5.11.19

Dentro do azul




Abro os olhos dentro do azul. 
Os peixes abraçam meus gritos. 
 
A água banha minha boca. 
Nado fundo para longe.











1.11.19

Marylebone






Marylebone


Então acendi a luz de cabeceira, vesti uma calça jeans, uma blusa leve e fui preparar o café. Olhei pela janela dupla e vi que estava nublado. Brian ainda dormia profundamente quando peguei minha capa e saí batendo de leve a porta. Entrei no meu SUV e liguei o motor. Coloquei a pasta no banco do carona e uma forte chuva enfim despencou. Quando os limpadores de para-brisa começaram a dançar, pensei em Suzy sozinha no escritório. Devia estar nervosa. Hoje seria um dia de grandes decisões. E Roger só contava conosco. A empresa estava mal das pernas. Roger. Pensar nele ainda borbulhava meu sangue. Brian não sabe do meu passado. Com Roger. Sei que um dia terei de revelar tudo. Passei pelo Regent's Park. Vazio. Estranhei. Onde estava todo mundo?

Após quatro horas de brainstorming, Suzy, Roger e eu tomamos 228 decisões divididas em planos A e B para tirar a firma do lamaçal em que se encontrava. Na hora do almoço, liguei pela undécima vez para Brian. Ele não atendia. Tenho certeza de que o deixei dormindo ao sair de casa. Era tão parecido. Olhei para a foto de Brian na tela do meu celular. Confirmei. Sim, aquele era Brian que dormia na minha cama. O meu marido. Suzy e Roger perceberam minha confusão, mas não disseram nada. O chardonnay estava delicioso. Fiquei desmanchando a rolha para disfarçar o desassossego. Roger ficou contando piadas corporativas para me animar. Foi com Roger que tomei o primeiro chardonnay de minha vida. Em Navarra. Ou teria sido Abruzzo? Estava tão apaixonada que todas as cidades pareciam a mesma. Como o buraco onde nasci em Idaho. Eu precisaria escrever dois livros só para contar de como saí de Bonners Ferry para acabar parando em Marylebone, do outro lado do Atlântico. Mas não foi esse o combinado com o editor. Engasguei com o desfecho de uma piada sem graça e tossi discretamente no guardanapo imaculado. Não vi sangue. Guardei o guardanapo na bolsa. A própria palavra me deu essa ideia. Vamos?, disse Roger. Pegou-me pela mão e puxou-me para a porta giratória. Entalamos. Ele me beijou. Um truque batido. Quando virei o rosto, Brian estava do outro lado do vidro. Fuzilou-me com meio olhar. Bati no vidro desesperada mas Brian já tinha entrado e sumido na caverna do restaurante. A porta parou de rodopiar, cuspiu-me e quase caí de boca na calçada. Roger e Suzy me seguraram. Despedi-me sôfrega e fui atrás de Brian no giro seguinte da porta. Eu nunca quis ser bailarina.

Brian foi mais rápido. Não o achei em canto nenhum do restaurante. Nem no gentleman. O maître me olhava perplexo. Liguei de novo. Nada. Ninguém atendeu nas mesas. Fui até o balcão e pedi um Wild Turkey duplo. Eu precisava de um sopro do Kentucky para colocar as ideias no lugar. Na segunda dose minhas mãos já não tremiam e comecei a duvidar de que o homem que me olhou com raiva fosse Brian. Tantos homens têm a cara do meu marido. Até este bartender. Foi a culpa, pensei. Por ter deixado Roger me beijar. O brianesco desconhecido olhou-me furioso porque ficou preso na porta esperando eu recolher minha língua da boca de Roger, apenas isso. Recebi três ligações do escritório. Não atendi. Não tinha mais disposição de trabalho. Bebi uma Perrier com uma pílula antiporre, paguei a conta e voltei para o SUV. Eu ia para casa. Sim. Eu ia tirar esta história a limpo.

Ligo o som do carro e "July Morning" explode por meus olhos. Maldição, eu nunca devia ter saído de Idaho. Merda por merda. Aperto fundo o acelerador. Este dia tem de acabar, e depressa.

Passo pelo Madame Tussauds, reduzo a velocidade mas não a do coração. Foi na fila do museu de cera que conheci Brian há três anos. Um namoro a jato, um casamento a jato. Não era bem assim que eu havia planejado para querer. Nunca fui de rompantes. Levei dez anos para abandonar a morta Bonners Ferry. Brian estaria morto também? Mais uma figura para o museu? O meu museu. Estacionei de qualquer jeito na frente de casa, me confundi com as chaves e, sobressalto. A porta estava aberta. Puxei da bolsa o meu Chic Lady calibre 38 e vasculhei o primeiro andar. Ninguém. Silêncio completo. Tudo no lugar. Subi a escada para a nossa suíte master. Meu pai costumava dizer que eu ainda não estava preparada. Mal sabe ele. Meu pai ensinou-me tudo o que sabia, mas eu aprendi muito mais por mim mesma. Agora é tarde, meu velho. O celular de Brian na mesinha de cabeceira, intocado, cama desfeita e nada do corpo de Brian. Impossível. Ele não estava pronto ainda. Precisava de uns arremates. Podia perfeitamente atender meus telefonemas, andar pela casa, ver tv. Até sair. Corri para o sótão.

"Onde está Brian, papai? Ele esteve aqui? Anda, fala!" O velho mudo. Peguei o estilete, o martelo, e abri um buraco no ponto da boca. Outro no do ouvido. Repeti a pergunta aos gritos. Nenhuma palavra. Filho da puta. Olhei para mamãe ao lado dele. Repeti o procedimento com ela, com meus dois irmãos e o filho que tive com Roger. Não responderam, se fingiram de mortos. Eu nem precisaria furá-los, eles sabiam de tudo que acontecia na casa, ouviam tudo, a minha vida. Sempre souberam, desde Idaho. Eu ouvia os cochichos naquele sótão. Tranquei o lugar dessa vez, desci e fui tomar um relaxante banho de banheira na companhia de Chic Lady e uma garrafa de Ableforth's Bathtub, um preferido. Precisava pensar nos meus próximos passos. Em algum lugar daquela Geena eu acharia Brian. Roger podia esperar.

Com Patsy Cline, o gim descia muito melhor.

Sequei a garrafa e o corpo e fui me deitar.

Mrs. Paradine acabou confessando. Que parva, e eu aqui em vez de dormir, vendo este final vulgar da vitória do patíbulo britânico e o retorno do advogado fracassado e infiel ao seio do lar. Filmes. Cama vazia, travesseiros macios, uma taça final de chablis, amanhã será um longo dia.

Sonho com nossa voyage à deux na Turquia. Brian ao meu lado na tumba de Noé após uma extenuante subida ao monte Ararat. Uma jornada intensa, comendo cebolas cruas com leitelho para evitarmos os efeitos devastadores da água salobra no estômago. Brian sempre quieto, observador. Em certos momentos cheguei a achar que estava sozinha. Brian oculto por um camelo. Afogado no Arax. Um relevo na pedra. Encoberto por uma gigantesca xícara de chá. Eu nunca divisava o seu rosto. Acordei quando uma avalanche arrastou a estalagem comigo dentro.

Pego um trânsito infernal na Knightsbridge, chego atrasada na firma e me enfio na minha sala. Roger e Suzy me deram olhares de tudo bem? Eu olhei afirmativamente com um twist de me deixem em paz. Basta isso em Londres. Em Idaho me trariam uma travessa de donuts para puxar assunto, sinônimo de fuçar a vida alheia. Desisto de ligar para Brian. Desisto de Brian. Verifico e-mails. Deleto tudo. Abro a última gaveta da minha mesa. Cartas de Brian com sua letra infantil. Bonners Ferry High School.

Não quero ficar marcando passo nesta cidade, você precisa entender. Não nasci para criar porco em fazenda. Papai ainda espera uma nova corrida do ouro. Preciso ir embora, querida. O cinema mudo acabou. Vou para Moscow, tentar uma vaga na Universidade de Idaho. Seus pais não deixariam você ir comigo. Um dia talvez eu volte. Perdoe-me e seja feliz. Com amor, Brian.


Tenho uma vertigem. Deito a cabeça na mesa. Não choro. A Arca de Noé inteira passa por meus pensamentos. Eu na primeira fila do curso de modelagem em cera na escola do meu pai. Eu a primeira aluna da escola. Um futuro brilhante pela frente. A despedida de Brian. Cachorro. Minhas duas tentativas de suicídio com blocos maciços de cera. A internação. Brian casando com uma porca e tendo filhos porcos dos quais alegava querer fugir. Meu pai me colocando num avião para Londres, “aperfeiçoar o meu talento”. Eu me embriagando no Elephants Head, torrando todas as economias do meu pai. Roger. Um dia. No balcão. Na semana seguinte na sua firma. Aqui. Cabeça baixa na mesa. O filho estranho que joguei fora. Vertigem. Papai nem pôde vir conhecer as obras-primas que fiz de nossa família. Morreu depois que parti. Agora é tarde, Noé.