27.8.18

Berna







Ela escreve à amiga: 
“Ainda não encontrei a mulher da minha vida.” 
Uma frase depois leio que se refere a uma empregada doméstica, à dificuldade de achar uma criada “nossa”, uma multisserviçal vitalícia para ela, autora, o marido e a prole em formação. Imagino-a escrevendo isso ao lado de rosas de cobre e sua outra mão velociraptora segurando um pãozinho tremente e dulcíssimo com o dedo mínimo marfim erguido, o café esfriando na varanda ventilada em Berna. Sinto um espasmo estomacal de repulsa. Sinto-a abrindo a boca para morder e despencando de cabeça na mesa de mármore. O jornal da manhã intocado em seu colo. Infarto fulminante. Tomo um gole de água pura, ajeito o lençol e durmo tranquila no seu terceiro e melhor romance.







18.8.18

Hazaran



porque somos centenas e centenas de metros
de alguma coisa
que não sairá de dentro da pedra
porque somos centenas e centenas de metros
para alguma coisa

porque eu a vi do alto do Hazaran
para o nada
porque ela me viu do alto do Hazaran
para o nada



14.8.18

Sentinela





durmo 3 horas por dia em horários aleatórios quando bate o cansaço e meus músculos pedem misericórdia 

sentada na frente da casa arruinada pelo homem vigio pôr sol lua escaramuças de nuvens e sombras todos os acessos ao norte sul leste oeste de onde vêm fumaça perfumes uma ak sempre no colo 3 rotts ao meu lado a comida que preparo na bolsa térmica

observo pássaros e seus cantos planto enxerto molho tudo é primavera no meu sangue 

se o sono me tortura entro na tenda de dois lugares os cães acordam com meu ressonar e sabem que é chegada a hora de eles caçarem o que há para ser caçado

a arma dentro do saco de dormir a água fresca poemas impressos

um soneto estudantil basta para me acalmar e à cantilena das corujas

tempo de acordar rastejo até a pedra de observação 

meu ofício é cuidar vigiar proteger nutrir

não ouvir uma palavra mas ler todas

aqui não há por onde entrar sem que eu não veja

nem pelas páginas dos livros

esboços ou croquis

movediças

ficção e realidade sei bem

são terras diferentes

da minha emboscada

do pó dessas botas de mulher 

a eletricidade sobe pelo meu corpo

trocamos tiros

chamo vida



12.8.18

Vou fazer um poema



Vou fazer um poema 
ou comprar uma marreta.
Giro os polegares das mãos sobre a barriga branca.
Comprar uma marreta.
Fazer um poema. 
Comprar um poema.
Fazer uma marreta. 
Poema.
Marreta.
A barriga não mais estava lá, branca.