manhã tomo sol cantando Be My Baby para os meus cachorros, 

você já está online de batom dando palestras espíritas sobre a inteligibilidade e a 

dinamicidade do falar em línguas em contraposição ao ensino formal normativo-

subordinante da língua portuguesa nas instituições acadêmicas. 


Será que algum dia teremos algo em comum?

Aquele just the way you are mmm mmm mmm.



27.6.21

Coração desfibrado

 

Coração desfibrado. Acordo à madrugada com dor no peito, respiração curta. Faço as contas. Hoje é o dia 9 de um resfriado que peguei há nove dias, inegável, ao sair à rua por obrigação inadiável e duas vezes mascarada após 15 meses de segurança máxima como El Chapo. O resfriado passou, mas por que esta dor no peito justo agora? Abro a gaveta ao lado e engulo um comprimido inteiro. Saio da cama. Dou uns passos pelo quarto e meu peito suspira exalando quatro arrotos. As garras soltam o meu coração. Volto a respirar normalmente.

Se estivesse com a peste, o ansiolítico não curaria. Você é neurótica.

Sim. Errou na segunda. Eu sou MUITO neurótica.

Uma suicida com medo da morte. Com que então.

Uma suicida acanhada, digamos. Enrustida. Tudo culpa do Vinicius. Depois que ouvi, “Por cima uma laje, embaixo a escuridão”, vi que ia ser um bocado chato.

Você não é suicida. É mórbida. A melancolia inicial foi capturada en passant pela morbidez. Empate por afogamento.

Desde o início da peste minhas duas mesas de trabalho são epopeias brutas. Narram a história dos meus dias sem ordem alguma nos acontecimentos. Mas acho ali tudo de que preciso. Comprei recentemente cobertores para o frio. Suponho que são de papel como tudo em minha casa. Faço estudos para saber se foram eles que deflagraram a coriza assombrosa que caracterizou um resfriado comum sem outros sintomas dignos de crédito. Procuro no “Poeta Lírico” do Eça um fio condutor que me puxe para escrever novamente textos mais longos, como o de um pequeno bote preso a um barco incalculável que o arrasta. Tenho de começar por algum ponto. Alguma boia sinalizadora.

Há meses que você só está engolindo o mundo. Ele não cabe em você. Precisa vomitá-lo. Ou funcionará como um explosivo de ruptura.

Eu sei.

Tomo uma colherada de chocolate em pó. Volto para o quarto. Escrevo isso aqui. Peço perdão por sair assim. Direção manual. Coloco um pé só na água. Está fria. Acendo um cigarro e me ofereço. Converso com ele em voz baixa porque ele não me conhece. Ele diz que se lembrará desta tarde comigo a vida inteira. Eu o apago na areia molhada e esqueço do seu rosto enquanto ele corre. Ninguém nos observa. A minha cama cada vez mais longe da cidade.



24.6.21

Para Anne Sexton

 

to anne sexton



You know what waves really say.

They say Am I. Am I. Am I.

Anne and I am I?






22.6.21

A espera da hortelã

 


Numa casa às escuras não dá para fazer muita coisa, principalmente se faltou luz.

Nestas horas me deixo levar por um maneirismo acentuado e repito dezenas de frases diferentes com o mesmo sentido. É uma forma de me distrair e esquecer que passei a tarde toda sentindo um cheiro de hortelã sem que eu notasse à minha volta algum motivo concreto para isso.
Seria fácil se eu pudesse atribuir esta escuridão de hortelã ao cansaço. À exasperação sensorial barroca: eu ouviria duras críticas nesse sentido.
Minha pobre literatura egocêntrica seria alvo não preferencial de tudo que é tipo de mentalidade geocêntrica. Ponto para a crítica necrografista.
Alhear-me nestes pensamentos pode não produzir resultados mas faz com que por um minuto eu me esqueça do cheiro hipnótico da hortelã, com que eu me esqueça do todo contido no detalhe, um perverso vício de raciocínio que se alimenta da minha natureza confundindo-me com ela.
"Quando me procuro, nunca estou em casa." Acho que foi Hume quem desenhou esta frase. É possível que na casa dele faltasse luz também.
Minha lógica é rasteira e se estende até a mesinha de cabeceira, onde se apoia e ergue a cabeça para me procurar pela cama.
Eu disse que estava escuro.
Está escuro e o cheiro de hortelã grudou na minha pele como se tivesse medo de cair.
Eu quero ir até a cozinha mas tenho medo também de cair sobre os móveis e nunca mais me levantar. De cair no chão e não saber me arrastar.
Como uma boneca sentada numa cadeira, eu esperava que me tirassem dali.
Esperava que me levassem para passear num carro vermelho ou até o cinema da esquina,
que antes de dormir me contassem uma história bem bonita para eu poder pegar no sono
e deixassem a luz do abajur acesa depois de me prometerem que se eu fosse uma menina boazinha, amanhã não precisaria mais de tantas nebulizações.
Eu esperava.

20.6.21

Córsega




Ouço minha avó chamando o nome de minha mãe.

Mortas, o nome do vento.

De alguma forma ele me encontrou.