31.5.15

Enchimento do mundo



Maldita cidade
maldita gente
malditos os que não sabem comer sem fazer barulho
os que não sabem viver sem fazer barulho
os que não sabem se divertir sem fazer barulho
os que não sabem foder
os que não sabem
da glória de foder sem fazer barulho
que é a foda mais gostosa
a que ninguém pode saber
a que ninguém pode ouvir
vou-me embora deste inferno
vou embora daqui
vou morar em Paty
nos grotões escuros
na surdez nublada
na terra imberbe do cu de Paty do Alferes
tenho apenas dois ouvidos
e todo o enchimento do mundo


29.5.15

Diário completo




Estou aqui esperando que ela escreva por mim.  
Eu mesma não faço nada. 
Abro o saco de ração e distribuo. 
Tomo café. Tarde. 
A chuva de ontem. 
Passo pela chuva de ontem. 
Espero. 
A espera são movimentos peristálticos 
de crianças já mortas brincando 
no pátio do colégio até o sinal tocar. 
A última água escorre pelas calhas. 
Esta casa em meio às folhas.
As mesmas vozes do dia em que nasci.
Tomo-as em minhas mãos. 
Penso em não esperar mais. 
Vou ao quarto dela e possuo seu Diário Completo. 
Um frio nas costas entra pela porta aberta. 
Um mapa inteiro. 
A espuma escorre pelos cantos da boca. 
Deixo o livro estendido sobre a cama e me afasto. 
Hoje é o meu dia de preparar o almoço.


26.5.15

Carne tua




Eu relia umas páginas de Joyce sem muito entusiasmo

Anda levanta daí, vamos ao necrotério comigo,

tem um defuntinho fresco lá;

Minas Gerais


Mascando chiclete,

Hélas era amiga do patologista
e minha amante

Vamos logo, te dou uma caixa de Bis

Hélas era dona de um armazém

Fechei o livro sem muito entusiasmo

Em Minas até o chocolate é jesuíta

Fomos a pé

Duas quadras
Santa Casa da Misericórdia
O quintal coberto de abacates

Eu não vou entrar


Hélas entrou sozinha

no seu cenário artístico nacional:
"Eu não saberia viver sem a paixão pelos mortos"
Uma dessas frases que conquistam
o nem tudo está perdido

Fico fumando perto dos abacates

Os abacates da Misericórdia
Dona Rachel viveu uma história parecida
Tinha uma amante que não era amante
E gostava de conversar com defunto
Uma cabeça de mulher
Um pé virado
Aquela pele cinza, fluida
Chega, dona Rachel, estou ficando enjoada
Fico zonza e vejo espadachins entre os abacates
Um amigo ou outro
Dona Rachel é da companhia de seguros
Me vendeu um terreno em Paraty
"Para a sua aposentadoria"

Hélas está há uma hora lá dentro

Uma hora que me sobra
Espalho a terra no chão e fico olhando
Será que minha mãe morta sabe que morei em Minas?

Hélas vem correndo,

cospe o chiclete 
e vomita sobre os abacates
as lembranças que me sobram







21.5.15

Eu amo a sua mãe



Eu amo a sua mãe.
Não é de hoje que só amamos nossos parentes.
Aquele Corcel azul maior que o meu quarto de dormir.
Todo Natal um Chester com farofa.
A sua foto com ela em nossa cabeceira.
Eu amo é a sua mãe. 
E gozamos num átimo.





20.5.15

Ficamos parados ali por um tempo





Estou seguindo esse filho da puta há 4 horas e ele só faz andar. Não senta num banco de praça, num degrau de igreja, num engradado de cerveja. Não entra num boteco pra tomar café, uma talagada de cachaça, um maldito ovo colorido. Nem numa lanchonete fresca pra tomar suco de hortaliça. Não para numa banca de jornal nem pra ler de graça os títulos que deram às misérias do dia. Não para pra mijar. Não para pro pitoresco. Um prédio após o outro e o corno não entra em nenhum. Não tem amante, não tem cliente, não tem patrão, não tem parente. Só faz andar. Olha que pernas ridículas. O cabelo batido na cabeça. Ombros estreitos e caídos. Um fracasso. Passa pela praia e não senta pra pegar um sol. Senta aí, desgraçado. Tá um calor infernal. Estou quebrado já. E anda rápido o infeliz. Que história terei pra contar? Ele mora no bairro e não para pra falar com ninguém. Uma paradinha só. Ninguém cumprimenta o demente. Um simples aceno, nada. Não acende o cigarro de ninguém. Caminha reto. Sem olhar para os lados. Sem olhar para trás. Não tem a ânsia dos fugitivos. Se olhasse para trás, eu teria de me esconder. Pelo menos isso. E se na hora não tiver uma árvore, um poste, um gordo? Não sei como ele ainda não foi atropelado. Atravessa mecanicamente, como se seguisse um comando, a Providência divina. Um robô. Um profeta. Sujeito maluco. Estou seguindo um maluco. Ele não vê que estou seguindo um maluco? Chego a pensar que ele está querendo me levar para algum lugar. Que ele é que me segue invertido. Penso mil bobagens. Andar me faz pensar. Só besteira. Tem gente que gosta. Distrai. Alguns conseguem não pensar em coisa nenhuma, como se parados a coisa nenhuma virasse séria. Eu para refletir preciso de poltrona. Estar com a bunda relaxada num assento macio. Excomungado. Virou outra esquina. Estamos na divisa com outro bairro. Quantos mais? Acho que vou andar a cidade inteira hoje. Esta cidade miserável. Preciso parar. Tenho sede. Esqueci de trazer suprimentos. Burro. Meu corpo começa a sentir a caminhada desenfreada, o movimento constante e igual. Daqui a pouco vou precisar me alongar, erguer os braços, rebolar, dançar, e tudo isso sem parar de andar. Minha conta no banco está zerando e seguir este viado me dará alguns zeros de conforto. Não sei por que alguém ia querer seguir este inútil. Há 4 dias é assim. Essa maratona no deserto. Não olho para ninguém. Não olho para os lados. Só para ele à minha frente. Não sei como não fui atropelado. Tenho vontade de ultrapassá-lo só pra ele ver como seguir alguém é bom. Ele não faz ideia. Corno. Eu poderia dar um tiro naquelas costas. Não, nas perninhas inquietas. Sim, as malditas pernas. Essas pernas têm de parar de andar. Que inveja das histórias que dizem "Ficamos parados ali por um tempo". Faça alguma coisa, demente. Olhe para trás e fale comigo. Venha pedir satisfações. Pergunte as horas. Um endereço. Estou mirando a sua cabeça há 4 semanas e só faço andar. O alvo já está decorado, em todas as suas variações de ângulo. Se a rua desce, pow. Se sobe, pow. Eu vou te matar, palerma. Faça alguma coisa ou eu vou te matar. Eu preciso de uma história pra contar.







9.5.15

Vou sumir aos pouquinhos




vou sumir aos pouquinhos
você não vai nem notar
primeiro aqui
depois ali
do telefone
do microfone
das redes sociais
das palavras que escrevo
com grafites finos cada vez mais
vou sumir da cama
da mesa
das nossas conversas
do sorriso que lhe dou
dos beijos que mando
você não vai nem notar
vou sumir aos pouquinhos
dos meus olhos bem abertos
ninguém precisa nem fechar




7.5.15

II - nhém-nhém (esparsos)



the nerve inside the trigger
controls the pen.
fingers, they hold the heart.
liver, it fibers the whole person


#


quem come pouco

a longevidade é maior
e digo isto de boca cheia
se bem que não entendo
como haveria longevidade
menor se é longe+vidade
sendo vidade coisas que
a vida faz e é
quem come pouco vive mais
pois então
isso significa viver mais
para não comer nada
poupar o duodeno
o bolso 
o tempo que se perde
mastigando em vez de
trabalhar
seu vagabundo
cuspo um caroço
mentira
Ornella faz sons 
de quem come inhame
me oferece leite
sabendo que detesto
me dá gases
me aperta o peito
me escreve de Montes Claros
a eletrônica na literatura
estamos lendo juntas
trocamos vidades e ciaos
ao contrário de você
que vive em Nova York
e finge que não me conhece
que não me comeu
vais viver muito
querida

#


alguém me liga 
de São Paulo
sem parar
meu novo celular
pessoalíssimo
intransferível
antes de haver palavra
ignoro

#


quero fazer sexo [agora]

no quarto andar
de um prédio velho
na Moldávia

acho [não vai dar tempo]


#


olho para trás

foi tudo tão ridículo tão rápido
tão ridiculamente rápido
tão rapidamente ridículo

#


vento que venta aqui

vai ventar no piauí
vento que venta cá
vai ventar no amapá

o galo cantou 6 vezes


#


amassar papel é fácil

quebrá-lo
leia agora pra ver se o que eu disse
lhe parece mais bonito

#


boy hacer un expurgo en mi bida personal

córrete
córrete para lejos

#


muerte a credito, de céline

estoy con boletos en día

#


eu já nem sei

se eu te dou agora
ou se já dei

#


poesia: eu não era da puc


#


você me reprovou

e eu nem liguei

#


ele quer me vender uma roleta velha

com dois números apagados que eu
nem sei se gira mais
mancha de uísque, foi?
é, mas escocês

#


que legumeira

#


passeio pelo espólio do sr. Estelita


#


cantarolo eu já nem sei


#


balde de gelo oxidado

hum

#


cadê a biblioteca de poesia?


#


começa logo a porra desse leilão

tomo um vinho do Porto

#


você não foi aquele que eu queria para mim


#

eu não viajei isso tudo

para ver de onde vim
pintada numa palheta
por... quanto?

#


eu quero ser uma locomotiva...


#


esperando


#


quantos castiçais tinha nessa casa?

397?

#


vim lá do caralho pra arrematar

o texto completo do Vianninha
show do Opinião
quero ver se algum filho da...
três seringas vaginais usadas?

#

já cantarolei eu já nem sei 17 vezes


#


eu devia estar me orientando pelas nuvens

quando decidi vir neste leilão

#


O Mundo dos Artrópodes, lance livre


#


arrematei

yeah, vendido Vianninha
pra mim
10 reais
vale pelo menos 200
enfim, uma mulher de negócios
eu já nem sei é nada
Carcará pega matá e come!

#


por onde sai desta merda?


#

o cafezinho caiu bem

raaaalo, mas quente
estou no táxi
só assim eu acredito nessa história
que você sentiu saudade de meter
ando tão vulgar

#


ela ainda saiu puta por não

esperarmos o lote dos balagandãs da Bahia
eu já nem sei

#



Elis Regina e Al Jazeera
não vi a relação
[quando o cansaço era Rio]
o que foi feito de nós
penso um pouco
depois desço

#





4.5.15

Adoro




Adoro la calle en que nos vimos;
La noche cuando nos conocimos,
Adoro las cosas que me dices;
Nuestros ratos felices
Los adoro, vida mía.

....................................


(muchas gracias, Chavela)




I - nhém-nhém (esparsos)

#

1. fumando 

2. comendo chocolates 
3. triste 
4. sem sair do lugar
5. é só uma questão de tempo

confirmo amanhã 17 horas


#


de pensar em apagar minha identidade

ir embora pra sempre
ser outra
já me dá diarreia
como sair pela rua sozinha
e toda cagada?

#


não levo nada

só a roupa do corpo e um casaco na mão
a carteira de identidade da outra que fui
um cartão com o que resta do meu dinheiro
estou com medo
vou ser atendente numa loja de móveis
de demolição

#


nunca mais ver um livro

nunca mais segurar uma caneta
só pra preencher nota fiscal
nunca mais poesia
nem prosa 
tanto faz o azul do vermelho
deixarei muitos dicionários

#


nhem-nhem

nhem-nhem
poesia só tem gente chata
limpo o pozinho da mesa
com um pincel de cerdas louras

#


os meus vinis

alguém há de ouvir e ser feliz
rima pobre
caros discos
ponham capinhas

#


podia voltar a dar aulas de inglês

a noite depois dos móveis de demolição
preciso pagar as cartelas do coração
as cartelas do sono
do you like our owl, mr. deckard?

#


ainda não comi hoje.

uma da tarde.
alcatrão orgânico

#


vou sentir falta do ventilador

me ajuda a respirar

#


a janelinha do ônibus serve pra chorar

lanchonete 
posto de gasolina 
fila da mega-sena

#


saí sem me despedir

i beg your pardon

#


mandei dois torpedos

um sanduíche de atum
um milk-shake de chocolate

#


ninguém responde


#


não comi


#


estou sem créditos

sem cotonete
ouço bem

#


nenhum pensamento relevante

olho o relógio sem ver as horas
nunca foi motivo para tê-los

#


espirro em cima de uma ilustração

de uma Rubus caesius
que estrago
floração de junho a julho

#


não me vem uma canção

como faço pra deixar de ser?
como faço pra fazer?
uma mulher na minha idade
essas perguntas me acabrunham

#


eu poderia ficar aqui o dia inteiro

mas espero um torpedo
um míssil
o buraco onde me enfiar
e sair do outro lado do mundo
a senhora está bem?
sim, adoçante, por favor

#


o dr. Horder confirma

amanhã 17 horas
desligamos

#


volto pra casa e me visto de mim

outra vez
dou uma caixa de bis à Callas
assino o recibo do pgto. de maio
e como três croquetes de carne
que ela me trouxe da Grécia

#


ser mim é fácil

quero ver é ser eu

#

amigos.
mais cedo ou bem mais tarde
eles vão te trair.
comece agora

#


talvez eu esteja sendo muito pessoal

afinal você vai para Campinas amanhã cedo
Campinas é bem mais perto

#


"The world is full of paper. Write to me."

Maybe I'm a thousand pieces.

#


kill grief 

with a pious backstreet bottle of gin




telegrama



és uma poeta moderna (aceita)
tens umas delicadezas (surpresas)
que fazem ó no meu peito (direito)
uma fonteyn dançando fontaine
entre mins so exemplares do maine
teu livro chegou 1 mês atrasado (recado)





1.5.15

Gilda




Oi, Gilda, sou eu. Aqui de Campos. Não reconhece minha voz? Eu reconheço. A sua. Como esquecer essa voz tão querida. Ficou muda? É a emoção. Aquele bolo na garganta que não deixa passar um fio de cabelo. Você não esqueceu de Campos, tenho certeza. Ou as areias escaldantes de Copacabana empaçocaram sua memória? Pode ter esquecido de mim, mas não, não de Campos. Ainda não está lembrada. Que tristeza. Pois eu lembro até da cor do vestido que Gilda usava no enterro de papai. Sabe, a única coisa que ainda preservo da minha juventude é a memória intacta. Eu ando por seu labirinto e chego rapidamente ao alvo desejado: o quem, quando, onde e como. Você se lembra do enterro de papai? Se lembra do papai antes do enterro? Papai, o que demorou a morrer. É assim que chamo, como nas aventuras de Homero. Como um semideus. Bom, pelo visto vou ficar aqui falando sozinha. Eu sei que você está aí. Ouço o respirar. Sei até que está de pé. Tão surpresa que nem teve expediente para se sentar. Gilda ainda suspira muito? Eu e minhas perguntas. Papai, o que demorou a morrer, dizia que eu fazia perguntas demais. Muito curiosa. Como podem culpar alguém por ter sede de saber? Já viu isso? O mundo anda mesmo de quatro. Meu filho, por exemplo. É tão burro, Gilda. Meu filho, o neto do que demorou a morrer. Você deve estar se perguntando por que diabos estou ligando depois de tanto tempo. Vejo as perguntas rolando por sua cabeça que nem no telejornal. Não pense que ligo para pedir alguma coisa – dinheiro. Ou dar uma notícia ruim. As notícias ruins, todas foram dadas. Sobrou nenhuma. As boas, eu não conto para não despertar invejas. Aquela Gilda era muito invejosa na mocidade. Pedia emprestado minhas roupas, meu batom, meus livros, furtava meus namorados, minhas garotas. Aonde eu quero chegar com essa conversa. Sabe que não sei? Vou falando. É que me deu uma saudade de ouvir sua voz que não estou ouvindo. Mas que importa? Eu sei como é a sua voz. Lembro tão bem. Sempre soando pelos cantos da casa. Me chamando. Me procurando. Me advertindo. Me xingando. E rindo. Rindo alto. O que há em mim para rir? Olho a minha cara no espelho e não acho nada. Estou com tanta saudade do seu suflê de cenoura. Das suas mãos fazendo o suflê de cenoura. Os pulsos finos. Da sua boca provando o suflê de cenoura. Lábios finos. Você nem deve lembrar do meu pulso, dos meus lábios. Mas lembra sim. Hoje está um dia bonito. Se Gilda estivesse aqui, poderíamos passear. Sabia que toda vez que saio com uma pessoa querida guardo as pedrinhas que ficaram presas na sola de meus sapatos enquanto caminhávamos? Esta ligação vai sair cara para quem não está dizendo coisa com coisa. Gilda está perdendo seu tempo comigo. Isso já me traz uma felicidade mínima, porém exultante na sua minimidade. O cascalho preso na sola. É assim que sei quando gosto de alguém. Ando muito perturbada. Acossada por sensações desencontradas, uma atrás da outra. Chego a suar. Este chalé ensolarado, talvez seja o meu último. Tenho de fazer um registro disso. Gosto de perambular pelas palavras sem chegar a lugar algum. Campos. Sem ninguém para se intrometer. Gosto de ligar para Gilda porque ela nunca responde. Ouve tudo quietinha. Etérea. Por isso escrevo. Quem lê fica quietinho. Desaparece. Esperando que algo aconteça do nada. Que os carneiros passem correndo. Que uma flor brote lentamente da estufa. Água doce, água salgada. Que um pré-rafaelita pinte o seu tumor cerebral. Imagino o que pensam. É uma lista de possibilidades assustadoras. Mas não me assusto. Desaparecem. Se você estivesse aqui, veria. Eu mostraria meu diário de boa vontade. Gilda não precisaria roubá-lo para ler ao banheiro. Gilda, a ausência constante em minha vida. Uma blusa jogada na cama. Como eu peço para isso tudo acabar agora? Vida: precisa-se de almas para uma viagem arriscada. Paga-se pouco. Frio e calor intensos. Longos anos de completa escuridão e trabalho penoso. Perigo constante. Retorno duvidoso. Recomendações à família.