19.5.20

Oscillaria





A malária é o corpo em ebulição.
Fazíamos o impensável com um décimo de consciência.
Quatro mamilos em ponta.
Sexo empapuçado.
Torpor convulsão êxtase.
Havia uma cidade antiga encoberta pela areia,
uma fonte de água baça,
o aposento com dois ambientes separados
por uma porta de escrita cuneiforme
que produzia ecos ao ser fechada.
Um paroxismo próximo,
dentro do parasita,
marcava os segundos.
O leito.
Não dava para saber se era hotel,
nossa própria casa.
O som de motocicletas e carroças dissipado,
o sol e a noite miasmavam pelas frinchas das janelas.
Cuidávamos uma da outra quando alguém
podia manter-se de pé por alguns minutos.
Enxames de espera,
até completarem o ciclo da esquizogonia.
Não a cura.
Recuo e recrudescimento.
As paredes verdes interpretavam cenas bucólicas
com suas linhas de limo e nuvens de mofo.
Nossas mãos coladas em sonhos sucessivos, inacabados.
Os papéis todos escritos.
Não havia mais onde escrever e com o quê.
Domingo ou quarta.
Norte ou sul.
Lá fora, uma erosão no alto da rocha,
degraus encovados de uma longa escadaria.
Subimos por ali.
Parece tanto tempo.
A febre afrouxando,
a consciência plena restituída,
não seríamos mais as mesmas.
Desconhecidas outra vez,
nos despediríamos no saguão antes do voo partir.
Não durariam para sempre.
O tremor, os sonhos, nossos corpos, a escadaria, o fim ––
o abrigo daquele céu.




18.5.20

1 poema de Katerina Gogou




O Meu Maior Medo



O meu maior medo 
é o de transformar-me em "uma poeta"... 
Ficar trancada no quarto olhando o mar e esquecer... 
Medo de que os pontos em minhas veias cicatrizem 
e que, em vez de ter uma vaga memória dos noticiários de TV, 
eu passe a rabiscar papéis e vender "meus pontos de vista"... 
Medo de que os que passaram por cima de nós possam me aceitar para poderem me usar. 
Medo de que meus gritos virem um murmúrio para fazer o meu povo dormir. 
Medo de aprender a usar métrica e ritmo e ficar presa dentro deles 
ansiando que meus versos se tornem canções populares. 
Medo de vir a comprar binóculos para ver de perto 
as ações de sabotagem das quais não estarei participando. 
Medo de cansar-me -- uma presa fácil para padres e acadêmicos -- 
e com isso transformar-me em uma mulherzinha covarde 
Eles têm seus métodos... 
Podem utilizar a rotina com que nos acostumamos, 
já nos transformaram em cães: 
nos deram a vergonha por não trabalhar... 
depois o orgulho por estarmos desempregados... 
É assim que é. Psiquiatras astutos e policiais deploráveis 
esperam por nós nas esquinas.
Marx... 
É outro medo 
Eu não o esqueço também...
Esses filhos da puta ... a culpa é toda deles... 
Eu não consigo -- merda -- nem terminar de escrever isso 
Talvez... hum?... talvez um outro dia... 



(Katerina Gogou (1940-1993) foi uma poeta grega anarquista e figura representativa do radicalismo político e da cena cultural dos anos 1980 em Exarchia. Katerina nasceu em Atenas e os primeiros anos de sua vida foram marcados pela fome, a ocupação nazista, a resistência e a guerra civil. Participou de mais de 30 filmes gregos. Sua poesia de forte impacto está fincada na condição humana e na rebeldia revolucionária de conteúdo anarco-comunista. Katerina cometeu suicídio aos 53 anos com overdose de barbitúricos. 

No áudio acima, com passagens em francês e inglês, você pode conhecer mais dela e ouvi-la. Traduzi "O Meu Maior Medo" pela versão em inglês de G. Chalkiadakis.) 

14.5.20

Fui eu







Há algo errado no paraíso 
É muito mais que contradição 
Você caindo num precipício 
Eu me jogando de um avião 
#

(repurposing lyrics)

12.5.20

Alma Ata




é minha companheira de viagem
o terno branco
o ópio
o animal na fronteira
este animal
que
preciso ultrapassar-me
saltar a campa encerada
é minha companheira de viagem
amêndoa
cólera
a rua seca em que piso
sombreada de monumentos
a carne esganada pelo bronze
subitamente o rosto
é minha companheira de viagem
o pulso rápido da cortina do hotel
a poltrona fora de jeito
o crânio do cavalo que abraço
e fugimos com minhas patas
por seis dias e sete noites
formando um anel no mapa da terra
e cinquenta graus abaixo de zero
nossas gargantas paralelas
encarniçadas
abrindo uma esteira ensanguentada
até Alma Ata.




11.5.20

História curta




Maxi era uma criança de uns sete anos. Comum, sem nada que a destacasse. Gostava de estudar terças, quintas e sábados. Às vezes era menina, às vezes menino. De manhã era menina, de tarde menino e à noite eu não conseguia enxergar. Maxi foi o nome que eu dei porque não ia perguntar certas coisas aos seus pais que eu nem conhecia direito. Maxi andava a sós pelas ruas. Apenas seus patins levavam seu corpo à praça do bairro. Uma pista de concreto. O gelo chegaria em nossa cidade anos depois, quando Maxi falou comigo pela primeira vez e me contou que só estudava terças, quintas e sábados. E o que você faz segundas, quartas e sextas? Converso com Bia e Pedro. Quem são Bia e Pedro? Eu, né. Você conversa com vocês? É, e você não perguntou dos domingos. O que você faz aos domingos? Eu penso no que conversei com Bia e Pedro e vejo quem tem razão. Maxi olhou minhas mãos vazias. Eu não tinha tela porque perdi três e não me deram outra nunca mais. Maxi teve pena de mim e jogou a sua fora na lixeira da praça para ficarmos iguais. Minha mãe diz que eu sou menina, mas na escola dizem, Você é menino. Maxi respondeu que lhe acontecia o mesmo só que no oposto. A gente não entendia por que o tempo ficava passando na nossa frente de pipoca na mão. Por que nossos pais, a escola --- todo o mundo e os Dias começaram a nos dizer o contrário do que diziam no início. 



Exaure



As pálpebras do olho esquerdo começam a tremer.

Quando fazem assim, ela sabe o que está por vir.

Há um choro de 20 anos trancafiado na caixa dos ISRS.

Um choro adulto robusto e flutuante

que vaza na mesa do jantar sem dizer

palavra.

Exaure.

Ele não sabe por que ela o chamou.

Não sabe de nada.

Verte.

Obedece 

e volta para a caixa mais uma vez.





8.5.20

Tu es ma coma

small steps against inertia





music play moulder


tu es ma coma
alors
très content pourquois thwere is ink
in this fucking ma   typewriter
un petit village parfumé les mots
que rest le til de nos amours
a souvenir sans success
moi passé bien
comme un garçon avec cheveux longs
je suis une petite fille
ma motô fait quelque chose de moi
comme ça
la la lá
la la lá
la chansonette avec syndrome de Tourette
(2 times)
public métier tien tien
le coeur en fête
j’ai dit bonjour
(palmas)
as the music dies
je vais déjeuner peut-êtres
le coeur en bête
je vais déjeuner un aquoiboniste idéaliste
qui entré dans mon photographiste
aquoitriste aquoitriste
les yeux qui fascine son sépares
la tournée de glacê
longtemps longtemps
après le désespoir
la petit bactérie
discret
confess la douleur
un jour qui sait
chantera pour dormir
artiste ou vagabond
paris le ciel deux
un philosophe ah sim
un cagaión du siècle
mon coeur débâcle comme un animal
well i think is fine
taking a ride
on a slot machine
yes
but my friends're the friends born in japan
im looking for a hard-pelved woman
and she says,
o babe thats my hard wild world,
and i knew what a lot the world can do




mp/fluxo em máquina mecânica/







6.5.20

Mo Ghràidh





Sai do banho abrasador e o vapor se espalha pelo quarto. Sua cabeça dá um lento giro de coruja. Por um momento imagina-se no pico mais dramático das Gàidhealtachd. Digo isso porque o conceito de “Terras Altas” há muito foi aviltado pelo feudo Disney e hoje é atribuído a qualquer daquelas colinazinhas ovoides vagabundas da Irlanda, mas se você diz A'Gàidhealtachd, aí sim, é sinal de que Elizabeth II já está plenamente cozida. Rende 8 porções. Mo Ghràidh então serve-se de uma dose tripla de Talisker puro e fica apreciando quimericamente as ovelhas lá no pé com um gosto de alga marinha na boca. Vem ao devaneio se o que Mallarmé faria com ela na cama da rue Rome 89 seria sugestão ou inação transfigurada. Mas seu prazer dura pouco. Uma repentina voz de pedra gargalha pela lâmpada acesa do teto e começa a entoar "Chan eil deireadh aig bròn", de Tom e Vinicius. Terminada a música inteira em Celtic fusion, o espectro transtorna de humor e urra em gaélico escocês: "Nào sei por que essa tua melancolia. Senta aì e escreve logo uma bodega qualquer para enfunar o teu leabhar. Para com essa gesta de bancar a Patti Smith discìpula de Adèlia Prado." Ora, Mo Ghràidh jamais leu um livro sequer de Patti Smith, pensei em responder por ela sem me importar se era verdade. Além disso, Como posso dar ouvidos a quem, na falta de panela, cozinha em bucho de carneiro?, ela pensou sem dizer nada.  Apenas grunhiu "Fàg mi leam fhèin", apagou a luz de voz intrometida, pegou a toalha e se pôs a secar os metacárpicos redondilhos. A máquina de escrever esperando sobre a mesa. Eu, da mesma forma, esperava ver o que sairia escrito para poder copiar. Há duas semanas a máquina está parada ali desde que ela a resgatou do gabinete dos fundos. Por enquanto, permanece calada. As barras dos tipos enferrujando. Eu poderia fazê-la falar como fiz com a lâmpada. Poderia fazer com que todas as tranqueiras do cenário começassem a taramelar. Mal posso andar por aqui para prosseguir com minha (aice) história. (Eu tencionava 45 capítulos gordos com 2 ideias gerais, centenas de desenvolvimentos frívolos para cada uma, corpo  14, espaço duplo.) O vapor encarcerado enfim se dissipa e Mo se veste em trinta minutos porque são inúmeras camadas e a temperatura desabou veramente nas Gàidhealtachd. Eu fico morrendo de calor com tanta roupa. Mas... o que está acontecendo aqui? A imaginação dessa manceba já foi longe demais. Não posso mais alcançá-la. Açodada, desce a montanha correndo e temo que tropece e se esborrache no lombo das ovelhas que coloquei ali somente para ilustrar a passagem. Fiquei só e sem input. Vou te contar, digo alto enquanto cheiro uma carreira de álcool gel. Os personagens não têm mais respeito por ninguém. Primeiro conselho de Áed mac Cináeda: “Não escrevas muito. Vão ler coisas que não disseste.”