29.4.18

O corredor de Lucia






Lucia, 

era a primeira vez que andava 

sua orientação o contorno das pedras, 

a sombra das asas que estendem o céu 

desviou do limo. 

O enterro da aliança

Quem sepultaria uma aliança 

a gordura que escorre pela mão 

não estava com fome 

teimou 

abriu 

Sumário. III. O enterro da aliança. 

Quem deita-se com Satie não é obrigado a gozos à Debussy, 

ele só por essa frase na escada 

trazia areia para dentro de casa, 

um Ray-Ban falso nos olhos, 

o mar engoliu, 

por Deus deixa-me em paz, 

tirou meu colar do seu ombro num repelão 

a lata aberta de biscoitos protegidos 

um a um por papel celofane, 

biscoitos que ninguém mais 

usou meu sangue para dar-lhe filhos de presente. 

Lucia virou a página por virar

não daria chance às moscas 

que enterrem as alianças, 

não restarão muito tempo ali.







22.4.18

Self-conviction




Autopresidiária.

Self-conviction.






18.4.18

Quando acordamos






Sonhei agora mesmo que você foi eleita prefeita de São Paulo. Fiquei surpresa porque de forma alguma é a sua sintaxe, mas peguei-me orgulhosa de você. Mandei um telegrama: parabéns, amore. Há um corte e estamos num restaurante, coloridíssimas. Você viajou só para vir me ver, calculo. À mesa demonstro minha felicidade com palavras que não escuto e você faz aquela cara blasé tão sua, teus muxoxos, de quem pouco se lixa para sucessos. Há outra pessoa conosco e ela não importa, não fala, não existe, não tem rosto. Eu levanto da mesa e me afasto para fazer não sei bem, sabendo que vou voltar. Esperando que você me espere. Quando retorno você me esperou, sentada no chão ouve música. Ainda é o restaurante. Estamos de saída. A conta são três folhas azuis com várias determinações e preciso assinar cada via nas muitas linhas assinaladas – não entendo direito o que está escrito. Ainda há um sentimento atrapalhado entre nós, como sempre houve. Não sei para onde fomos quando acordamos.





14.4.18

E vou




Às vezes,

quando olho para certas pessoas, mesmo desconhecidas, 
vejo nítidas em seus rostos as feições de seus pais ou de
suas mães, os quais nunca vi na vida, nem por fotografia. 

Uma sensação desconcertante me impele ao afastamento. 
E vou.   

12.4.18

2 sucos de laranja



2 sucos de laranja

a parede respingada de sangue
digo a ela que é café














3




há 3 carros na porta de minha casa
o símbolo 3 significa
que vieram levar o meu corpo
olho na janela
o homem da parabólica
o homem da vidraçaria
o homem que olha para a janela

o gato escondido na caixa d'água








10.4.18

O todo é cada um (esparsos)






Overdose de alprazolam não mata. Esqueça. Após tardes e tardes conversando sobre técnicas de suicídio, Sylvia Plath e Anne Sexton chegaram à mesma conclusão, só que em cenários diferentes. Há uma boçalidade que reza, "Quem avisa, não faz". Mas o todo é cada um.



#


Numa curva fechada de estrada, cachorros são atropelados. 
Mas a mulher que ali espera uma carona está no topo da cadeia. 
Peruca loura. 
Saia toalha de mesa roçando as pernas. 
Na mala arriada no asfalto um projeto engatilha o próximo almoço.


#


Olhando da mesa para o teto.
Do teto para a janela.
Contabilizo pedestres.
Ponho todos na planilha.
Exagero.
Queimo.


#


vejo no livro do poeta
que sua biografia tem mais palavras
que os poemas

prêmios
menções honrosas
títulos e medalhas
o poeta é um vencedor
chegou na casa das américas
três segundos antes de colombo

suspiro sobre o caldo de enguia
uma saudade rasa de almôndegas
o poeta diria boldroegas

japonesas rindo na memória









1.4.18

O Vale Feliz



é uma felicidade acordar todo dia 
sentir a pressão da bexiga e ter de esvaziá-la rápido
é uma felicidade acordar todo dia com vida
satisfazer a fome 
lavar a sujeira do corpo 
pôr uma roupa e sair para trabalhar
receber comandos e exercer sua função com desvelo e boca calada
saber o que fazer com o que está escrito e dito
por uma boa alma que pensou tudo antes de você
não estando escrito, quebrar a cabeça e solucionar
por métodos e raciocínios que você leu naquele manual
das boas almas que trabalharam gerações antes de você
depois almoçar digerir tomar café
as cafeterias foram abertas para você tomar café
todo mundo toma e você vai tomar
é uma felicidade tomar o que todo mundo toma
sentir o cansaço que todo mundo sente
casar com o que todo mundo casa
trepar do jeito que todo mundo trepa
sorrir do que todo mundo sorri
viajar para onde todo mundo viaja
e ansiar loucamente por isso
nadar porque o mar está lá para ser nadado
cruzado   vencido   explorado
acreditar porque crenças foram criadas para se acreditar
escolher porque escolhas têm de ser escolhidas
entre dúvidas para serem duvidadas
a lembrança que exige ser lembrada
é uma felicidade escrever o que acontece
e achar que foi imaginação do que acontece
é uma felicidade escrever estas palavras
este idioma pronunciar sílaba por sílaba
ler palavras que todo mundo escreve
dizer palavras que todo mundo diz
on air
stand by
go
stop
as escolas uma atrás da outra
as famílias uma atrás da outra
seus ídolos mestres mentores
que ensinaram a cantar parabéns em todo aniversário
e você aprendeu e canta em todo aniversário
parabéns pra você
nesta data querida
muitas felicidades
muitos anos de vida
é pique, é pique
é pique, é pique, é pique, é pique
é hora, é hora
é hora, é hora, é hora
ra-ti-bum
êêêêêêêêê
de novo!
parabéns pra você
nesta data querida
muitas felicidades
muitos anos de vida
é pique, é pique
é pique, é pique, é pique, é pique
é hora, é hora
é hora, é hora, é hora
ra-ti-bum
êêêêêêêêê
e o meu pedaço?
é uma felicidade comer deste bolo
olhando o horizonte desmaiar
da janela mais alta do prédio